Da lista de perguntas que causam flamewars com maior frequência, essa com certeza está no Top 10. Os animes conquistaram o mundo faz já algum tempo, e de lá para cá são vários os artistas que se inspiraram no estilo para criar seus próprios trabalhos. Mas seriam essas obras “animes”, também?
Se trocássemos “anime” por “mangá”, creio que poucos discordariam. Muitos cartunistas ocidentais já se puseram a escrever seus próprios mangás. Apenas no Brasil, a Editora JBC já realizou concursos brasileiros, cujos ganhadores foram publicados pela revista Henshin. E isso sem mencionar todo o mercado de fanzines.
Mesmo na animação, há quem argumente que o nome “anime” pode ser aplicado a animações ocidentais que emprestam fórmulas e visuais dos desenhos japoneses. Elas incluiriam séries como Avatar, A Lenda de Korra, Teen Titans, Samurai Jack e mesmo Meninas Super Poderosas.
Problema encerrado? Nem de longe. Muita gente discorda dessa posição. O Anime News Network, maior portal de anime e mangá em língua inglesa, define “anime” exclusivamente como animação produzida no Japão. Com o mangá é a mesma coisa. Criações ocidentais inspiradas na estética nipônica são chamadas pelo site de “mangás do mundo.” O nome é inspirado na categoria dos “mangás globais”, criada pela editora Tokyopop para a sua linha de “mangás” ocidentais.
Quem estaria com razão? Haveria alguma razão, ou seria esse um assunto melhor deixado às flamewars da vida?
Eu acredito que haja pontos bons de ambos os lados. Porém, para chegarmos até eles, precisamos desbravam as opiniões mais a fundo.
Anime: uma denominação de origem.
Chris O’Brien, em uma coluna para o Escapist, fez uma das defesas mais apaixonadas da universalidade do anime. Ele aponta A Lenda de Korra como um perfeito exemplo da mídia, e justifica seu ponto com um paralelo com o mundo das bebidas. Em especial, com o conceito de denominação de origem controlada, ou DOC.
Uma DOC é uma categoria de bebidas padronizadas, cuja produção precisa cumprir uma série de requisitos para garantir o selo. Elas podem ser mais ou menos rígidas – nos casos mais famosos, controlam até mesmo como os produtores devem plantar a matéria prima. Se uma bebida não respeitar as regras, não pode levar o nome da DOC.
A característica mais marcante de uma DOC é a necessidade de ser produzida em uma determinada região. Assim, só espumantes da região de Champagne podem se chamar champagne, só os portugueses podem fazer vinho do porto, só os americanos podem fazer Bourbon e só os brasileiros têm direito a produzir cachaça.
O’Brien muito libertariamente diz que isso é tudo um grande conchavo de políticos para estufar os bolsos de dinheiro e acabar com a livre-concorrência. Para ele, o consumidor não está nem aí para a origem da bebida ou para o jeito como ela é feita. Ele só deseja beber e se divertir.
Com a animação seria a mesma coisa. O rótulo “anime”, tal como DOC, estaria aí apenas para evocar um falso senso de purismo e depreciar as excelentes animações em estilo japonês produzidas fora da Terra do Sol Nascente.
Eu tenho simpatia por alguns pontos de O’Brien. No entanto, se existisse um prêmio de comparação mais descabida da internet, ele com certeza o levaria. Em primeiro lugar, DOCs não são decretos de cima para baixo, mas fruto da pressão dos próprios produtores para valorizar aquilo que fazem. Na maioria das vezes, elas servem para oficializar práticas tradicionais que, em alguns lugares, têm sido feitas informalmente há séculos.
Elas cumprem sim, a função de proteção, mas não a proteção dos consumidores contra os “imitadores” de meia tigela. Antes, elas servem para proteger os próprios estilos frente à popularidade de novas formas de se fazer bebida que surgiram no Novo Mundo. Elas não só não “reduzem a criatividade” como são, elas mesmas, resultados de um mundo globalizado em que todo mundo têm direito de fazer o que quer e vender para quem quiser.
