Josei é um estilo de pouca sorte. Em uma pesquisa feita pelos meus colegas da Blogosfera Otaku BR, ficou em último lugar na lista de preferências de grupos de anime no Facebook, com meros 1,2% dos votos.
É verdade que, no Brasil, a oferta de mangás à demografia é lastimável. Sem o deslumbre adolescente do shoujo e do shounen ou a aura de “transgressão” associada ao seinen, o josei parece, a princípio, estar em uma competição desleal.
Obviamente, isso é uma grande injustiça. O que aparenta ser o ponto fraco da demografia é, na realidade, o seu maior diferencial. Longe das idealizações comuns em obras juvenis e da apelação temática de muitas obras ditas “maduras”, o estilo dedicado a jovens mulheres conta com alguns dos quadrinhos mais surpreendentes do mercado.
Leitores brasileiros tiveram uma prévia disso esse ano, com o lançamento nacional de The Wedding Eve pela Panini. Composto de seis histórias curtas, o volume é uma lufada de ar fresco a uma mídia que parece presa nos anos da escola.
E não apenas pelo fator “novidade”. Sua autora, Hozumi, é uma verdadeira mestre na arte de contar histórias. Suas obras são um show de maturidade e franqueza – e uma mostra daquilo que mangás podem ser quando se pensa diferente.
Uma escritora de contos
Dizem que o segredo de um bom conto é ter uma “chave”, um momento especial em que passamos a enxergar as coisas de outra forma.
Ao contrário de romances, contos não têm espaço para longas descrições e worldbuilding. Ao contrário de novelas e séries, não podem contar com a isca de cliffhangers intermináveis.
A história precisa ser direta ao ponto e impressionar com pouco. Deve se focar em coisas reconhecíveis e detalhes marcantes. Deve ser sincera – e inclemente. Como dizia o escritor Júlio Cortázar, se a literatura fosse uma partida de boxe, o romance venceria por pontos; o conto, por nocaute.
Mangás não têm exatamente um histórico de sucesso com esse tipo de história. O problema não é falta de talento. O ritmo de produção insano dos quadrinhos japoneses é um inimigo para qualquer boa narrativa.
Para começar, quase sempre são serializados. Suas tramas precisam ser divididas em capítulos de duração específica, com cliffhangers e outros truques óbvios para cativar o leitor. Pressões editoriais podem fazer com que a série se arraste indefinidamente, ou que seja cortada da noite para o dia.
Nadar contra a corrente pode custar o futuro da obra, quando não a reputação do mangaká. O próprio Inio Asano disse que Oyasumi Punpun, um dos raros mangás a seguir um plano autoral pré-concebido, perdia leitores a cada capítulo.
Como histórias curtas, com começo, meio e fim, one shots poderiam ser a exceção da regra. Infelizmente, na maioria dos casos, são escritos como submissões a concursos ou para “vender a ideia” de uma série. Não são contos, mas pitches publicitários, protótipos disputando o carinho de uma editora.
Hozumi é tão diferente que, ao lê-la, temos a impressão de que caímos em uma outra mídia por engano. A autora faz em poucos capítulos o que outros mangakás não conseguiriam em vários tankobons.
Enquanto outros se esquivam das limitações, Hozumi as transformou em força. Seus trabalhos tem uma sutileza e um impacto emocional que valorizam o fato de serem curtos. Hozumi escreve contos.
The Wedding Eve, sua premiada obra de estreia, é um exemplo de tudo o que faz de melhor. Suas seis histórias acompanham pessoas que passaram por maus bocados, mas que não deixaram a dor fazê-las esquecer de como sorrir.
Órfãos que tratam um espantalho como um “mãe” adotiva. Irmãos que carregaram um rancor do colégio até a velhice. Um escritor anti-social que pensa estar sendo assombrado. Uma menina que não entende a “separação” dos pais. A história de uma família contada por seu gato.
No papel, The Wedding Eve é um mangá sobre antecipação, nosso último dia de espera antes do maior evento das nossas vidas. Na verdade, são histórias sobre o futuro, aquilo que acontece depois do “felizes para sempre”. Sobre quando olhamos para o passado e descobrimos, como disse certa escritora, que virar adulto acontece por acaso, uma escolha por vez.
Histórias de colegiais são tão populares em mangás e animes que às vezes nos fazem esquecer algumas coisas. Por exemplo, que existe vida para além do primeiro beijo.
O tempo sempre passa, nem sempre como gostaríamos. Erros acontecem. Pessoas nos deixam – às vezes, por nossa culpa.
Porém,também existe beleza no luto, alegria na vida de um órfão, amor entre pessoas que já se machucaram. Saber achá-los faz toda a diferença. Em alguns casos, é tudo o que realmente importa.
É uma lição que a Naho de Orange, disposta a sacrificar marido e filho por um colega de classe que mal conheceu, nunca aprenderá. Como uma vez disse Inio Asano, viver é muito mais difícil que morrer.
Na obra de Hozumi, The Wedding Eve não é um ponto fora da curva. Em seu Sayonara Sorcier, a autora trabalha as mesmas questões, dessa vez na Paris da Belle Époque. Seu protagonista é Theo Van Gogh, irmão do pintor de Noite Estrelada e um dos maiores negociantes de quadros da Europa.
