Muito tempo atrás, os quadrinhos norte-americanos passaram por uma revolução. Inspiradas pelo sucesso de Watchmen e O Retorno do Cavaleiro das Trevas, editoras apostaram em versões “dark” de seus heróis favoritos.

A virada solidificou a chamada Era das Trevas dos comics. Entretanto, seus excessos levaram a algumas das histórias mais cínicas, apelativas e datadas do gênero.

As garotas mágicas dos animes fizeram um percurso similar, que teve seu auge em 2011 com Puella Magi Madoka Magica. E, tal como seus predecessores americanos, a magia parece  ter começado a falhar.

Mahou Shoujo Site, um dos mais chocantes exemplos de mahou shoujo “dark”, acaba de ganhar uma adaptação. E a recepção… não foi das melhores.

A obra, que já no primeiro episódio nos joga cenas de bullying, violência contra animais e garotas dançando entre espermatozoides, de fato nos obriga a fazer algumas perguntas.

Onde termina a “desconstrução” e começa o exploitation? Quando que o cinismo se torna excessivo? Até que ponto o comentário justifica o sadismo?

Para responder a essas questões, é preciso ir além da superfície.

O sofrimento que corrompe

É difícil assistir Mahou Shoujo Site e não se sentir repugnado pela violência gratuita. Quando uma cena de transformação faz uma garota chorar (literalmente) lágrimas de sangue sabemos que já não estamos mais no Kansas.

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Aqueles que aguentarem o bastante, porém, terão uma agradável surpresa. Por trás da nojeira e do mau-gosto, há muito a se gostar na história de Kentarou Satou.

Como eu argumentei em uma coluna passada, Mahou Shoujo Site é uma obra sobre agência. Garotas mágicas, Satou nos lembra, não são apenas super heroínas. Elas são verdadeiras deusas, com o poder de mudar a própria realidade.

Os familiares dessas histórias lutam para encontrar alguém digno de usá-lo. Usagi, Sakura e companhia são pessoa especiais, escolhidas a dedo porque têm a capacidade de fazer do mundo um lugar melhor.

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Mas e se tal poder caísse nas mãos de desajustados? E se Luna, Artemis ou Kero-chan escolhessem não garotas-modelo, mas o pior que a humanidade tem a oferecer?

Mahou Shoujo Site nos faz essa pergunta. Em capítulos que testam o estômago até dos mais fortes, vemos órfãs, vítimas de bullying e abuso sexual redistribuindo sofrimento com seus báculos mágicos. Contra aqueles que as fizeram sofrer, mas também (e sobretudo) contra si próprias.

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É uma mensagem tão poderosa quanto suas anti-heroínas, que se sobressaí mesmo na gorefest descompromissada de Satou.

O sofrimento, por si só, não molda caráter. Dar poder a vítimas pode ser o caminho mais rápido para formar novos vilões. Se o poder for absoluto, tanto pior o resultado.

Não é uma mensagem inventada por Mahou Shoujo Site. Pelo contrário, ela circula nos animes há anos, chocando-nos, surpreendendo-nos e fazendo-nos pensar muito antes de uma certa Homura aprender a voltar no tempo.

Muito antes de Madoka

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Uta Kata, lançado em 2004, é um desses precursores.

A série acompanha Ichika Tachibana, uma garota que leva uma vida normal até encontrar um espelho misterioso. No lugar de seu reflexo, ela encontra outra pessoa, com roupas e trejeitos que não parecem do nosso mundo.

Uta-Kata Anime Meninas

Manatsu, como ela se apresenta, lhe dá o poder de invocar gênios mágicos. O que se segue é um mahou shoujo que tica todos os requisitos que viemos a esperar do gênero.

Ao menos na superfície.

Na medida em que ela e seus amigos se colocam em apuros, Ichika usa seus novos dons para que tudo acabe bem. Cada episódio consiste numa “lição” sobre alguma virtude humana.

Para a surpresa de Ichika – e a nossa própria – estas lições são muito mais difíceis do que aparentam à primeira vista.

Não demora para que Ichika aprenda, tal como Peter Parker, que grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Para começar porque os desafios que tem de enfrentar não são vilões cartunescos, mas a boa, velha e cruel natureza humana.

Uma de suas amigas foi estuprada por um familiar. Outra é filha de yakuza, com todas as consequências que isto acarreta. Em um dos primeiros episódios, Ichika encontra um stalker. E uma tentativa de trazer alívio a uma paciente psiquiátrica quase resulta na pior das tragédias.

Os problemas não param por aí. Ichika descobre que os gênios são uma via de mão dupla. Quanto mais usa seus poderes, mais é consumida por eles. Suas intervenções se tornam mais extremas, e ela começa a perder controle sobre sua própria vida.

Como outras garotas mágicas, Ichika descobre que seus desafios são parte de um teste. Uma prova, contudo, que não implica em salvar o mundo das forças do mal ou capturar cartas perdidas. Sua tarefa é muito mais fácil. Ela só precisa responder a uma pergunta:

Todo o sofrimento que ela própria causou com a ajuda de seus poderes. Todo o sofrimento que ela fracassou em aliviar. Tudo o que ela viu de podre, de revoltante ao longo dos doze episódios.

De quem é a culpa?

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Quem é o culpado pelo que há de errado no mundo? O indivíduo que executa as crueldades, ou a sociedade que o cria, incentiva e falha em corrigi-lo?

Ouvimos do vilão por trás dos gênios que a pergunta já foi feita uma vez, mas que o candidato escolheu a resposta ruim. Mas haveria de fato uma resposta ruim?

Pergunta errada. Haveria uma boa?