Mais: nenhum produtor é “forçado” a produzir dentro da DOC, mesmo se viver na zona de origem. Um exemplo são os supertoscanos, vinhos “rebeldes” da região de Chianti que se tornaram alguns dos melhores da Itália.
Dizer que anime é um rótulo como a DOC é dizer que os japoneses estão com medo de serem “ocidentalizados” pela animação gringa e criaram um rótulo para proteger sua produção nacional, forçando seus profissionais a desenharem sempre do mesmo jeito. Dada a imensa popularidade da estética anime no mundo e a receptividade dos japoneses às influências estrangeiras, a explicação não tem pé nem cabeça. Ainda mais se considerarmos que a própria “cultura otaku” que os animes promovem foi feita com base em elementos ocidentais.
O’Brien também parece esquecer uma coisa muito importante. Ao contrário do que ele diz…
As pessoas não pagam apenas pelo produto
Há um motivo que leva as pessoas a pagarem R$350,00 numa garrafa de Veuve Clicquot em vez de beber um espumante do Vale do São Francisco por R$20,00. E não é a qualidade (a título de curiosidade, os espumantes brasileiros são referência mundial).
O champagne é uma bebida histórica, estilosa, que “agrega no camarote”, como disse um certo meme-humano. Quem paga uma pequena fortuna em um champagne não o faz apenas pelas bolinhas. Eles querem algo mais.
E não digo isso apenas pela “ostentação”. Criações tradicionais atraem pessoas porque o público já sabe o que esperar delas. Elas têm uma fama e um propósito que vai além da experiência.
Animes – tais como outras “escolas” de animação – tem suas próprias convenções, o seu próprio “banco de dados” de personagens, cenários e histórias que atiça a memória do fã. Isso sem contar toda a fascinação com a cultura japonesa, que normalmente leva jovens e estudantes de língua a tornaram-se espectadores assíduos.
Quem busca esse tipo de entretenimento pode muito bem se divertir com outros tipos de animação – afinal de contas, ver uma coisa não nos proíbe de assistir outra também. No entanto, o que ele busca no momento em que deseja assistir ao anime é algo que acha que só o anime é capaz de dar.
Ou, ao menos, é o que certos fãs dizem. Na prática, a coisa é um pouco mais complicada, pois…
Não há, no Japão, um consenso sobre o que seja “anime”
Aqui quem nos ilumina é Brian Ashcraft, o correspondente da Kotaku no Japão. Segundo ele, os japoneses nunca tiveram uma única palavra para definir a arte que faziam. Mesmo o termo “anime” só se tornou popular a partir dos anos 1970. Ou seja: os clássicos do Osamu Tezuka dos anos 1960, tidos por alguns como a origem do anime, só ganharem esse nome depois de terem sido produzidos.
Para complicar, se o termo “anime” acabou se tornando uma marca para a animação japonesa no exterior, no Japão isto não aconteceu. O nome é usado para se referir a Sailor Moon e Samurai X tanto quanto para animações ocidentais como os Looney Toons:
Não fosse o bastante, muitos animadores japoneses não utilizam o termo “anime” para suas próprias obras. O próprio Studio Ghibli, talvez a maior referência em animação japonesa, muitas vezes opta apenas pelo termo sakuhin (“obra”), o mesmo usado pela Disney em seus lançamentos no Japão. E, se a estética do Ghibli está indiscutivelmente dentro do que chamamos de “anime”, o mesmo não pode ser dito de muitas outras séries que não obstante levam o nome do estilo:
Se nem mesmo os japoneses estão preocupados em preservar sua “marca”, haveria sentido em definir anime como uma produção exclusivamente oriental? Em um mundo cosmopolita em que todos se influenciam mutuamente, não seria melhor nos guiarmos apenas pela estética?
