Computadores podem te fazer chorar?

Essa foi a pergunta de um anúncio da Electronic Arts do início dos anos 1980, quando videogames ainda eram novidade.

Hoje, numa época em que games estão no acervo de museus e inspiram livros de poesia, é dífícil acreditar que isso um dia gerou dúvida. Pergunte a um gamer se já derramou lágrimas diante de uma tela e é provável que você precisará de um lugar para sentar. A resposta será longa – e, provavelmente, deixará você também em prantos.

Até que ponto nos emocionamos com um dado jogo depende de nossas experiências pessoais. Porém, não é segredo que alguns títulos forçam a barra para nos encolher à posição fetal.

Nier: Replicant, clássico cult de 2010 remasterizado esse ano aos novos sistemas, é um deles. Esquisito, avant-garde e não tão polido em termos de gameplay, o jogo de Yoko Taro é um exemplo da diferença que faz uma bela história. Não fosse sua capacidade sobrenatural de nos tocar pelas vísceras, é provável que acabasse tão abandonado e esquecido quanto as ruínas de seu universo pós-apocalíptico.

Qual, é o segredo? Como era de se esperar de um game com cinco finais diferentes, a resposta é mais complexa do que parece.

(AVISO: Contém SPOILERS de Nier: Replicant)

1) Ele nos motiva a fazer coisas. As mesmas coisas. Muitas vezes

Até seu mais ardente fã reconhece: Nier eleva o grinding a níveis estratosféricos, mesmo para o padrão de JRPGs. E não falo apenas das múltiplas vezes que somos obrigados a completar suas missões para acessar todo seu conteúdo.

Se colocarmos na ponta do lápis, veremos que a maior parte do jogo não passa de fetch quests. Muitas vezes, envolvendo itens raros, que exigem que visitemos os mesmos cenários incontáveis vezes, lutando contra hordas de inimigos idênticos.

Curiosamente, o que parece à primeira vista seu grande defeito é também a principal razão de seu charme.

Isso porque repetição não serve apenas para encher linguiça. Como todos aqueles que já choraram com um refrão de uma música sabem, ela é uma excelente maneira de nos fazer lembrar das coisas. Inclusive de sentimentos.

É fácil tratar NPCs em um RPG como meios a um fim: ferramentas, com máscaras humanas, que usamos para descansar, obter quests, vender itens e mais. Muitos são os games em que pessoas são reduzidas a objetos, vending machines à nossa conveniência.

As quests de Nier, pelo contrário, nos forçam a encarar NPCs como pessoas. E funcionam justamente porque são repetitivas.

Úrsula, a mulher do farol, não nos pareceria tão ingrata se não tivéssemos de subir e descer uma escadaria para atender a cada um de seus pedidos. A morte do velho pescador só nos parece significativa porque gastavamos horas a fio completamento cada uma de suas nove missões.

Popola e Devola não seriam tão parte da vida de Nier – e sua virada final jamais seria tão impactante – se não tivessem agido como quest givers de tantas tarefas banais ao longo de todo o jogo.

Mesmo os upgrades de armas, maior fonte de griding do jogo, são deveres “humanizados” que nos presenteiam com histórias. Muitas delas relacionadas a personagens e cidades que visitamos.

Nier: Replicant cria esses laços afetivos desde seu prólogo, mas é na segunda parte que entendemos,  visceralmente, o que eles significam. É apenas quando a vila de Popola é atacada que sentimos o vazio deixado pelos NPCs que morreram.

A mudança também afeta o meio-ambiente. Na medida em que as sombras se tornam mais forte, animais ficam mais raros. As focas na praia de Seafront desaparecem – talvez ( o jogo não nos conta) comidas pelos aldeões, cujos suprimentos minguam dia após dia.  

Estamos diante de um mundo em colapso. E é apenas por conhecê-lo tão bem que sentimos a gravidade de sua decadência.

2) Ele soa como se tívessemos acabado de chegar no paraíso. No meio do ensaio da orquestra angelical

Ainda mais que sua sensibilidade, Nier: Replicant é renomado por sua música. Mesmo aqueles que nunca jogaram o game já devem ter ouvido algumas de suas belas faixas.

Mas a música de Okabe não é apenas marcante. É marcante de uma maneira  muito específica. A combinação de uma orquestra bombástica, instrumentos eletrônicos e vocais líricos estaria mais em casa em um clipe velho do Nightwish do que em uma história que se pretende séria.

Tente imaginar Song of the Ancients embalando Nomadland ou Gods Bound by Rules na trilha de The Last of Us: Part 2 e entenderá o que quero dizer.

O SAY EEM MANOWEN EE SO HEE I

Sua trilha tem, sim, muito a ver com o universo do anime. Em especial, com o tipo de música industrial e vocalizada que compositores como Yuki Kajiura e Hiroyuki Sawano transformaram em sua marca registrada.

Isso não é uma coincidência.

Filmes live action contam com edição de primeira, cinematografia e expressividade de seus atores para contar uma história. Embora a trilha ajude, não esperamos que ela venda o peixe por si só. Um simples close no rosto de uma personagem pode passar mais emoção que todos os instrumentos do mundo.

