O aviso foi feito em 2014: o Studio Ghibli não faria novos filmes, ao menos por um tempo. O fã de longa data, que escuta Miyazaki anunciar a aposentadoria desde 1997, deve ter ficado incrédulo. Porém, um ano depois, parece que seu produtor, Toshio Suzuki, falava sério. Quando Estava com Marnie, lançado no Japão ano passado e em Blu Ray esse ano no ocidente, foi o último coelho a sair da cartola. A companhia que nos deu Totoro e Nausicaa está sem planos imediatos para novos lançamentos.

Aos abalados, um consolo. Suzuki garante que o estúdio voltará, mas deve passar por uma reformulação. Será que as coisas voltarão a ser como antes? Ou teria a era dos filmes clássicos de Miyazaki e Takahata chegado, finalmente, ao seu fim?

Como o Ghibli, só o Ghibli

Se há algo que podemos dizer sobre o estúdio é que ele nunca fez anime como os outros – daí, afinal, a razão de sua justa fama. Mas há algo peculiar – para não dizer esquisito – em seus três últimos filmes. Vidas ao Vento de Miyazaki, Kaguya Hime de Takahata e Quando Estava com Marnie de Hiromasa Yonebayashi são filmes sérios, de temas pesados e andamento lento. Muito lento.

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Hans Castorp, protagonista do livro de Mann, até fez uma ponta

Está certo que dizer que o Studio Ghibli fazia filmes “para criança”  nunca agradou seus fãs, mas algo nesses últimos lançamentos diverge bem da fórmula do “filme família” – mesmo para os padrões Ghibli. Kaguya Hime arranca suspiros com uma estética inédita e uma discussão filosófica que não é para poucos. Vidas ao Vento é a versão anime do clássico A Montanha Mágica, do Prêmio Nobel Thomas Mann. E Marnie, com sua cara mundana e adolescentes em crise, ora se aproxima da melancolia de  Makoto Shinkai, ora da severidade de Colorful.

Comparado com o anime mainstream, a diferença é gritante.  O Studio Ghibli seguiu a sua própria estrada, e parece ter soltado os freios na ladeira. Pode ser que isso seja o que levou seus criadores a repensar as coisas. Ou pode ser que essa receita que só eles sabem preparar seja o que os salvará daqui para a frente.

Os detalhes são tudo

Muito tempo atrás, uma amiga americana me levou para conhecer um casal próximo à família. Eles moravam em uma enorme casa de lago no estado mais-do-que-remoto de New Hampshire. Para o paulistano que sou, acostumado desde sempre a prédios, casas pré-fabricadas e móveis comprados nas melhores do ramo, o choque foi total.

O edifício parecia ter sido contruído pelos colegas em um fim de semana, acompanhados por alguns engradados de cerveja. As vigas, tábuas e pilares eram todas irregulares, como se eles houvessem simplesmente cortado as árvores e removido as folhas. Não era uma casa desagradável, pelo contrário: combinava como nenhuma outra coisa com a paisagem de florestas e estradas de terra. Mas eu nunca havia visto nada do tipo.

Em Quando Estava com Marnie, a adolescente Anna, melancólica e perdida com a vida, passa o verão em uma cidade interiorana. Quando o filme nos mostra a casa onde a garota passa a viver, o clique na memória foi quase imediato:

arnie house 3 marnie house 2

marnie house 3

Yonebayashi não reproduziu uma casa no campo qualquer, tirada do manual de desenho. Ele nos recriou uma casa nos seus mínimos detalhes, coisa que passaria batido para qualquer um que não tivesse visto algo parecido.

Miyazaki já disse que para retratar o mundo é preciso conhecê-lo. Ficar trancado em um estúdio na frente de uma mesa de desenho não faz de ninguém um artista. Daí sua tristeza com muitos de seus colegas, que vivem e respiram no mundo do anime e não têm ideia do que se passa além dele. Em Marnie, seu companheiro de estúdio Yonebayashi segue isso à risca. Talvez pela exigência do enredo, talvez pelo andamento devagar, o filme nos traz um detalhismo que deixa até mesmo os outros títulos do Studio Ghibli com inveja. Um tomate sendo cortado sem fazer sujeira. A mistura de pessoas à paisana e de yukata no festival de verão. O sacolejar de um carro pequeno lotado de tranqueiras de viagem. O jeito certo de se comer ovo frito com hashi.

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a referência, para os curiosos

Há quem diga que vivemos em tempos tão cibernéticos que ninguém mais se interessa por coisas reais. A popularidade dos filmes do Studio Ghibli me faz questionar o palpite. Não se trata apenas de “realismo”, mas de honestidade com o mundo de verdade. Poucas coisas nos tocam como aquelas que, como a casa de vigas irregulares, nos fazem lembrar de que dividimos o mesmo mundo. Como entregar esse tipo de obra é tudo menos fácil, e os animadores do Ghibli são tudo menos comuns, esse pode ser o caminho para o futuro do estúdio.

O diferencial é a alma do negócio

Em sua queixa contra o excesso de hype na E3, a colunista de games Liana Kerzner disse (com muita razão, diga-se de passagem) que trailers cinemáticos não servem para nada. Nos dias de hoje, “ser bonito” não é suficiente. Todos os jogos são bonitos.

A colocação também vale para o anime. Foi-se o tempo em que a diferença entre uma série “comum” e uma superprodução à la Nausicaa  nos fazia pensar que se tratavam de mídias diferentes. A animação japonesa mainstream melhorou e muito. Computação gráfica se tornou um recurso comum. O outsourcing para a China e Coreia reduziu os custos de produção. Tirando os efeitos de luz e água dos filmes do Shinkai, é bem difícil encontrar algo que faça nosso queixo cair.

Adicione a isso o fato de que o Studio Ghibli dificilmente continuará o rei de bilheterias. Princesa Mononoke foi o filme mais visto da história do Japão, perdendo apenas para Titanic. Mesmo o pouco ortodoxo Vidas ao Vento faturou US$ 120 milhões de dólares. Já Marnie, sem a assinatura de Miyazaki, não lucrou sequer um quarto disso. O criador de Totoro não é só um grande artista; ele é uma marca pela qual as pessoas pagam mais. O estúdio se recusa a fazer outsourcing, então é pouco provável que os custos diminuam se continuarem do jeito que estão. E Miyazaki em pessoa disse achar que a “era do lápis, papel e filme está chegando ao fim“.

As coisas precisam mudar, mas é importante que os dirigentes do estúdio mantenham aquilo que os distingue dos outros. Em tempos de filmes grandes, épicos e impressionantes, são os pequenos detalhes que farão a diferença. Nunca antes a animação de uma garota comendo um ovo, caindo na água ou cortando um tomate foi tão importante.