Fabien Vehlmann e Kerascoët (nome artístico do casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset) são uma parceria de peso. Juntos, os três assinaram o macabro Jolies Ténèbres, fantasia sobre os demônios da natureza humana.
Combinando uma imaginação cruel com um traço inocente, o BD preparou terreno ao mangá Made in Abyss, outra celebrada pérola sobre a perda da inocência.
Essa não foi a primeira vez em que o trio atacou o tema. Lançada nos EUA no mesmo ano em que o mangá de Akihito Tsukushi ganhos as telas (e ainda inédita no Brasil) Voyage en Satanie conta uma história ainda mais ousada.
A viagem de um equipe de exploradores para encontrar o Inferno.
Não o lugar fictício das religiões organizadas, mas o inferno real, que existe (a despeito da nossa ignorância) debaixo dos nossos pés.
Viagem ao centro da Terra
Voyage en Satanie (“Viagem a Satânia”, lançada em inglês como Satania) conta a história de Charlie, uma garota cuja mãe diz ter sido “estuprada por um demônio”.
Incapaz de acreditar que ela esteja louca, seu irmão, Christopher, decide comprovar cientificamente a existência do inferno.
O jovem parte em uma viagem às profundezas da Terra confiante de que há um mundo paralelo abaixo dos nossos pés. Habitado por hominídeos retorcidos e chifrudos – não por maldade, mas pelo simples curso da evolução.
Meses se passam, contudo, sem que sua família receba qualquer notícia. Disposto a encontrá-lo, Charlie encabeça uma missão de resgate que a levará por caminhos que nunca antes ousou desbravar.
O resgate dá início a uma jornada digna de Viagem ao Centro da Terra, o clássico de Júlio Verne. Em termos de poder imaginativo, chega até a superá-lo. Vehlmann e Kerascoët lançam suas personagens contra florestas de cristais, utopias escavadas na rocha, geometrias lovecraftianas e figuras que parecem saídas de um delírio lisérgico.
É um mundo vibrante que parece ter uma lógica própria, por mais distante que seja da nossa natureza. Em algumas tomadas, como uma floresta de raízes que parecem árvores invertidas, ou cavernas que se revelam bocas escondidas, sentimos estar no submundo titular de Made in Abyss.
Charlie e o Padre Monsore, principais membros da expedição, possuem personalidades e habilidades conflitantes, num jogo de opostos que lembra Riko e Reg do mangá de Akihito.
Charlie é jovem e impetuosa, compensando com coragem uma brutal ingenuidade em relação aos perigos do submundo. Monsore é pragmático e relutante, mas sabe como ninguém como sobreviver em lugares ermos.
Missionário experiente, ele está mais do que acostumado a desbravar florestas, enfrentar perigos naturais e lidar com povos hostis para espalhar a palavra de Deus. É justamente esse propósito, logo descobrimos, que o levou a acompanhar Charlie.
Monsore vê a existência de um inferno “científico” como a última fronteira da fé. Para ele, os satanianos (como chamam os habitantes do submundo) são pessoas como quaisquer outras, à espera da civilização e da palavra do Senhor.
Suas tentativas de domesticar os hominídeos rendem algumas das cenas mais divertidas do quadrinho, com Monsore “batizando” seu rebanho com nomes de diabos famosos da tradição abraâmica.
Infelizmente, ao tentar “criar raízes” e domesticar satanianos, Monsore não apenas cria atritos com Charlie, que anseia em encontrar seu irmão, mas com a própria natureza do inferno.
Pois o “inferno”, eles descobrem, não é simplesmente um lugar. É um verdadeiro organismo em estado de fluxo em que nada se repete nem permanece igual por muito tempo.
A “arquitetura” natural é incoerente e inconstante. Passagens apodrecem e se desmancham, buracos surgem do nada e desaparecem com a mesma facilidade. Os satanianos não parecem ter nenhuma estrutura social, nenhuma faculdade complexa, nada além de seus impulsos mais básicos.
Nativos de um mundo em que o amanhã é imprevisível, eles aprenderam a viver apenas no hoje.
É nesse ponto que Satanie deixa de ser uma mera HQ para se tornar uma discussão fresca, surpreendente e inteligente sobre nossa própria relação com o mundo.
Pois esse “inferno”, se pensarmos bem, não é lá tão diferente da nossa realidade.
Uma coleira na própria história
Imagens de infernos – seja o clássico fumegante popularizado por Dante, sejam os outros “submundos” mitologia a fora – não têm a ver somente com pecado. Eles estão relacionados a algo mais elementar: a ortodoxia.
O conjunto de ideias, doutrinas e preceitos tidos como verdadeiros e desejáveis por uma determinada visão de mundo. E do aparato que garante que eles sejam respeitados.
Divindades rebeldes, demônios e outros “excluídos” são confinados ao submundo nem tanto pelo que fazem, mas porque ameaçam um projeto de autoridade.
É necessário que haja um líder que nos indique o caminho certo para que uma civilização exista. Do contrário, cada um de nós correria para um lado diferente e não saberíamos aonde ir.
A ideia de que o pluralismo é compatível com um projeto de sociedade demorou para vingar na história da humanidade. E mesmo ele só conseguiu emplacar quando criou para si sua própria religião cívica.