O que dizem os contrários
O blog Animenation acha que não, e apresenta um argumento compartilhado pelo Anime News Network, que citei acima. Segundo seu autor, é justamente por vivermos em ambiente interconectado em que todos se influenciam que é necessário definir com precisão o que significa “anime”.
Hoje em dia, a estética da animação japonesa já está tão difundida que é possível encontrar referências em filmes e séries que nada têm a ver um com o outro. Mais: o próprio estilo exagerado do anime, com seus olhos gigantescos e gestos extravagantes, não foi criado no Japão, mas “importado” por Osamu Tezuka e seus contemporâneos de personagens famosas dos Estados Unidos, como a Betty Boop.
Se fôssemos, seguindo O’Brien, levar apenas o estilo em consideração, logo “anime” se tornaria quase sinônimo de “animação”. E, se é verdade que animadores de toda parte têm seus pontos em comum, às vezes queremos nos referir especificamente à mídia popularizada no Japão. Para fins analíticos – dizem essas páginas – não há alternativa melhor do que definir anime pelo seu país de origem.
E quando ao uso casual? Neste caso, tanto o Animenation quanto o Anime News Network acreditam que não haja diferença em adotar o nome “anime” para tudo. Afinal de contas, se não estamos escrevendo um artigo acadêmico ou calculando uma estatística de mercado, por que isso seria importante?
Por que, como tudo na vida, mesmo as coisas complicadas podem ficar ainda mais complicadas.
O anime é uma expressão da cultura japonesa
Para a maioria dos otakus ocidentais, a frase acima é suficiente para fazê-los revirar os olhos. Aqueles que fazem cosplay talvez se lembrem das peças raras na internet que dizem que apenas japoneses podem encarnar personagens de anime, já que eles foram “feitos para japoneses.”
Acreditem em mim, no entanto, quando digo que essa frase não tem a ver com nenhum discurso do tipo. Mais do que isso: ela não foi dita por um troll nos fóruns do Crunchyroll, mas por dois dos maiores gênios do meio: Satoshi Kon e Mamoru Oshii.
Exatos dez anos atrás, os dois diretores integraram um número de profissionais da indústria entrevistados pela Tokyo Foundation. Os textos originais já saíram do ar, mas felizmente as páginas foram preservadas no archive.org.
Para os dois diretores, o anime não é qualquer animação – mesmo que o termo, casualmente, seja usado desta forma. Também não é uma estética, um grupo de convenções ou uma fanbase. É uma expressão autêntica da mente japonesa, que nenhuma outra cultura é capaz de imitar.
Sobre os empréstimos entre Hollywood e o cinema japonês e a possibilidade de uma arte universal, Satoshi Kon foi bastante categórico:
– Você acredita que a arte ou o estilo são universais? Que as linhas que separam a animação norte americana da japonesa estão se apagando?
Satoshi Kon: Não. Eu acho que não. A estética americana, não importa de que lado você olhe, é americana. Por exemplo, a Disney ou a Dreamworks poderiam usar técnicas da animação japonesa para fazer um fime. Mas não há como alguém dizer que o resultado é “animação japonesa”.
(…)
– Mas Hollywood ainda tenta – e com teimosia, alguns diriam.
Satoshi Kon: A cultura da animação e dos quadrinhos japoneses é e foi construída sobre a experiência, mentalidade e nuances do povo japonês, então alguém que não tenha essa mentalidade não consegue criar a mesma coisa. Ela se torna apenas uma imitação. É a mesma coisa com os japoneses. Se nós tentarmos fazer algo “ocidental”, ele se tornará só uma imitação. Claro que nós podemos nos influenciar, mas apenas imitar não saudável e não é bom.
Mamoru Oshii, tem uma opinião semelhante, muito embora (como em toda a sua obra) ele a coloque de forma bem mais dramática:
– (…) Como você se sente em relação à popularidade do anime e do mangá no exterior?
