Aqueles de vocês que acompanham o blog já devem ter percebido que sou historiador de profissão. Vocês também sabem (melhor que ninguém) que não me canso de escrever sobre games.

Esse mês, no entanto, trago uma novidade diferente. Uma tentativa de unir essas duas paixões – e oferecer, com sorte, algo que impressione tanto a gamers quanto a meus colegas de academia.

É com prazer que anuncio Os Triunfos de Tarlac, meu primeiro board game histórico.

Por que um jogo e porque esse jogo?

Pense em um jogo histórico. Pode ser um game de proporções épicas, como Crusader Kings, ou um jogo de tabuleiro singelo como Tokaido. Mesmo que você não costume acompanhar o trabalho de historiadores, deve concordar comigo que jogar e ler sobre o passado são coisas bastante diferentes.

Games permitem não apenas vivenciar episódios históricos, mas também desafiem nosso entendimento sobre eles. Do resultado de batalhas às próprias leis da física, nada é sagrado demais para gamers. A mídia seria sem muito mais sem graça se não púdessemos fazer saltos de confiança ou “pintar o mapa” com as cores de nosso império.

Infelizmente, isso nem sempre é útil para nós, historiadores. Jogos comerciais criam interesse pelo passado – e podem até nos ajudar a refletir sobre alguns temas espinhosos. Mas eles não fazem jus ao tipo de argumentação – e nível de rigor – esperados de uma tese acadêmica.

Mas e se houvesse uma ferramenta capaz de preencher essa lacuna? Um jogo capaz de dar vida às nossas hipóteses sobre o passado garantindo que pouca coisa fosse perdida em tradução? Uma maneira de explorar, entender – e, por que não, questionar – os trabalhos de historiadores de uma forma divertida?

Os Triunfos de Tarlac é minha tentativa de transformar essa ideia em realidade. Baseado na minha pesquisa de doutorado, ele é um board game ambientado da Irlanda dos séculos XIII e XIV. Na pele de reis gaélicos e magnatas ingleses, jogadores deverão lidar com desafios como guerras dinásticas, assassinatos políticos, crises alimentares e mudanças climáticas.

Nossa equipe é formada por historiadores do Laboratório de Estudos Medievais da USP e pesquisadores do ARISE, um grupo de estudo especializado no uso de games e tecnologia na pesquisa arqueológica.

Nossa proposta é observar como os jogadores se virarão para lidar com os problemas de 1276-1318. A partir daí, analisando suas soluções a luz de nosso modelo histórico, poderemos refinar nossas hipóteses sobre o que realmente aconteceu.

Tudo isso, é claro, é apenas parte da história. Nós também desejamos apresentar a fãs de board game um período histórico pouquíssimo estudado fora da Irlanda.

Mas quem, afinal, foi “Tarlac”?

O reino de Thomond no século XIII

Tarlac (em irlandês, Toirdhealbach) Ó Briain foi o rei de um reino chamado Thomond, na costa oeste da Irlanda – região que é hoje conhecida como o condado de Clare.

Que, por razões não relacionadas, é também um dos mais populares destinos turísticos da Irlanda. Fonte da Imagem

Como outros reis irlandeses do período, os membros do clã Uí Bhriain eram oficialmente vassalos da Coroa inglesa. Neste caso, por meio de sua vassalagem a um magnata local, Thomas de Clare. Na prática, os Uí Bhrian eram mais ou menos livres para reinar sobre seus territórios em troca de tributos e serviço.

Infelizmente, esse vínculo de obediência nem sempre o protegia contra seus inimigos irlandeses. Mais infelizmente ainda, reinos irlandeses costumavam explodir em conflitos dinásticas com uma certa frequência.

Entre 1276 e 1318, a região foi palco de uma violenta guerra do tipo. Os beligerantes foram os descendentes de Tarlac e os de seu rival, Briain Rua Ó Briain. O Clã Tarlac – como sua linhagem veio a ser conhecida – saiu vitorioso e foi imortalizado em uma saga conhecida como Caithréim Thoirdhealbhaigh: Os Feitos de Combate (ou “Triunfos”) de Tarlac.

Um dos manuscritos de “Os Triunfos de Tarlac”

É a história por trás dessa récita a que nosso board game pretende dar vida. Jogadores deverão controlar ou Thomas de Clare ou um dos vários subreinos de Thomond e garantir que a facção que apoiam – Clã Tarlac ou Brian Rua – saia vencedora.

Triunfar nessa guerra dependerá de mais que garra política O final do século XIII e início do século XIV foram um período complicado na história da humanidade. O planeta passava por um esfriamento global conhecido como A Pequena Era do Gelo. Esta mudança climática provocou uma bateria de problemas como colheitas arruinadas, pestes animais e dificuldades econômicas.

