Quando pensamos em otakus, poucos símbolos são mais universais do que figures colecionáveis.
Seja na realidade, seja na ficção, prateleiras cheias de miniaturas de plástico se tornaram a prova de que o anime, para seu dono, é mais do que um simples passatempo.
O que um dia foi estereótipo negativo se tornou uma marca de orgulho. O mercado de figures, que hoje já conta com suas próprias convenções, é um dos setores mais vibrantes, lucrativos e cobiçados do mundo nerd.
No Japão, em especial, o hobby se tornou parte da cultura nacional. Não só é o responsável por boa parte do turismo em bairros como Akihabara, em Tóquio e Den Den Town, em Osaka, como ultrapassou as fronteiras do mundo otaku. Artistas contemporâneos como Takashi Murakami já se aventuraram em obras inspiradas em figures.
Nem sempre foi assim
Tal como o cosplay, as convenções nerds e, em certo sentido, o próprio anime, figures foram uma importação ocidental… e bastante recente.
Que hoje o Japão seja não apenas celebrado como a “capital das figures”, mas também como berço de alguns dos melhores fabricantes de miniaturas de franquias ocidentais é prova de que a cultura otaku, longe de uma marca de vergonha, é um toque de Midas.
Quem cai de paraquedas em uma convenção contemporânea, em toda a sua pompa, pode se espantar ao conhecer as origens do hobby.
Isto porque o “pai” das figures é alguém bem menos imponente – e, para a surpresa de alguns, muito mais conhecido.
Don Levine, vice-presidente da Hasbro, certa vez olhou a vitrine de uma loja de artes e teve uma revelação: por que não criar brinquedos iguais aos manequins de desenho? Figuras humanas que pudesem assumir qualquer pose, vestir qualquer roupa e se reinventar infinitamente?
A ideia de Levine chegaria aos mercados em 1964 como G.I. Joe. E o mundo do colecionismo jamais seria o mesmo.
Colecionar bonecos, claro, é algo muito mais antigo. O próprio G.I. Joe jamais teria ganhado as prateleiras não fosse o sucesso espetacular da sua mais importante predecessora: a boneca Barbie.
No entanto, Don Levine marcou época por ter feito algo que pode passar batido à primeira vista, mas pela qual todos os colecionadores sem dúvida têm muito a agradecer. Ele se recusou a chamar sua criação de “boneco”. Mais do que isso: proibiu a companhia de se referir a ela com a palavra e se recusou a vender para lojas que a chamassem deste jeito.
Nascia a diferença entre figures e “bonequinhos”. E, graças aos nerds, ela jamais seria esquecida.
Como tudo no mundo nerd, a história passa por Star Wars. Se G.I. Joe trouxe o formato, a saga de George Lucas trouxe a função. Sob a direção da companhia Kenner, as figures de Star Wars deixaram de ser apenas brinquedos para se tornarem colecionáveis.
Se antes figures eram apenas figuras de plástico, agora elas eram parte de um projeto maior, com direito a cenários, dioramas e itens promocionais.
O impacto que elas tiveram foi muito além do consumismo. Para alguns, foram as figures, e não os efeitos especiais, as verdadeiras responsáveis pelo sucesso da saga de Lucas.
Em um mundo anterior à internet, sem máquinas publicitárias para lançar filmes e spin-offs ano após ano, o colecionismo era o principal responsável por manter o interesse dos fãs. Sem ele, é muito provável que Star Wars amargasse como uma de tantas promessas esquecidas dos anos 1970/80.
O tempo passou, os fãs cresceram, suas carteiras aumentaram – e, com elas, sua exigência. Figures ficaram maiores, mais populares, detalhistas e exclusivas.
Quão exclusivas, exatamente? Basta olhar para a magia por trás dos panos.
Trabalho duro e tecnologia de ponta
Nas palavras de um dos designers da Kotobukiya, uma das mais importantes fabricantes do Japão, a produção de figures é a arte de se transformar o 2D em 3D.
Tudo começa com uma (ou várias) imagens de referência, que são traduzidas em um protótipo tridimensional.
Em alguns casos específicos, seus próprios designers se encarregam do material. Na maior parte das vezes, no entanto, eles recebem as imagens dos detentores de direitos autorais.
Figures geralmente são feitas para atingir o mercado junto (ou próximo) às obras em que são baseadas. Por causa disto, fabricantes geralmente recebem versões preliminares das personagens.