Não é à toa que estudantes de cinema às vezes recebem a dica de que precisam assistir a filmes no mudo.  Sem a música para ajudar, fica claro se os elementos visuais estão fazendo seu trabalho direito.

Animes para a TV  são uma mídia bastante diferente. Estúdios operam a toque de caixa, dando espaço limitado a diretores para que exercitem toda sua criatividade. Por mais que contem com olhos gigantes e designs exagerados, suas personagens não chegam aos pés da expressividade de um ser humano. Movimentos labiais são simples e não tem a intenção de “bater” com o diálogo que está sendo dito.

Como disse a própria Yuki Kajiura – que tem no currículo trilhas como Fate/Zero, Madoka e Noir:

Na animação, a música desempenha um papel mais importante que em filmes de verdade porque filmes têm som e atmosfera. Mas às vezes a animação sofre com a falta de alguma coisa. Se é apenas a imagem, é difícil de entender, mas a música adiciona atmosfera e cria uma atmosfera completa para a cena em aprticular. […] A melhor trilha sonora não é apenas sobre a música, mas transmite muitas emoções e sentimentos em uma cena em particular.

Com Nier: Replicant é a mesma coisa.

Mesmo para os padrões de 2010, quando foi originalmente lançado, o game de Yoko Taro não era uma produção das primeiras. Sua fidelidade gráfica não é das melhores. O jogo conta com pouquíssimos modelos de personagem. Sua animação é tão limitada que seus NPCs sequer mexem os lábios – coisa que o jogo esconde, com uma câmera que nos impede de ver seus rostos de perto.

Mas animação fina é desnecessária em um jogo que conta com faixas como Emil / Sacrifice, Grandma ou Song of the Ancients. É difícil não se emocionar quando nosso próprio corpo reage com calafrios.

3) Ele nos lembra que, no grande esquema das coisas, somos insignificantes

Esse é um ponto que o jogo tem em comum com sua sequel – sobre a qual já escrevi no passado. Ainda assim, não dá para não mencioná-lo de novo. Replicant/Gestalt, afinal de contas, é o tubo de ensaio onde a criatividade errática de Yoko teve a oportunidade de amadurecer na genialidade de Automata.

Nier nos sacode nas bases porque nos lembra que somos insignificantes. Para mudar o mundo, para perpetuar nossas comunidades – até mesmo, para salvar a nossa consciência.

Sim, nós ações têm consequências. Algumas, como a exploração não-sustentável do meio-ambiente, podem bem trazer um apocalipse como o retratado pelo jogo.

Porém, mesmo a humanidade que perecerá nesse cataclisma é um ínfimo segundo diante da eternidade do universo. Um dia morreremos. Um dia, todos que nos conheceram morreremos. Um dia, não existirá mais sequer uma “Terra” para preservar as ruínas do que um dia fomos.

Essa é a linha mestra que une cada decisão criativa do jogo. Nier luta para proteger a vida de uma irmã, sem se dar conta de que ela não está mais viva. Os últimos habitantes da Terra se esforçam para preservar o que restou da civilização, sem se dar conta de que não são humanos e a verdadeira sociedade já há muito desapareceu.

Todos os inimigos que derrotamos? Em vão. Todos as armas que aprimoramos, os itens que colecionamos? Inúteis. Todas as pessoas que ajudamos? Meros replicantes, desprovidos de alma.

No fundo, nada importa.

Esse pessimismo está longe de ser novidade. Poucos deram voz a ele melhor que Percy Shelley em Ozimandias – um poema tão querido pela cultura pop que influenciou de Watchmen a Breaking Bad:

Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante:

Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,

Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,

Afundando na areia, um rosto já quebrado,

De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante:

Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia

Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,

À mão que as imitava e ao peito que as nutria

No pedestal estas palavras notareis:

“Meu nome é Ozymandias, e sou Rei dos Reis:

Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”

Nada subsiste ali. Em torno à derrocada

Da ruína colossal, a areia ilimitada

Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.

É um texto que poderia servir de epitáfio à cidade de Façade, mas que cai como uma luva à vida de Nier e seus amigos. Nossas ações podem parecer relevantes no momento em que as tomamos. Porém, nos quase 14 mil anos que separam Replicant de Automata, serão completamente esquecidas, como os obras de Ozimandias.

E o game torce a faca nesse ponto, literalmente apagando nossos saves tão cedo chegamos no final.  

Mas é justamente aí que a versão 1.22474487139…, como seu remake é chamado, mostra a que veio.

Seu novo epílogo, inédito no jogo original, deixa claro que a mesma insignificância que nos condena pode ser nossa maior salvação.

Se o futuro longínquo nos reserva apenas o vazio, estamos livres para construir nossa felicidade no aqui e no agora.

Se a vida não tem sentido, cabe a nós dar a ela o sentido que escolhermos.

Se a marcha da história nos leva a um caminho sem fim, não há por que vivermos sob as amarras da tradição, dos rancores, do passado.

O rei de Façade pode abandonar seu posto, sacrificando a vida em nome de Nier. Yonah pode ceder lugar a sua replicante, condenando à morte toda a humanidade. E Kainé pode abandonar o ódio que a alimentou desde a morte da avó, pois seu coração finalmente descobriu algo mais forte.

Um instante, conquanto efêmero,  em que ela sabe que está completa.