73,4% dos brasileiros joga jogos eletrônicos, segundo a última pesquisa Game Brasil. Mais de 2 milhões (incluindo este que vos fala) já prestigiaram a BGS, maior evento de games da América Latina. Os e-sports são uma indústria bilionária. Personagens icônicas da mídia, de Sonic à Comandante Shepard, não só ultrapassaram os consoles, como hoje fazem parte da mitologia de nossa época.
De todos os símbolos nacionais de seu país, foi de Mário que Shinzo Abe, ex-premiê conservador do Japão, decidiu se vestir para anunciar as (hoje canceladas) Olimpíadas de Tóquio:
Faço essa breve introdução para reforçar que os videogames, hoje em dia, estão longe de ser uma mídia marginalizada– por mais que certos gamers românticos gostem de cultivar essa imagem para si.
É esse romantismo – às vezes, fora de lugar – que permeia GDLK, minissérie da Netflix sobre os primórdios dos jogos eletrônicos.
“Godlike”
Narrada por Charles Martinet, o dublador do Mário, GDLK não se propõe a ser uma “história dos games” mais do que uma coleção de anedotas sobre uma época pitoresca em que jogos vinham em cartuchos e Pelé fazia comercias do Atari.
Três dos episódios dizem respeito a momentos cruciais na história dos games: o surgimento dos consoles e a crise de 1983 (Episódio 1), a entrada da Nintendo no mercado (Episódio 2) e a homérica rivalidade entre a Nintendo e a Sega nos anos 1990 (Episódio 4).
Os demais são dedicados ao desenvolvimento de gêneros específicos: RPGs (Episódio 3), luta (Episódio 5) e FPSs (Episódio 6). Estes tópicos são ganchos mais do que linhas de argumentação. O documentário não hesita em saltar de um tema para o outro ao sabor das experiências contadas por seus entrevistados.
Entre o rol de personalidades, GDLK conta com gigantes do naipe de John Romero e Toru Iwatani, mas também com nomes menos conhecidos.
Éo caso de Shaun Bloom, que trabalhou como um conselheiro de jogos da Nintendo: especialistas a quem gamers telefonavam atrás de dicas antes da invenção de detonados ou subreddits.
O próprio fato de ter existido um serviço de telemarketing dedicado a ajudar gamers a passar de fase deve soar absurdo às novas gerações. Mais chocantes, no entanto, eram as condições de treinamento, que fazem de Nolan Sorrento, vilão de Jogador No 1, parecer um chefe modelo.
Bloom fala de uma rotina de gritarias, surpresas e rasteiras diárias. Seu supervisor fazia testes surpresas interrogando seus pupilos sobre cada dungeon, item ou easter egg nos jogos da companhia. Era apenas graças à força da nerdice que Bloom e seus colegas encontraram forçar para perseverar.
Pior ainda é o caso de Gail Tilden, diretora de marketing responsável pela introdução da revista Nintendo Power nos EUA. Obter autorização de seus chefes japoneses foi tarefa custosa, e sua assertividade lhe rendeu um apelido pouco lisonjeiro: “dragoa”.
GDLK apresenta essas e outras anedotas como relatos de uma era mais simples; um faroeste em que jovens adultos, movidos por quase nada além do amor por jogos, gozaram da liberdade criativa para inventar uma mídia do zero.
É difícil, porém, enxergar a diferença entre esses episódios e os problemas estruturais que abalam a indústria de games até os dias de hoje.
Não seria o abuso que Bloom relata um prenúncio da cultura de crunch que levou companhias como a Rockstar e EA à vergonha global?
Não seria a humilhação sofrida por Tilden um introito das experiências vexatórias de tantas funcionárias da Ubisoft sob o jugo de Serge Hascöet?
Até que ponto, ao apresentar esses testemunhos não como absurdos, mas curiosidades, GDLK não é cúmplice na cultura de conformação que impediu, por tantos anos, que tais abusos viessem à tona?
Uma mídia para todos
Insistir demais nesse ponto talvez seja perder de vista o objetivo da série. GDLK, afinal de contas, não é um documentário voltado para gamers, mas sim leigos que desconhecem o sentido da sigla “RPG” ou mesmo o que é um “Atari”.
Ironicamente, esse mesmo público dificilmente saberá o que significa “GDLK” – sigla para godlike, gíria pouco utilizada fora dos jogos competitivos. O título original, High Score, é muito mais apropriado.
Felizmente, o documentário distoa da falta de tato dos tradutores à versão brasileira. Na série, termos, personalidades e referências são explicados em um tom didático, com o entusiasmo de um pai que mostra aos filhos da geração Z seus volumes antigos da Nintendo Power.