Mamoru Oshii: Eu não acho que a animação pode ser descrita de forma tão simples. Animação japonesa, animação americana, animação europeia, elas têm suas diferenças. O formato é similar. Mas, por exemplo, quanto que uma pessoa japonesa pode entender da Guerra do Vietnã? Quanto que nós podemos transmitir sobre a guerra em um filme, de qualquer maneira? Se nós tivermos um impacto no público, isto é ótimo. Na América do Norte e na Europa, meus filmes podem ser uma forma de entretenimento, mesmo que haja partes com que eles possam se relacionar porque nossas histórias estão entrelaçadas. Mas no Oriente Médio ou em outros lugares no mundo islâmico, eu não acho que o público responderia bem aos meus filmes porque eles são muito diferentes. Há uma barreira que precisamos ultrapassar. Eu não acho que exista uma cultura global. Há culturas diferentes com crenças diferentes, e isto nós não podemos esquecer. A [Guerra do] Iraque está acontecendo porque as pessoas não entendem isso.
Oshii toca num ponto interessante, e no qual geralmente não pensamos. Para ele, o que define uma “arte” não é só seu estilo, mas sua escolha de conteúdo. Não há animação como a japonesa porque apenas os japoneses falam das coisas de que falam do jeito como falam.
Há, obviamente, exceções. O Studio Ghibli, com seu universalismo, está muito mais próximo da Disney da velha guarda do que de muito do que se produz no âmbito do anime. Mesmo sim, é difícil olhar para os animes e não ver reflexões de uma sociedade que não é a nossa.
Sky Crawlers, do próprio Oshii, já foi interpretado como um ataque aos otakus japoneses, que preferem permanecer eternas crianças a se tornarem cidadãos produtivos. Paranoia Agent fala sobre o ritmo alucinado dos trabalhadores no Japão e como muitos descambam para a loucura e o suicídio. Mawaru Penguindrum é um drama sobre o ataque de gás sarin no metrô de Tóquio em 1995, um atentado terrorista completamente diferente daqueles com o qual o ocidente está acostumado. E eu já falei diversas vezes de como o trauma da Segunda Guerra e as questões sem resposta daquele época são um tema recorrente em vários animes e mangás.
E isso para citar apenas os títulos “cabeça”. Mesmo nos lançamentos comerciais nós vemos sinais inconfundíveis de que estamos lidando com algo feito em outro país. Os uniformes escolares que adolescentes usam o tempo todo, não importa se estejam em aula ou pilotando um mecha no espaço. A reverência ao senpai. As personagens que falam de costas umas para as outras para efeito dramático. As vending machines que vendem pocky e kit kats de sabores estranhos. Os baito dos jovens adultos. Os apartamentos minúsculos de um quarto só, com chão de tatame e um kotatsu para os dias frios.
É possível separar o anime de toda essa carga cultural? Para Mamoru Oshii, não. É possível para um criador ocidental fazer uma obra que lide com tudo isso? Possível é, mas como disse Satoshi Kon, isso seria uma imitação, e quem deseja uma imitação? Os gaikokujin têm suas próprias histórias para contar. Eles não precisam copiar as japonesas.
Independente do lado que cada um tome, há um ponto com o qual todos concordam. A boa animação pode vir de qualquer lugar, não importa o nome que damos a ela.
Muito boa matéria Vinicius, é sempre bom pensar por esses lados, embora no fim acaba que não confirmando coisa alguma, pois não é uma nomenclatura oficial. Continuo chamando as animações japonesas de anime e ocidentais de desenho apenas para facilitar o entendimento do povo, é mais fácil de assimilar já que é a forma que a maioria usa.
Muito boa matéria Vinicius, é sempre bom pensar por esses lados, embora no fim acaba que não confirmando coisa alguma, pois não é uma nomenclatura oficial. Continuo chamando as animações japonesas de anime e ocidentais de desenho apenas para facilitar o entendimento do povo, é mais fácil de assimilar já que é a forma que a maioria usa.