Quando eu estava no ensino médio, um amigo meu de infância cometeu suicídio.
Não qualquer amigo, mas um dedo-e-unha, daqueles que já eram “da casa”, sabiam o nome dos meus avós e conheciam cada cartucho na minha biblioteca do N64.
Fui comunicado enquanto prestava as provas da FUVEST como treineiro. Quem me contou foi outro amigo da mesma época, o terceiro integrante do “trio inseparável” que formáramos na escola. De lá para cá, nós havíamos há muito perdido o contato. A palavra da tragédia foi a primeira a nos unir em muito, muito tempo.
A vida, para o bem e para o mal, continuou. No dia seguinte, outra prova me esperava, prévia para o terceiro ano e a maratona obsessiva de estudos que me colocariam na faculdade. Ao mesmo tempo em que um novo capítulo da minha vida estava para se abrir, eu percebia que o anterior havia, literalmente, se perdido para sempre.
Eu nunca entendi o que o levou a fazer isso e também não quis pensar muito sobre o assunto. No entanto, eu estaria mentindo se dissesse que não pensei no que poderia ter feito para que as coisas fossem diferentes.
No nosso grupo, eu sempre fui o mais regrado (regrado demais, até). Se ele não tivesse mudado de escola, será que minha influência o teria feito seguir outros caminhos? E as redes sociais? Se eu não tivesse perdido o contato, será que não teria notado alguma coisa errada? Entendido sua intenção antes que seguisse as vias de fato, talvez avisado algum outro amigo para ficar de olho aberto e acompanhá-lo?
O destino deve ter desejado que eu revisitasse esse meu passado. Ou isso, ou algum dos responsáveis pelas grades de lançamento de animes teve uma experiência bem parecida com a minha.
Afinal, na atual temporada, não uma, mas duas séries abordaram diretamente traumas da juventude – e tentativas de voltar no tempo para consertar nossos erros.
Em ReLife, Arata Kaizaki, um fracassado de 27, anos tem a oportunidade de “voltar” ao colégio, 10 anos mais jovem, para encontrar um novo caminho na vida. Já em Orange, o grande hit shoujo nos últimos tempos, uma garota recebe cartas do futuro dizendo que um de seus amigos irá morrer – e que cabe a ela salvá-lo.
O gimmick não é exatamente novo, e aqui não dá para não se lembrar de Ano Hana, o campeão indisputável dos animes feels. Sua história acompanha um grupo de amigos de infância separados pela morte trágica de uma colega e reunidos pelo seu fantasma, fadado a não encontrar paz até que redescubram o sentido da amizade.
Não é de se espantar que animes como esses tenham um impacto tão forte. Afinal, eles repetem uma pergunta que todos já nos fizemos:
Por que sonhamos tanto em voltar atrás?
Para além do sentimentalismo óbvio, dá para entender porque histórias como essa nos arranquem tantas lágrimas – e inspirem tanta devoção. Em especial em séries vindas do Japão.
Muito se fala sobre a fascinação dos animes pelos anos escolares. Quase sempre, ela é explicada como uma espécie de choque cultural.
Enquanto que no Ocidente os anos pré-faculdade são vistos como um inferno de tédio, bullying e conhecimento inútil, no Japão resiste a imagem de que o colegial é a melhor época da nossa vida. Comparado com a tortura da rotina adulta, fazer simulados, comer na cantina e jogar vôlei depois das aulas parece um paraíso.
Isso tem uma ponta de verdade (embora seja um tanto exagerado). Porém, seria um erro reduzir o apelo dessas histórias a uma espécie de síndrome de Peter Pan.
A adolescência, afinal de contas, é o momento em que começamos a nos ver como indivíduos independentes. É a época em que temos certezas demais e experiência de menos; quando as esperanças são desproporcionais, e as decepções, à flor da pele.
Enfrentar tragédias é algo que todos temos de fazer em algum momento da vida, e que nunca fica mais fácil, não importa quanto tempo passe. E se é difícil lidar com a perda na vida adulta, fazê-lo quando nosso desafios se resumem a ser popular na classe e ir bem na prova de matemática beira o impossível.
Um ano antes de meu amigo tirar a própria vida, meus colegas de sala sofreram uma perda similar. A deles foi muito da grave: eles eram ainda mais jovens, e seu companheiro, muito mais próximo.
