Hoje trago a vocês um artigo um pouco diferente.

Apesar de ser cosplayer e medievalista (do tipo que faz pesquisa acadêmica, não batalha campal), não tenho grandes fetiches pela Idade Média (como leitores do blog estão cansados de saber, é o Japão dos anos 1930 que me ocupa esse espaço).

Mesmo assim, é difícil seguir na profissão sem topar com aqueles que vestem (literalmente) o tabardo de outras épocas.

Qual foi minha surpresa, assim, ao descobrir um livro que unia partes tão diferentes da minha vida. Cosplay, Steampunk e Medievalismolançado mês passado, é um livro que responde a todas as suas dúvidas sobre esses hobbies de performance – mesmos as que você não sabia que tinha.

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O livro é um fruto do MnemonGrupo de Pesquisa em Memória, Comunicação e Consumo, liderado pela professora Mônica Nunes da ESPM.

O assunto está longe de lhes ser estranho. O grupo publicou outro livro especificamente sobre cosplay anos atrás, além de uma produção expressiva em periódicos acadêmicos.

Cada capítulo foi escrito por um autor diferente – que tentei, no melhor da minha habilidade, identificar nos meus comentários. Os papers são independentes e podem ser lidos em qualquer ordem, à conveniência do leitor.

Se você é um cosplayer, steamer ou revivalista e está interessado no livro pelo assunto, esteja avisado. Este é uma obra científica, direcionada a um público acadêmico. Para os não aclimatados no estilo, seus jargões e formalidade podem assustar.

Mesmo assim, a mera quantidade de depoimentos e curiosidades que o estudo traz já o torna uma leitura divertida e edificante.

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Asylum Steampunk Festival em Lincoln, onde pesquisadores do Mnemon fizeram trabalho de campo. Fonte

O livro é resultado de um trabalho de campo realizado em convenções de várias partes do Brasil e também na Inglaterra.

Para isto, utilizaram o método conhecido como flânerie. A técnica consiste em “passear” pelas convenções com aparente casualidade, de maneira a extrair testemunhos mais espontâneos dos participantes.

Não é a primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos em pesquisa acadêmica. Entretanto, ao ler os inúmeros depoimentos compilados no livro, é impossível duvidar de seu mérito.

Cosplay, Steampunk e Medievalismo é uma janela ao coração dos hobbies de performance. Mesmo eu, cosplayer há nove anos e LARPer na adolescência, me flagrei descobrindo um universo novo.

Está certo o ditado: quem só conhece sua aldeia não conhece a sua aldeia.

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Lançamento de Cosplay, Steampunk e Medievalismo na Geek.etc.br

Cosplayers desconfiam de quem os olha “de fora”, e com razão. Como Pri Suicun disse na entrevista que deu a mim, quando cosplayers aparecem na mídia, quase sempre são retratados como doentes mentais.

Não é o caso desse livro. Pelo contrário, seu grande mérito é demonstrar que esses hobbies são expressões de desejos que, de uma forma, ou de outra, ardem em cada um de nós: viver sob princípios, encontrar uma comunidade, construir sua própria história.

Estamos todos confinados a uma época que não escolhemos, presos à certeza de que, um dia, tudo acabará. Diante do fim, procuramos um escape. Alguns, na longevidade de um livro. Outros, na efemeridade de uma foto.

Na vida, e não só no palco, todos nós usamos máscaras.

Steampunk: o futuro que nunca chegou

De um ponto de vista histórico, seus capítulos sobre o steampunk e o revivalismo são os mais interessantes.

O livro não é uma propriamente uma história sobre o retrofuturismo. Mesmo assim, traz um prato cheio para quem sempre quis saber mais sobre chaminés fumacentas e goggles acobreados.

Como Dora Carvalho nos conta, embora a estética se baseie em clássicos como Júlio Verne, H.G. Wells e Mary Shelley, sua origem é muito mais recente. O termo surgiu nos anos 1980, em uma tentativa de transportar o cyberpunk à era do gim e do vapor.

O que se buscou foi justamente o underground, o distópico. Nas palavras de Raul Cândido de Souza, co-fundador do Conselho Steampunk de São Paulo entrevistado no livro, um “vapor marginal.”

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Cosplay, Steampunk e Medievalismo acompanha o fenômeno não apenas nas convenções, mas também nas subculturas que as cercam.

Assim, Wagner Silva se debruçou sobre o colecionismo na cena Steampunk. Lilia Horta, por sua vez, escreve sobre as referências steampunk e medievalistas nos filmes de Miyazaki.

