Em toda viagem, há muito a se ganhar saindo das rotas mais óbvias. Em qualquer momento da vida, há ainda mais a se lucrar abandonando pré-concepções simplórias.
É isso o que me levou, nos meus dias de Japão, a explorar a obscura cidade de Iga.
Seu nome pode não ser tão conhecido como Nara, Ise ou Himeji, grandes sítios históricos no país. Mesmo assim, ela desempenhou um papel importantíssimo – e misterioso – no passado do Japão.
Iga é o berço do iga-ryu ninjutsu e sede da mais famosa escola de ninjas da Sengoku Jidai. É o lar de ninguém menos que Hattori Hanzo, guarda-costas do shogun Tokugawa Ieyasu, uma das figuras mais celebradas da história japonesa.
Como historiador, confesso que o passeio me deixava apreensivo. A “história” das artes marciais, tal como contada por seus praticantes, geralmente não passa de invencionices. Com um grupo tão romantizado como os ninjas, estava quase certo de que ouviria baboseiras.
A surpresa que eu tive, porém, não poderia ter sido melhor.
Já aviso de início: Iga não é um passeio de estrangeiros. Em nossa viagem, Vivian e eu fomos os únicos ocidentais entre os turistas que encontramos.
O motivo se torna claro assim que se começa a viagem. Embora seja (relativamente) perto de Kyoto, Iga é uma cidadela perdida entre montanhas e terraços com arrozais. Para alcançá-la, é preciso tomar pelo menos dois trens locais.
A dificuldade faz sentido, se pensarmos nos antigos habitantes da cidade. Uma escola de ninja não seria lá tão boa – nem duraria tanto – se fosse de fácil acesso a qualquer um.
Mesmo assim, não é difícil encontrá-la. Assim que você chegar em uma das estações interioranas que levam à ela, é provável que se depare com trens como esse:
Se o traço parece familiar, não é por acaso. Os trens foram pintados por ninguém menos que Leiji Matsumoto, homenageado por uma estátua de Tetsuro e Maetel, personagens de Galaxy Express 999, na estação da cidade.
Os trens são apenas um aperitivo, uma das muitas graças que a cidade arranjou para celebrar seu passado. Até mesmo o guard rail na sua praça principal está decorado com shurikens.
O apelo dos famosos assassinos é tão grande que influenciou até suas atrações mais “sérias”.
Entre os japoneses, Iga é conhecida por ser o berço de Matsuo Basho, o mais famoso autor de haicais do país. Hoje, mesmo ele anda ombro a ombro (literalmente) com os lendários espiões do passado.
Contrário às minhas expectativas, o Museu Ninja traz uma imagem bastante realista (e surpreendente) dos míticos assassinos vestidos de preto.
Para começar, porque não eram, de fato, “assassinos”. Embora ninjas tenham sido contratados para assassinar pessoas, sua principal função era como batedores e sabotadores. Muitas de suas “armas” serviam, na verdade, outros propósitos.
As garras de ferro nas mãos? Usadas para escalar muralhas. As famosas kunais, que Naruto e afins tornaram famosas? Eram brocas para furar paredes, permitindo que o ninja espionasse na calada da noite.
Nem, tampouco, usavam preto. A imagem do guerreiro vestindo um pijama escuro é coisa da ficção. Os verdadeiros ninjas andavam disfarçados, geralmente de camponeses, o que permitia que carregassem certas armas improvisadas sem atrair suspeita.
Talvez o maior “mito” que o museu desbanca, no entanto, é a ideia de que o “ninjutsu” foi uma grande arte marcial organizada, como o karatê ou o judô. Como a exibição deixa bem claro, ninjas eram uma gama de profissionais com as mais diversas especialidades.
Suas perícias iam desde técnicas budistas de meditação – para baixar a frequência cardíaca – ao manejo de pólvora. Não apenas bombas de fumaça ou flechas explosivas: ninjas foram um dos principais disseminadores das armas de fogo no Japão, tanto mosquetes quanto artilharia.
Sim, artilharia. Ninjas tinham menos a ver com o Jiraya do que com engenheiros de cerco. No acervo de Iga, há exemplos de bombardas – canhões de madeira que podiam ser facilmente construídos, levados nas costas e abandonados no caso de uma retirada.
Se você cresceu assistindo a ninjas nos animes, talvez sinta que eu esteja destruindo sua infância. Iga, contudo, não passa essa impressão. Mesmo “mundanos”, os ninjas do mundo real são fascinantes a ponto de nos deixar boquiabertos.
Ao lado do museu, existe a “casa dos ninjas”, uma residência em que espiões se encontravam para suas missões.
Por fora, parece uma típica fazenda japonesa. Por dentro, possui portas falsas, rotas de fuga escondidas, compartimentos secretos para armas, acionados com toques especiais. Todo tipo de artifício para lidar com possíveis invasores.
O tour é infelizmente apenas em japonês, mas os apetrechos dispensam explicação. É também o caso do show ninja, a mais popular atração da cidade.
Realizado por artistas marciais, é uma demonstração de vários tipos de armas ninjas, de flautas que atiram dardos a flechas sibilantes usadas para distrair exércitos.
Se estiver inspirado, há também a competição de arremesso de shuriken, em que você também pode experimentar a mais icônica arma japonesa depois da katana.
De minha parte, dispensei o campeonato. De alguma forma, os ninjas “pés-no-chão” do museu, disfarçados de fazendeiros, usando kunais para abrir buracos me despertaram um fascínio maior que os guerreiros míticos da cultura pop.
Esses ninjas não eram mestres das sombras, e sim espiões, sabotadores, engenheiros de cerco.
Profissões que existiram em quase todas as culturas, mas que o Japão – para variar -transformou em um ícone global.
Uma aventura no Japão volta na próxima segunda. Fique de olho!
Bem interessante!
Sempre curti ninjas, fui aprendendo essa faceta mais real desses espiões com o tempo. Aqui onde moro tem um dojo que diz ensinar ninjutsu, eles vestem kimonos pretos, faixas coloridas, amarram pessoas com cordas e fazem exercício de desarmar katanas, parece divertido, e ao mesmo tempo fake e inútil.
No Japão não é diferente. Tanto é que o próprio diretor do museu de Iga, que se diz o “último ninja”, diz que não treinará mais alunos porque o ninjutsu não tem mais função (https://en.wikipedia.org/wiki/Jinichi_Kawakami).
É uma pena que os ensinamentos se percam com o tempo, sou fã de Kenjutsu e Ninjutsu, mas creio que famílias tradicionais continuem passando os ensinamentos para suas próximas gerações.
O duro é aferir a autenticidade desse “saber tradicional”. Como saber se ele vem de fato do passado distante, ou não foi só inventado ao longo do caminho? O próprio Jinichi Kawakami diz que aprendeu seu ninjutsu de um itinerante. É uma história muito suspeita…