Por volta da mesma época, uma de minhas “senpais” teve o mesmo destino. Um ônibus a acertou enquanto voltava da escola. Eu mal a conhecia, mas sua morte, por algum motivo, gelou meu sangue mais do que qualquer outra.
No alto dos meus 15 anos, eu, como tantos outros jovens, começava a experimentar uma série de coisas novas: sentimentos, relações, trabalho. Saber que a vida daquela garota tinha terminado sem que curtisse tudo isso era de uma crueldade enlouquecedora.
Orange e Ano Hana, cada um à sua maneira, retratam o drama de ter de lidar com essa crueldade numa época em que não nos é esperado sequer cuidar de nossa própria vida. E do desafio de construir um futuro sabendo que, no rolar de dados do destino, nossos sonhos e vontades têm pouquíssimo poder.
No entanto, se Ano Hana nos traz de início um final feliz (a despeito de tantas lágrimas), Orange e ReLife fazem uma pergunta mais desconfortável.
Mesmo se pudéssemos fazer algo para evitar o pior, será que esta é a decisão correta a tomar?
O destino é inexorável
Orange nos traz o dilema logo no início, embora leve alguns volumes para ser posto em palavras. Na medida em que uma Naho adolescente tenta seguir os conselhos deixados pela sua eu de 27 anos, nós somos apresentados à vida dessa adulta amargurada.
Naho, descobrimos, casou-se com seu colega Suwa e teve um filho. Por mais trágica que tenha sido a morte de Kakeru, a perda de alguma forma os uniu e lhes trouxe uma felicidade que não conheceriam de outra forma.
Teria Naho construído essa mesma vida caso Kakeru sobrevivesse? Mesmo desconsiderando os paradoxos de viagem no tempo (e as soluções estapafúrdias que a série usa para contorná-los), até que ponto nós, como indivíduos, não somos produto das tragédias que sofremos?
Se tivesse sido poupada do pior, teria essa Naho madura, disposta a abrir mão da felicidade futura pelo bem de seu colega, tido chance de existir? E todos os outros Kakerus que ela conhecerá ao longo da vida, e que inevitavelmente morrerão? Ela mandará mensagens ao passado para salvar cada um deles?
Perdas nos machucam. Às vezes, nos destroem. Mas seria uma vida sem perdas melhor do que uma vida sem as lições que elas nos passam?
Somos prisioneiros do passado?
Meu colega Kouichi, do Animes Tebane, levantou uma questão parecida em seu artigo sobre Ano Hana. Para ele, a doce história dos amigos de infância que se reunem a pedido do espírito da colega é, na verdade, um conto de decepção e problemas psicológicos.
Kouichi acha que a infância feliz de que as personagens tanto se lembram existia apenas em suas mentes. Sua convivência era na verdade tempestuosa, marcada pela discórdia, inveja e ódio mútuos.
A aparição do fantasma de Menma, sua amiga morta em um acidente, não é um apelo para que tragam os anos de ouro de volta, mas para que se libertem de uma vez por todas do passado.
Por se remoerem no trauma que sofreram quando pequenos, os colegas se tornaram adolescentes disfuncionais, incapazes de superar o que aconteceu e construírem uma nova vida. Jintan virou hikikomori. Poppo largou tudo para uma vida new age na estrada. Yukiatsu veste as roupas da amiga morta. Para que voltem ao normal, não existem atalhos. Menma precisa ir embora.
Em tempo: discordo quase completamente da interpretação do Kouichi. A infância de Menma e seus amigos foi, sem sombra de dúvida, uma época feliz. E sim, inveja, brigas e desilusões são parte do que a tornou tão gostosa.
Pessoas não são feitas de vidro, e a vida não deve ser uma cristaleira. Quem nunca quis matar um amigo querido por ter dado em cima da pessoa de que gostávamos, ou tirado uma nota maior que a nossa na prova, que atire a primeira pedra.
Discórdias à parte, Kouichi chamou atenção para o mais importante. A despeito das diferenças, tanto Jintan como Naho enfrentam dilemas similares.
Como disse o Nick Creamer do Anime News Network na sua resenha de Orange, é apenas ao errar que nos tornamos o tipo de pessoa capaz de reconhecer os erros – e, por consequência, de parar de cometê-los.
Mesmo ReLife, aparentemente uma comédia muito mais leve, não foge à essa questão.