É uma pena que nenhum dos autores tenho abordado a influência do steampunk na cultura pop japonesa como um todo. Embora, dada a complexidade do assunto, não é possível culpá-los por conta disso.

Steampunk, afinal, tem uma longuíssima tradição nos animes, de clássicos como Nadia  a novidades como Kabaneri Princess Principal.  Isto sem falar nos JRPGs, em que tornou espécie de segunda pele.

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A cidade de Midgar no game Final Fantasy VII

Para além das influências ocidentais, tenho a impressão que essas obras trazem inquietações bem particulares.  Não exatamente de sua bagagem como país asiático, mas do país que foi na virada do século – e que a bomba atômica condenou ao passado.

Como disse Mahiro Maeda, produtor de Last Exile:

Nós tínhamos essa imagem da Alemanha no início do século XX. Nós pensamos que a Alemanha do entreguerras tinha características muito interessantes. As pessoas pensam em algo sombrio e negativo por causa da ascensão do nazismo. Mas tantas coisas apareceram naquela época, como o crescimento rápido das cidades e riqueza. Tecnologia industrial, química, descobertas científicas (…) Eu acho que tudo o que a Alemanha produziu naquele tempo foi extremo e único.

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Last Exile

É uma visão que também encontra eco no Japão: um país fechado e agrícola que se converteu, quase da noite para o dia, em uma potência industrial, com direito a luz elétrica, ferrovias e encouraçados.

No país que se tornou o primeiro Estado asiático a derrotar um império Ocidental. E herdar, com igual crueldade, seus ideais colonialistas.

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Kotetsu, primeiro encouraçado da Marinha Imperial Japonesa. Originalmente batizado de CSS Stonewall, construído na França para a Confederação durante a Guerra Civil Americana. Mais steampunk, impossível.

Trata-se de um dilema que o próprio Miyazaki abordou em outro de seus longas, Vidas ao Vento. E que, como o filme bem lembra, teve consequências funestas.

Medievalismo: entre a justiça e a violência

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Batalha campal do Duché de Bicolline

A seção sobre medievalismo é igualmente instigante – embora, talvez por influência dos estudiosos em steampunk, tenha dado uma importância desmedida ao país da rainha Vitória.

Luis Martino diz que “não seria de todo errado registrar a data e o local de nascimento do medievalismo na Inglaterra do século XIX”. Na verdade, ele pode ser encontrado desde muito antes – e em muitos outros lugares.

Ele está presente, por exemplo, no romantismo alemão do século XVIII e na Alemanha unificada de Bismarck, que legou não só a história medieval, mas a própria noção de “história” como a conhecemos.

Ele pode ser visto nas fábulas ossiânicas do escocês James MacPherson, inspiradas no herói medieval Óisín. No hábito dos reis da França de batizarem seus filhos como Louis, em homenagem a Clóvis, primeiro rei cristão da Gália Merovíngia. E no uso da Joyeuse, espada de Carlos Magno, nas suas cerimônias de coroação.

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Joyeuse em exibição no Museu do Louvre em Paris. A espada foi reformada várias vezes ao longo dos séculos – o que a torna, também, uma recriação medievalista.

Isto sem contar nos “medievalismos” da própria Idade Média. Por exemplo, na Ordem do Garter, irmandade cavalheiresca fundada em 1348 e inspirada nos cavaleiros do Rei Arthur. Ou nas távolas redondas, “feiras medievais” em que membros da corte se fantasiavam de personagens da lenda arturiana.

O revivalismo existe desde que o passado era “presente”.

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Luis está certo, no entanto, ao lembrar que algo muito importante aconteceu na Inglaterra da rainha Vitória.  Diante de poluição, mudanças econômicas e máquinas que não entendiam, muitos oitocentistas preferiram sonhar com um mundo anterior.

Essa “revolta” teve uma expressão no Pré-rafaelismo, movimento que pregava um retorno à Idade Média – estético, mas também moral. Uma tentativa, como explica Cynthia Luderer, de resgatar algo de espiritual a um mundo cada vez mais desencantado.

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É um retorno com que sonham também os entrevistados pelo livro. Para eles, as mulheres do passado eram “mais femininas”; os homens, “mais cavalheiros”; a vida, mais “justa”.

Em algum lugar do presente, algo importante escapou pelas frestas. Com tabardos e crinolinas, boffers e xícaras de chá, eles estão dispostos a recuperá-lo.

