Fãs do Studio Ghibli têm um motivo especial para assistir à cerimônia do Oscar. O anime Kaguya Hime, do diretor Isao Takahata (famoso por Túmulo dos Vagalumes), faturou uma indicação para o prêmio de melhor animação. Se levará ou não a estatueta é outra história. Eu tenho minhas dúvidas, mas milagres acontecem (e, dada a ausência de Lego Movie na categoria, minha cota de surpresas se esgotou há muito tempo). Em todo o caso, das muitas possíveis explicações para uma suposta hostilidade da academia ao anime (é japonês, é profundo, é difícil de entender, não é da Pixar), uma estará incorreta: a de que ele é “antigo” e, por isso, “distante”. De fato, Kaguya Hime é baseado em uma obra tradicional, retrata uma época tradicional e emana tradicionalidade de cada traço. A despeito de tudo, o filme não é apenas atual como, mais do que qualquer outra animação das recentes levas, é desesperadamente contemporâneo.

O filme

O enredo conta a lenda de uma garota mágica encontrada por um camponês dentro de um talo de bambu. Adotada pela família, ela passa a viver uma vida simples junto à natureza e aos outros aldeões. Todavia, com o passar dos anos, seu pai encontra outros presentes dentro de bambus: pepitas de ouro e roupas elaboradas, dignas de uma princesa. Para o camponês, não há dúvidas. Quem trouxe a menina à terra não o fizera para que fosse uma camponesa. Seu destino era se tornar uma nobre.

Com o ouro do bambu, o camponês compra uma mansão na capital, um nome aristocrático e os serviços de uma tutora em etiqueta. A garota, rebatizada de Princesa Kaguya, é forçada a abandonar seus amigos e aprender a se comportar como uma dama da corte. O problema é que a nova vida não lhe desperta o menor interesse. O silêncio do palácio é entediante. As roupas e penteados ultracomplicados não permitem que brinque. Os rituais são arbitrários e medonhos: deve arrancar as sobrancelhas e pintar os dentes de preto; não pode rir em voz alta nem ser vista por estranhos. Comparada com sua vida no campo, o mundo da cidade é uma antivida: insossa, amedrontadora e sem sentido.

Até aí, nada de novo. Fantasias sobre a beleza da vida simples e críticas aos excessos do luxo são quase tão antigas quanto a própria arte. Porém, há aqui uma pequena diferença. Os nobres de Kaguya Hime não são apenas decadentes; eles são ruins. Ao serem informados da beleza da princesa, cinco pretendentes viajam até o palácio para conhecê-la. Para tal, eles cavalgam pelo meio da cidade, atropelando sem remorso os cidadãos que encontram pela frente. O pai da princesa, confortável com a nova posição, recusa-se a deixá-la encontrar o velho povo da aldeia, pois nobres não devem se misturar ao populacho. Em uma cena particularmente tocante, a princesa, de dentro de sua carruagem, reconhece um antigo amigo de seus dias no campo, reduzido a um ladrão de galinhas por não ter o que comer.

O que separa a criação de Takahata de seu material de origem é sua hostilidade à aristocracia. Não, é certo, uma aristocracia “real”, que tenha existido em algum momento do passado. Ele é contra sua ideia, contra os princípios que nela identifica. A inibição dos prazeres da infância. O abuso aos mais fracos. A falta de livre arbítrio. A falsidade. A obediência cega. O casamento arranjado. Hiroki Azuma diz que o anime não é uma arte autenticamente japonesa, mas uma recriação ocidental feita com elementos nipônicos. Em certa medida, Kaguya Hime parece confirmar isso. A adaptação de Takahata tem mais em comum com críticas à aristocracia europeia, como os romances de Charles Dickens e Thomas Hardy, do que com a tradição do Japão antigo que produziu a lenda. No cinema, ressoa com alegorias encenadas no Antigo Regime, como A Duquesa e Maria Antonieta. Nós nos reconhecemos na rebeldia da protagonista porque o mundo que ela despreza não é só errado, mas anticontemporâneo.

 

kaguya eyebrow

Fuga do presente, nostalgia pelo futuro

Essa busca pelo presente – ou pelo que o presente deveria ser – não é incomum. Nossos valores são importantes para nós. Eles definem nossas ações, caminhos de vida, nossa forma de ver o mundo; são, enfim, aquilo que somos. Mas a história, infelizmente, nos ensina que as coisas mudam. E se é assustador acordar num futuro cheio de tecnologias, pessoas e idiomas desconhecidos, muito mais assustador é se deparar com um amanhã no qual os próprios valores são irreconhecíveis. De ‘atual’, passarmos a ‘relíquia’; de ‘certos’, tornarmo-nos ‘errados’; de ‘corretores’ dos outros, sermos rebaixados a ‘corrigíveis’. O passado de Kaguya Hime tem função de alívio. Ao criticarmos uma era que já foi, temos a ilusão que nossos problemas são relíquias do passado. A culpa não é nossa, mas dos valores antigos, que custam a desaparecer. Ao nos depararmos com essa sociedade tão errada, nos convencemos de quão certos nós (ainda) somos.

Isso funciona para os que têm confiança nos próprios valores. Já para os incertos, a coisa é diferente. Compare o anime de Takahata com o filme O Último Samurai, de Edward Zwick. O Capitão Algren, protagonizado por Tom Cruise, é um homem ‘contemporâneo’ – para os padrões de seu século XIX – que, no entanto, viu a pior face da sua modernidade: o extermínio dos ‘pele-vermelhas’ no massacre de Wounded Knee. De volta à civilização, vende armas para que outros se matem em causas ainda mais fúteis e desperdiça o salário em bebida. Ele não se preocupa em “olhar para a frente”, pois não há nada para se ver: se o presente já é assim, para quê um futuro? Daí a revelação de seu cativeiro no Japão. No final do filme, o imperador Meiji nos diz em um discurso que é importante ser moderno, mas não muito moderno. Algren, no mesmo espírito, abandona o ocidente para obter ‘um pouco de paz’ na vila dos samurais. A etiqueta arbitrária e a rigidez da tradição, que a Princesa Kaguya repudiava, têm para ele um sentido que a contemporaneidade e o seu ‘progresso’ nunca lhe mostraram. Em Kaguya Hime, o passado é um oposto que deve ser lembrado e evitado. Aqui, é uma parte de nossa humanidade, sem a qual não valemos nada.

Uma cena, duas visões de mundo

A lição não está no passado ser ou não importante, mas no fato de que, queiramos ou não, nós sempre o buscamos. A diferença é o motivo. Para alguns, é uma maneira de se convencer das próprias certezas—que, se certezas de fato fossem, dispensariam o exercício. Para outros, tal como para Dom Quixote, é um sonho impossível para reencontrar a si mesmos.