Kaizaki, o adulto que volta a ser adolescente para consertar sua carreira, sofreu uma tragédia que soaria familiar a Naho ou Jintan. Ele se tornou um NEET (um “nem-nem”, na gíria usada no Japão) não por ser preguiçoso e ignorante, mas porque, em um dado momento de sua vida, tomou uma decisão que lhe custou muito mais do que estava disposto a pagar.
Ao participar do programa ReLife e voltar disfarçado à companhia de jovens de 17 anos, ele vê seus colegas cometendo erros muito parecidos com aqueles que ele mesmo tomou. E a dúvida logo o assola: teria ele o direito de interferir?
Se ele usar sua experiência para ajudá-los, avisando-os de todos os possíveis erros antes que os cometam, é provável que cheguem aos seus 27 anos da forma como ele mesmo chegou: sozinhos, desempregados, desiludidos com uma vida que não deu certo, sem saber onde ou como fracassaram.
“Crescer”, ReLife nos ensina, não é fazer as coisas do jeito certo. É, parafraseando Camões, fazer as pazes com as nossas derrotas.
Quando meu amigo de infância morreu, nove anos atrás, não passei pelo que Jintan, Naho ou Kaizaki passaram. Não entrei em depressão, tornei-me um hikikomori nem larguei a escola para rodar o país em uma motocicleta.
Felizmente, não fui o único. Tempos atrás, reencontrei por acaso o outro membro de nosso “trio inseparável”. Pai, contratado em uma empresa de respeito, fiquei contente em ver que havia encontrado seu caminho na vida.
Por outro lado, aquilo na minha vida que faria jus a qualquer anime é o estranhamento da separação. Ao ver o reencontro de Jintan e Anaru em Ano Hana, ou o remorso dos amigos reunidos uma década depois em Orange, não pude evitar sentir como se estivesse olhando para um espelho.
Eu, também, tomei decisões que me afastaram dos outros. Por mais cruel que soe, preciso admitir que o faria de novo, quantas vezes fosse necessário. Para abrir certos capítulos da vida, outros precisam ir embora. E não como “cápsulas do tempo”, como Orange tão romanticamente sugere, mas como fotos em porta-retratos ou nomes em uma lista de contato. (Às vezes, nem isso).
Em ReLife, Kaizaki ganha o privilégio de voltar à adolescência por um ano. Há, no entanto, uma condição: quando seu “estágio” terminar, todos os seus novos amigos se esquecerão dele. O Kaizaki jovem, para todos os fins, deixará de existir.
No intuito de fazer uma comédia, ReLife nos trouxe uma das mensagens mais agridoces (e honestas) dos animes nos últimos anos. Na dor ou na alegria, no erro ou no acerto, no poder para mudar ou na sina de repetir o erro, nosso eu da juventude é um indivíduo com seus dias contados.
Que todos (a começar por nós mesmos) um dia esquecerão no passado.
Um super agradecimento ao Fábio Godoy pelas stills de Orange
Elaborarei comentário de verdade quando resolver meu problema com a internet, mas à rigor a volta no tempo é um tema ainda mais presente: tivemos BokuMachi em janeiro que traz como protagonista um adulto fracassado porque se remoeu a vida toda por traumas na infância (é mais ou menos um sinal invertido em relação aos que você escolheu comentar – ele não aprendeu nada e o trauma destruiu sua vida) e desde a temporada passada e ainda em andamento a sensação otaku do ano Re: Zero, onde um protagonista que já é um adolescente disfuncional desde o começo é continuamente traumatizado por mortes de pessoas próximas e pela própria morte, que na mecânica do anime o faz voltar no tempo.
Volta no tempo é o novo preto.
É engraçado. Quando olhamos para o mundo otaku “por cima” dá para ver umas tendências bem expressivas.
Lembro-me de ter lido, um tempo atrás, que um concurso literário japonês proibiu contos que falassem sobre “viagem a mundos paralelos”. E de fato, se examinarmos os animes/mangás/light novels de, sei lá, 2010 para cá, a quantidade de enredos centrada nisso é estarrecedora.
Falando de Orange e ReLife especificamente, eu acrescentaria outros topos à lista: a crise dos ~27 anos. Embora não tão representada em animes voltados ao público adolescente (por motivos óbvios), é algo que vejo com cada vez mais frequência.