Isso acontece porque pessoas são mortais. Mais do que isso, porque também as nossas ideias, nossas línguas e conquistas um dia envelhecerão, desaparecerão e serão esquecidas. Para garantir que a ordem que nos é cara sobreviva, é necessário protegê-la do próprio tempo.
É essa a preocupação que vemos o tempo todo no discurso político, com temores de um “retrocesso”, de uma “onda de qualquer coisa”, do retorno dessa ou daquela tragédia do passado.
No fundo, o que mais assusta as pessoas é a perspectiva de que as coisas mudem. Pois mudanças são sempre imprevisíveis e podem nos levar ao pior.
É esse desafio, o de por uma coleira na própria história, que tem feito pensadores gastarem potes de tinta desde os primórdios do tempo. E que, levado às últimas consequências, habilitou as maiores atrocidades da nossa história.
Como dizia o filósofo Karl Popper sobre Platão:
[O próprio Platão] relata que ele esteve ‘desde o começo ansioso por atividade política’, mas também inibido pelas experiências preocupantes de sua juventude. ‘Ao ver que tudo pendia e mudava sem propósito, eu fiquei trêmulo e desesperado.’ Do sentimento de que a sociedade, e, de fato, ‘tudo’ estava em fluxo veio, eu creio, o impulso fundamental da sua filosofia tal como da filosofia de Heráclito; e Platão sumarizou sua experiência social, tal como seu predecessor historicista havia feito, proferindo uma lei de desenvolvimento histórico. De acordo com essa lei, (…) toda mudança social é corrupção ou declínio ou degeneração.
O submundo de Vehlmann e Kerascoët é, no fundo, o retrato dessa angústia. De um lado, temos a utopia de uma sociedade perene, ordenada, em que tudo tem um propósito e todos vivem em seu lugar.
Na HQ, ela é representada por Ultima Thule, uma cidade subterrânea que a comitiva encontra no início de sua jornada. Batizada em homenagem a uma província fictícia nos mapas gregos, ela é uma cidade aparentemente perfeita, mas que esconde esqueletos no armário.
Criminosos e dissidentes são brutalmente punidos. O direito de ir e vir é limitado, e mulheres existem apenas como chocadeiras, numa distopia digna de Margaret Atwood:
Que Thule (a província fictícia) tenha inspirado uma sociedade secreta popular entre nazistas não é mera coincidência. A desconfiança não escapa a uma das personagens, que a associa de imediato com o fascismo:
Do outro lado, temos os satanianos que parecem viver livres como o vento, sem líderes ou subordinados, sem normas ou obrigações. Indivíduos que vivem para eles mesmos, no aqui e agora, não em prol de uma imortalidade no paraíso.
Depois de fugirem da opressão de Thule, não demora para que um membro da expedição comece a pensar que o inferno, no fundo, é uma espécie de paraíso.
Num argumento que faria William Blake sorrir, ele reflete que os satanianos talvez vivam mais próximos das “leis de Deus” que os devotos das religiões abraâmicas.
Mas seria esse mundo inconstante, livre das hierarquias, tradições e instituições realmente melhor? Seria mesmo preferível – quando não possível – viver em uma realidade limitada ao hoje?
Num mundo sem futuro, qual é a necessidade de ter um propósito? E sem um propósito, qual é a necessidade de viver? Para que alimentar-se, sobreviver e procriar, se seremos invariavelmente mortos e comidos por alguém mais forte?
Numa natureza fluida, em que nada se repete e tudo é uma surpresa, qual é a função da inteligência? Do aprendizado? Da memória?
O que, enfim, nos separaria dos animais?
Escravos da natureza? Ou prisioneiros da cultura?
Essa, afinal, é a consequência inescapável dessa “liberdade”.
Ao abraçar o imediatismo dos satanianos, Charlie vislumbra regredir a uma escuridão anterior mesmo à Idade da Pedra, com suas hierarquias primitivas e cosmogonias simples: mundo anterior à própria linguagem.
Satanie não é uma apologia de um ou outro modo de pensar, mas uma constatação de que nós, tal como seus protagonistas, estamos na corda bamba entre dois infernos: Satânia e Thule. O medo de nos tornarmos escravos da natureza ou prisioneiros da cultura.
Vehlmann e Kerascoët ganharam fama contando histórias simbólicas, provocativas, mas que nunca pendem ao moralismo. Satanie evita essa armadilha com o cuidado de um explorador percorrendo território desconhecido.
O trio de quadrinistas mostra mais do que julga; oferece mais perguntas que respostas. Da mensagem vaga à ausência de antagonistas ao final aberto (no melhor estilo francês), eles não têm medo de nos deixar no escuro, atormentados por nossas próprias dúvidas.
Eis um grupo de artistas que confia em seus leitores o suficiente para deixar que cheguem às próprias conclusões. Em tempos de arte panfletária, em que escritores se consideram profetas pregando a um rebanho de ovelhas, seu BD é uma lufada de ar fresco.
Rapaz, que quadrinho interessante. Fiquei fascinado pela história contada com… esse traço. E fiquei bem interessado no Made in Abyss. Belo post!