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Se você acha que o dilema é simples, Alien 9 existe para provar o contrário. Lançada em quatro OVAs em 2001, a série não é um mahou shoujo stritu sensu, mas nos ensina mais sobre garotas mágicas que muitos exemplos do gênero.

Ele nos conta de uma escola que sofre com ataques alienígenas. Para proteger os alunos da ameaça, um representante de cada turma é escolhido para integrar uma brigada especial.

Para combater monstros, porém, é preciso que nós também nos tornemos monstros. Assim, alunas da brigada são forçadas a “vestir” um alien simbionte, que se gruda à sua cabeça e se alimenta do seu suor.

Da forma mais nojenta possível

Yuri Otani, escolhida contra a vontade, reage como qualquer pré-adolescente reagiria. Seu desespero não vem nem tanto dos aliens, mas da completa indiferença daqueles ao redor.

Os alienígenas são perigosos, mas ninguém parece se importar com a ameaça. Quando o alarme a avisa de uma nova invasão, uma das colegas de Otani responde com um sorriso blasé: “pelo menos você matará aula!”

Otani não tem o menor talento para a luta e recorre a todo instante a seu simbionte. Suas companheiras de brigada a criticam por ser chorona. A professora que as gerencia insiste em dar a ela os trabalhos mais perigosos.

Em momento algum Otani (ou a gente) recebe qualquer explicação. Por que ensinar garotas a lutar, se os simbiontes parecem capazes de fazer tudo por conta própria? Por que insistir em recrutar meninas à força quando há várias que o fariam por conta própria? Por que aliens caem justamente naquela escola?

Alien 9 prende Otani em uma distopia kafkiana em que tudo dá errado à protagonista, mas ninguém parece entender (ou se importar) com seu sofrimento.  Como Gregor Samsa transformado em uma barata, a garota vive um terror que parece só existir na sua cabeça.

Isso fica mais claro quando a série avança e o realismo é tacado pela janela. O absurdo cresce a tal ponto que Otani – e novamente a gente, enxergando o mundo pelos seus olhos – se torna incapaz de separar pesadelo e realidade.

Para alguns, a série é uma alegoria sobre o abuso sexual e a pressão que as vítimas sofrem para ficar caladas. De fato, é difícil assistir o anime sem pensar no gaslighting, fenômeno em que uma pessoa, por pressão externa, chega a duvidar das próprias memórias.

Para outros, é uma crítica às nossas próprias relações sociais, tão engessadas por protocolos, metas e deveres que ficamos cegos ao seu conteúdo humano.

Seja como for, é possível ver uma ligação direta entre o anime e a moda das garotas mágicas dark. Se mahou shoujo são fábulas de empoderamento, Alien 9, tal como suas versões sombrias, são uma viagem claustrofóbica de impotência.

Mas seria isso um mal? Ou uma faceta inescapável da vida?

As coisas ficam mais confusas quando descobrimos que os próprios adultos são aliens em disfarce.

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Durante um momento de pânico, uma Otani chorosa descobre que todos na sua escola se transformaram em alienígenas. Eles riem da sua desgraça, cantando alegremente:

Todo mundo, todo mundo é um alienígena

Todo mundo virará alienígena

Todo mundo vai virar um

Todas as crianças vão se graduar

Seus corpos vão mudar

Elas se tornarão adultas

E todo mundo é um alienígena

Qual seria a moral da história? Estamos todos condenados a nos transformar em monstros? A realidade é um pesadelo que aprendemos a tolerar? A puberdade é assustadora?

Talvez a moral seja justamente não ter uma moral. E a decisão de Alien 9 de encerrar sua história pela metade, adaptando apenas parte do mangá original, seja um testemunho em favor disso.

O choro de Otani, que ocupa quase todo o tempo de exibição de Alien 9, não é lá tão diferente do de Aya Asagiri, protagonista de Mahou Shoujo Site. Como eu já disse em outra ocasião, o que mais assusta não é a violência. É a arbitrariedade.

Conclusão

Yuuki Yuuna, um dos clones mais famosos de Madoka, termina com uma apresentação de teatro feita por suas personagens. “O mundo é cheio de miséria e desespero” diz a bruxa má. Cedo ou tarde, você terá de aceitar isso.

“Não” diz a heroína. É tudo questão de coragem. E heroínas nunca perdem, porque sua força de vontade é infinita.

É um final digno da série, que leva suas garotas a superar até mesmo a morte, num clímax que mais tem de Sailor Moon que do mahou shoujo dark que diz ser. Com doses suficientes de girl power, não há nada que não possa ser vencido. Nem mesmo a realidade.

Uta Kata e Alien 9, cada qual à sua maneira, provam que as coisas não são tão simples. Primeiro porque a realidade não é um quadro em branco à espera das nossas pinceladas.

É, sim, uma experiência angustiante, alienígena e sem propósito em que as coisas nunca são o que parecem. E nossas tentativas de deixar nossa marca muitas vezes nos transformam nos próprios monstros contra que lutamos.

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Segundo porque não depende só da gente. E os “outros”, longe de serem o clube serelepe de amigas da Yuuna, são pessoas com suas próprias mentes, seus próprios objetivos, seu próprio certo e errado.

Como Ichika, que termina seu anime literalmente crucificada, estamos entre a cruz e a espada da ambição individual e da pressão coletiva.

Quem deve prevalecer? Nossos desejos particulares ou a vontade conjunta (e conflitante) de todos à nossa volta?

As garotas torturadas de Mahou Shoujo Site escolheram a primeira opção. Madoka Kaname, como a Esmeralda de Rayearth, optaram pela segunda.

No meio desses extremos estão as nuances de um dos gêneros mais ricos que o anime nos trouxe. E uma pergunta tão simples, mas ao mesmo tempo tão séria, que nunca acabaremos de responder.