É possível que essas adversidades tenham tido um papel na vitória do Clã Tarlac?

É isso que Os Triunfos de Tarlac – com a ajuda dos jogadores – pretende averiguar.

Obviamente, botar algo em prática é sempre mais difícil. Convenções de game design, afinal de contas, estão aí  por um motivo. É mais fácil fazer um jogo divertido que respeite os princípios clássicos do gênero do que reiventar a roda em nome da validade histórica.

Nos próximos posts dessa série, compartilharei com vocês as etapas de nosso processo criativo – e os desafios que estamos enfrentando garantir que a história e o game design andam de mãos dadas.

Fiquem de olho!

Those of you who follow my blog must have noticed by now that I am a historian by training. You are also aware (more than anyone else) that I never tire of writing about games.

This month, however, I have something different for you. An attempt to combine these two passions of mine – and offer something that will (hopefully) impress both gamers and my colleagues in academia.

It is my pleasure to announce The Triumphs of Turlough, my first historical board game.

Why a game and why this game?

Think about a historical game. It doesn’t matter if it’s a videogame on an epic scale like Crusader Kings, or a charming board game like Tokaido. Even if you don’t usually follow the work of historians, you must agree that there’s a difference between playing and reading about the past.

Games allow us not only to experiment historical episodes, but also to challenge our knowledge about them. From the outcome of battles to the very laws of physics, nothing is too sacred that gamers are not willing to meddle with. The medium would be a lot less fun if we couldn’t perform leaps of faith or “paint the map” with the colors of our empire.

Unfortunately, this isn’t always useful to us, historians. Commercial games may foster interest for the past – and can even help us think about some thorny themes. But they don’t live up to the level of argumentation – and rigor – expected of a scholarly monograph.

But what if there was a tool to fill in this gap? A game that was able to bring life to our hypotheses about the past while making sure that as little as possible was lost in translation? A way to explore, understand – and, why not, question – the works of historians in an engaging way?

The Triumphs of Turlough is my attempt to make this idea into reality.  Based on my PhD research, it is a board game set in Ireland in the 13th and 14th centuries. In the role of Irish kings and English magnates, players will have to deal with challenges like dynastic feuds, political assassinations, food crises and climate change.

Our team is made up of historians from Laboratório de Estudos Medievais da USP and researchers from ARISE, a study group specialized in the use of games and technology for archaeological research.

Our goal is to observe how players handle themselves in dealing with the historical problems of 1276-1318. From there, we will analyze their solutions in light of our historical model and use them to refine our hypotheses about what really happened.

That, of course, is just part of the story. We also hope to introduce board game enthusiasts to a historical period that is little known outside Ireland.

But who, after all, was “Turlough”?

Turlough O’Brien (in Irish, Toirdhealbach Ó Briain) was the king of a chiefdom called Thomond, in the west coast of Ireland – a region that is now known as county Clare.

For unrelated reasons, also one of the most popular touristic destinations in Ireland. Image source

Like other Irish kings of the period, the O’Briens were officially subjects of the English Crown In their case, by means of a bond of vassalage to a local magnate, Thomas de Clare. In practice, however, the O’Briens were more or less free to rule over their territories in exchange for tributes and service.

Unfortunately, this bond of submission not always protected them from their Irish enemies. Even more unfortunately, Irish kingdoms were prone to erupt into dynastic feuds between rival factions of the clan.

Between 1276 and 1318, Thomond was the stage of one such violent war. The belligerents were the descendants of Turlough Ó Briain and those of his enemy Brian Rua Ó Briain. Clann Turlough – as his lineage came to be called – ended up victorious and was immortalized in a saga known as Caithréim Thoirdhealbhaigh: The Battle Deeds (or “Triumphs”) of Turlough.

One of the surviving manuscripts of “The Triumphs of Turlough”

It is the history behind this account that our board game wishes to draw upon. Players will take control of either Thomas de Clare or one of the subkingdoms of Thomond and make sure that the faction they support – either Clann Turlough or Clann Brian Rua – come out on top.

Winning this war will depend on more than political mettle alone. The end of the 13th c. and beginning of the 14th c. was a complicated period in human history. The planet was going through a period of global cooling known as the Little Ice Age. This episode of climate change led to an avalanche of problems such as harvests failures, animal murrains and economic difficulties

Is it possible that these adversities played a role in Clann Turlough’s ultimate victory?

This is what The Triumphs of Turlough was designed to find out — with the help of our players.

Obviously, making something work is always harder in practice.  Game design conventions, after all, are there for a reason. It is easier to make a fun game that obey the classic tenets of its genre than attempt to reinvent the wheel in the name of historical validity.

In the next posts in this series, I will share with you the ins and outs of our creative process – and the challenges that we are facing to ensure that history and game design walk hand-in-hand.

Stay tuned!