Não deixe a roupagem de época enganá-los. O mangá não é um drama histórico, nem uma trívia sobre o mundo da arte. O verdadeiro interesse de Hozumi é a relação fraternal.
Sua fábula de carruagens, tinta à óleo e intrigas acadêmicas é apenas um veículo para falar de algo mais importante: o amor entre irmãos, e o que estão dispostos a fazer para proteger um ao outro.
Mesmo quando tudo parece dar errado.
Quem tem curiosidade para curtir a mangaká em seu melhor momento, no entanto, deve conferir em outro lugar. A honra fica com seu tocante (e macabro) Usemono Yado.
O que faz de nós humanos
O mangá de três volumes, terminado em maio desse ano, não impressiona apenas por contar uma ótima história. Ele consegue brilhar com uma voz própria a despeito de usar a mesmíssima premissa de outra obra de sucesso, o muito celebrado Death Parade.
Ambas as obras se passam em um limbo para mortos que deixaram pontas soltas em sua vida. No anime da Madhouse, é um bar no qual precisam participar de uma série de jogos. No mangá de Hozumi, uma pousada em que devem procurar algo que perderam.
A experiência, claro, é apenas fachada para algo maior. Antes de partir dessa para melhor, precisamos aceitar que estamos mortos. E enfrentar os fantasmas de nossas escolhas ao longo da vida.
Nem todos estão à altura do desafio. Em uma obra e outra, aqueles que não conseguem realizar o desafio acabam presos no limbo, trabalhando para receber outros “clientes”.
Ambas as histórias têm seus méritos. Usemono Yado, no entanto, nos mostra a diferença que faz quando um argumento promissor cai nas mãos de uma escritora talentosa.
Death Parade enfeitou uma premissa simples com um universo elaborado. Descobrimos que existem vários bares e vários “anfitriões”, cada qual com sua própria aparência e poderes. Até mesmo um “Deus” que joga bilhar com planetas.
Nos seus 12 episódios, o conceito nunca decola. Personagens coadjuvantes são esquecidos pelos cantos. Sua meta-história sobre os “bastidores da morte” rouba tempo dos conflitos humanos. Suas lacunas e contradições tiram o brilho do todo.
Nascido ele próprio de um conto – o curta Death Billiards – Parade parece não ter entendido o que faz do formato tão único. Na sanha de fazer muito, penetrou pouco.
Usemono Yado, em contrapartida, vive de sua simplicidade. Há uma garota misteriosa que age como a senhoria da pousada. E há um homem, também misterioso, que leva as mortos aos portões do limbo. Nós sabemos ela está morta, pois só mortos podem entrar na pousada. E sabemos que ele, que sempre a olha atentamente, deve carregar a chave de sua tragédia pessoal.
Mais do que isso não precisamos saber. As breves histórias de seres humanos enfrentando a própria morte dão conta do recado. Cada uma traz uma pequena peça do quebra-cabeças, que culminam em um clímax sem uma única ponta solta.
Na sua clareza, o mangá de Hozumi não é apenas bem escrito. É também mais honesto – e adulto.
Por mais que acreditemos que exista um ser superior julgando nossa vida, a triste verdade é que, na prática, estamos sozinhos. Se existe um “manual de regras” a ser seguido, nós só o descobrimos depois de cruzar o batente do nosso próprio limbo.
Em Death Parade, os mortos são julgados por uma raça de homúnculos incapazes de sentir emoção. Em Usemono Yado, não há julgamento, pois Hozumi sabe que não há nada para julgar.
E teria como ser diferente? Seria mesmo possível julgar o mérito de uma vida? O que deve ser levado em conta, nossas intenções ou suas consequências? Nossa certeza ou nossa honestidade? O fato de que nunca erramos ou nossa capacidade de nos arrepender?
A resposta é: nada. Vivemos de acordo com aquilo que achamos ser melhor, e é a nós que devemos satisfações. Na vida, tal como na morte, nossos juízes não são barmen com cabelos brancos, mas nossas próprias consciências.
É conflito do jesuíta de Shusaku Endo em O Silêncio. É o desespero do protagonista de A Fonte da Donzela, que não entende como Deus pode exigir misericórdia para os homens que mataram e estupraram sua filha É a agonia que levou um prisioneiro de Auschwitz a escrever nos muros: “Se Deus existe, ele precisará implorar pelo meu perdão.”
A morte em Usemono Yado é muito mais apavorante, pois ela apenas é. Se existe um propósito para a existência, ele está muito além do nosso entendimento. De resto, precisamos nos contentar com o que temos. O vento se ergue, precisamos tentar viver.
Não é a mais açucarada das mensagens. Porém, nem só de açúcar vive uma pessoa. Saber fazer as pazes com as agruras é também o que faz de nós humanos.
Ao ler a premissa do Usemono Yado, e do Death Parade, me lembrei imediatamente do filme “Wonderful Life” do Hirokazu Koreeda. O fato de se passar em uma pousada e de que os que “falham” acabam sendo incorporados para ajudar os próximos que virão são exatamente iguais ao filme. Por outro lado ele é mais focado na memória dos personagens e não em assuntos pendentes que foram deixados em vida.
Koreeda usa muito bem o próprio processo audio-visual para reconstruir essas memórias e cria um dialogo interessante de como nos lembramos desses momentos.