Como dá para imaginar, não é incomum que isso cause atrito. Figures de anime, em especial, costumam ser esculpidas em escala. Na falta de informações oficiais, dados como a altura da personagem e o tamanho de suas armas precisam ser calculados a partir das ilustrações.
Pior ainda: no percurso da arte conceitual até o lançamento, character designs muitas vezes são mudados de última hora. Quando isto acontece, todo o processo deve recomeçar do zero.
Mesmo na melhor das hipóteses, o processo de dar vida a um esboço é sempre longo e pode custar até 3 meses de trabalho.
Protótipos são tradicionalmente feitos à mão, mas é de se imaginar que artistas que dão vida a mechas e armas futuristas sejam bem receptivos à tecnologia. Em grandes fabricantes, imagens de referência são digitalizadas, manipuladas e tridimensionalizadas na tela do computador.
Protótipos, por sua vez, são feitos usando vários tipos de impressoras 3D. Para assegurar que o resultado fique igual ao esperado de um artesão talentoso, a equipe emprega uma série de gadgets. Um dos mais impressionantes, o Freeform, permite que um modelo seja polido no PC como se fosse uma estátua de resina.
Se nada disso impressiona, basta lembrar que a tecnologia por trás da produção de figures é a mesma usada na indústria médica para fazer impressão 3D de órgãos humanos.
Se alguém ainda duvidava que colecionadores levam suas figures à sério, basta ter em mente que os mesmos recursos futuristas desenvolvidos para salvar vidas humanas são usados para garantir que as dobras de um kimono de plástico pareçam naturais.
… e MAIS trabalho duro
Nada disso significa que as velhas tradições foram abandonadas. Não deixem as máquinas e os computadores enganá-los: figures são (e, provavelmente, sempre serão) uma arte feita à mão.
Por um lado, o trabalho humano é uma questão de necessidade. Impressoras 3D do tipo utilizado para criar figures são extremamente caras. Mesmo os maiores fabricantes raramente têm mais de uma ou duas à disposição.
Como menos impressoras, menor o volume de trabalho. E maior a necessidade de otimizar o tempo, utilizando as máquinas apenas para o que é realmente necessário.
Por outro lado, ele é uma escolha consciente. Por mais precisos que sejam os modelos 3D, a produção baseada em dados, como é conhecida, não dá conta de todos os recados. Como conta o representante da equipe de protótipos da Kotobukiya:
Métodos de produção baseados em dados não são perfeitos. Há ainda muitas coisas que são feitas de forma melhor e mais rápida à mão. Linguagem corporal e tecidos são dois dos principais exemplos. A produção baseada em dados é mais indicada para a criação de figuras simétricas. Isto significa que, com vários protótipos, uma vez que você tenha criado metade dele, você pode fazer o resto a partir daquela metade. Formas perfeitamente circulares, padrões espaçados regularmente – estes são os tipos de tarefas que a produção baseada em dados faz melhor.
Figures muito regulares ou “robóticas”, como mechas, podem ser colocadas sem trauma à cargo de uma impressora 3D. Peças mais orgânicas, no entanto, não dispensam a boa e velha e escultura.
Como resultado, departamentos equipados com tecnologia de última geração dividem espaço com aquilo que mais parece uma oficina de artes:
Se não parece óbvio que empregar tantas pessoas seja mais eficiente do que adotar uma linha automatizada, basta dar uma olhada no nível de detalhes com que esses profissionais trabalham. Alguns são tão minuciosos que passariam batido aos olhos de leigos.
É difícil saber quem, além dos colecionadores mais ferrenhos, teria a paciência e a atenção para escrutinizar esse tipo de coisa. As empresas com certeza também não sabem. Não é à toa que uma boa parte de seus funcionários são, eles próprios, colecionadores que transformaram o hobby em profissão.
Se você também quer fazer das figures sua vida e está disposto a largar tudo e partir para o Japão, tenho boas notícias: você não será o primeiro a ter vivido o sonho. Embora não seja comum, alguns ocidentais já conquistaram espaço na indústria.
De resto, da próxima vez que você se perguntar como um pedaço de plástico pode custar mais de 1000 reais (e como adultos podem achar que é uma boa ideia encher uma parede inteira com elas), saiba que não se trata de ganância do vendedor, nem de ingenuidade do comprador.
Pelo tempo, tecnologia e trabalho descomunal que demandam, figures são verdadeiros tesouros. Não é à toa que seus fãs as tratam como tal.
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