Nesse sentido, a estética retrô do documentário, com interlúdios em pixel art pontuando as entrevistas, parece feita sob medida para atender a uma imagem folclórica do que videogames são.
Boa parte das anedotas que seus episódios trazem – da maneira como o jogo E.T. quase levou a indústria inteira à falência, à origem do nome da personagem Kirby – são bastante conhecidas por fãs de jogos eletrônicos. Elas fazem , no entanto, um excelente trabalho de humanizar o esforço criativo por trás dos clássicos do gênero.
Entre os entrevistados estão Rebecca Heineman, campeã de Space Invaders em uma época em que e-sports eram um hobby de garagem. Ryan Best, criador de GayBlade, o primeiro jogo abertamente LGBT+ da história. Gordon Bellamy, cuja paixão pela série Madden o levou a buscar um emprego na produtora EA. O profissional foi o responsável por introduzir jogadores negros pela primeira vez na história da franquia.
GDLK brande essa e outras entrevistas como uma profissão de fé em prol da diversidade em games. A mensagem de fundo é que games não são feitos somente de pixels ou polígonos, mas dos sonhos coletivos de todos aqueles que os usam e os usaram para se autoexpressar.
Dar voz aos jogadores, independente de quem seja, sempre foi sua força vital.
É possível questionar a honestidade intelectual dessa abordagem. Ela celebra a tenacidade desses gamers e desenvolvedores, mas pouco fala das dificuldades que os obrigaram a batalhar em primeiro lugar.
Quantos Gordon Bellamys amargaram decepções para que um deles conquistasse seu emprego dos sonhos? Quantos GayBlades não foram perdidos às brumas do passado, esquecidos em disquetes e arquivos que nunca mais viram a luz do dia?
GDLK prefere focar nas histórias de sucesso, não nos casos menos felizes que mostram que o progresso nunca é rápido ou definitivo.
À luz de 2020, pode parecer pouco. No entanto, o próprio fato de se esforçar para associar games ao que há de melhor no ser humano é a prova do quanto as coisas mudaram.
Não faz muito tempo que jogos apareciam na grande mídia única e exclusivamente como bodes expiatórios para todo tipo de polêmica. GLDK não só se nega a reduzir games a estas discussões, como defende abertamente a mídia.
O pânico moral que associou RPGs ao satanismo nos anos 1990 aparece apenas em seu episódio 3 – e, mesmo assim, sob uma ótima crítica. Não há menção à Jack Thompson, que em 1997 processou produtoras de games pelo atentado na Colégio Heath, em Kentucky. O mesmo advogado lideraria uma cruzada moralista ao GTA na década seguinte, que resultaria na exclusão de seu direito de exercer a profissão em 2007.
A Doom, clássico dos jogos de tiro, o documentário dedica quase um episódio inteiro. O foco, porém, não é sua violência gráfica, que o levou a ser culpabilizado pelo Massacre de Columbine em 2001. Pelo contrário, GDLK o louva pelo seu seu papel de facilitador no surgimento de uma cultura participativa.
Sem o game, a série explica, não teríamos a cultura de modding que contribuiu para a transformação de Skyrim em um marco da cultura pop. Isto sem falar em clássicos como Team Fortress ou Counter Strike, originalmente mods de Quake e Half Life, respectivamente.
Uma redenção aos games
Parte panegírico, parte história dos games, GDLK escolhe para si um palco estreito. A falta de uma linha argumentativa coesa e reflexões mais aprofundadas correm o risco de torná-lo banal a gamers veteranos. Por outro lado, pergunto-me até que ponto seu contínuo apelo ao fator nostalgia fará sentido aqueles que não cresceram com um joystick em mãos.
Tendo ou não sucesso, essa carta de amor à era de ouro dos games merece ser celebrada, se nada mais, pelo respeito ao seu objeto e sua positividade contagiante.
O histórico da Netflix com a cultura pop está longe de ser estelar. Universo Anime, outra de suas tentativas de explorar estas mídias, foi amplamente criticado por sua abordagem orientalista, preconceituosa e fatualmente incorreta da animação japonesa.
GDLK, de certa forma, é sua redenção, dando a ícones como Tomohiro Nishikado e Nolan Bushnell a deferência esperada do entretenimento mainstream. A seu conteúdo falta o peso de uma palavra definitiva, mas o esforço sem dúvida é um GG.
NOTA: Esse artigo foi originalmente publicado no site do ARISE, com título ““GDLK” : uma carta de amor (um tanto desajeitada) à história dos games”
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