Como diz um dos “guerreiros” citados no capítulo de Sami Neppo:

“para o grupo o lema: In Gladius Victoria Est significa: lute com honra, seja honesto, acuse os golpes, aceite perder, entenda seu erro, treine bastante e não trapaceie. E é isso que faço para a vida.

Isso não significa que medievalistas desejam voltar literalmente ao passado. O objetivo, no final das contas, é resgatar as coisas “boas” que se perderam – e abandonar as “ruins” que não cabem no presente.

Obviamente, distinguir umas das outras é mais difícil do que parece. Ao longo da história do revivalismo,  coisas ditas “ruins” já incluíram a ciência, as liberdades individuais e a própria ideia de progresso.

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Cartaz nazista retratando Hitler como um cavaleiro

É o ponto em que toca Davi de Sá, ao comentar sobre o papel da violência nas leituras sobre a Idade Média. Quando pensamos em medievalistas, quase sempre falamos de aspirantes a guerreiros que se batem com armas de espuma.

É como se mil anos de história tivessem sido caracterizados por um grande morticínio, à exclusão de todas as coisas. E devêssemos, por algum motivo arcano, ver nisso uma espécie de virtude.

Até que ponto é positivo remediar um passado feito só de guerras, razias e combates? Em especial quando estas lutas serviram a propósitos eticamente questionáveis, como as cruzadas?

Infelizmente, essa visão continua muito comum, a despeito dos esforços de historiadores de acabar com o mito da “Idade das Trevas”. É uma imagem, porém, que diz muito mais respeito à nossa mentalidade que a um passado medieval.

Como defendem alguns autores, a projeção dos males do mundo ao “passado” é uma forma de aliviarmos nossas neuras sobre o presente. É muito mais fácil lidar com erros herdados da Idade Média do que admitir que foi a própria modernidade que criou os seus demônios.

Felizmente, nem tudo está perdido. Embora não seja o foco dos grupos estudados pelo Mnemon (apesar disto aparecer em alguns capítulos), o medievalismo também é forte em grupos dedicados à música, gastronomia e outros aspectos da cultura.

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Revivalista tocando hurdy gurdy no IMC Leeds, um dos maiores congressos de história medieval do mundo

Conclusão: o que tirar disso tudo?

Existe algo em comum entre cosplayers, steamers e medievalistas? A cada página que lia dos pesquisadores do Mnemon, minhas certezas diminuíam.

Como conciliar escapistas que só querem se divertir de steamers politicamente engajados? Revivalistas que idolatram o passado daqueles que não trocariam o presente por nada? Medievalistas que se chamam de cosplayers daqueles que se prezam como uma tribo a parte?

Como conciliar os desejos e testemunhos, às vezes conflitantes, dos próprios fãs? Como explicar um movimento que pregue o retorno aos “valores do passado”, mas que atribui a esse passado valores contemporâneos, como a “tolerância” e o “respeito às diferenças”?

Como todo grande trabalho científico, Cosplay, Steampunk Medievalismo traz mais perguntas que respostas. E é mérito de seus pesquisadores terem tido a humildade para reconhecê-lo.

Como diz Óscar Ruiz no prefácio à coletânea:

Nessa ocasião foram as dinâmicas cosplay de jovens paulistas que se me apresentaram como um conjunto de máscaras que (eu) deveria decodificar como antropólogo e sobre as quais emitir um juízo a respeito do que de fato significavam. Vã ilusão, a antropológica e a minha, de acreditar que podemos dizer algo sobre “o fundo” das coisas, que corresponde à vida cultural de grupos e de pessoas.

Ilusão porque em primeiro lugar nosso próprio etnocentrismo nos obriga a pensar que as coisas, a cotidianidade cosplay, por exemplo, têm algo mais ou significam algo mais do que a própria encenação de imagens que reelaboram a vida social (das pessoas e das coisas). E ilusão também porque seguimos suspeitando que a identidade é algo que está “no fundo” e, portanto, é tarefa disciplinar visibilizá-la, como se fosse uma operação neutra, e não mediada por saberes, poderes e tecnologias próprias.

Ciências sociais, por lidarem com seres humanos, estão sempre à mercê da imprevisibilidade. E jovens, bem diz uma das autores citadas pelo livro, são difíceis de se etiquetar.

Até que ponto tudo isso converge para um denominador comum? E se não converge, como podemos fazer sentido dessa diferença – se nada mais, para entender para onde estamos indo como sociedade?

São questões que darão pano para manga a futuros trabalhos. E que eu, sem dúvida, terei o maior prazer de acompanhar.