Uma mulher anda de bicicleta. O terno e mochila de laptop entregam que não pedala a passeio.
Um caminhão a ultrapassa. A motorista lembra alguém que conhece. Alguém importante, insubstituível. Alguém que lhe prometera construir uma vida com ela, que jamais a largaria para rodar Japão afora. A não ser que algo de muito errado tivesse acontecido.
Ela acelera, indiferente ao penteado desfeito e o suor que arruinava sua maquiagem. No retrovisor do caminhão ela enxerga a ponta de um cigarro. A pessoa de seu coração nunca fumava. A ciclista sorri, deixando que a bicicleta a embale em uma descida enquanto caminhão segue seu caminho.
Ela está feliz.
A sequência é uma de tantas pitadas de poesia visual encontradas nas páginas de Yuuta Nishio. Chamado por alguns de um Inio Asano dos mangás yuri, Nishio combina um olhar apurado para problemas íntimos com uma leveza que serve de antídoto aos anos de fadiga em que vivemos.
Um novo Inio Asano?
Comparações costumam ser armadilhas. Às vezes, o paralelo está menos nas páginas que na nossa mente. Às vezes, trazer à discussão uma obra ou autor de sucesso cria expectativas que história nenhuma é capaz de cumprir.
Meu primeiro contato com Yuuta Nishio veio justamente de uma comparação. No caso, com Inio Asano, mangaká de quem escrevi à exaustão nesse blog e que, para o bem ou para o mal, conquistou uma posição única nas discussões sobre a mídia. Há um espaço em formato de Boa Noite Punpun no universo dos mangás que apenas Asano é capaz de preencher.
Isso não impediu Rebecca Silverman do ANN de chamar Nishio de um “Inio Asano-lite”: um autor que “toca em muitos temas e estilísticas similares”, dentro de “história[s] mais gente[is] com um apelo um pouco diferente”.
Não é preciso abrir seus mangás para entender o mais visível desses apelos: Nishio escreve histórias yuri. Isto, por si só, já lhe abre um terreno que os protagonistas de Asano enxergam apenas com o canto dos olhos.
O autor de Nijigahara Holograph já foi considerado “a voz de uma geração”, mas é uma voz distorcida pelas preocupações dos homens jovens, problemáticos e sexualmente precoces que encabeçam a maioria de suas histórias. Há conflitos humanos que personagens como estas nunca experimentaram. Em especial quando se desenrolam em espaços aos quais homens não são convidados.
O que não significa que não haja uma vibe indiscutivelmente “asânica” nas histórias que Nishio conta. Como os adolescentes de Umibe no Onnanoko, as personagens do autor mostram uma completa franqueza em relação ao sexo. As mulheres sobre as quais escreve usam o corpo para se relacionar com o mundo, sem atentar para charminhos, tropos românticos – ou mesmo, em alguns casos, convenções sociais.
Em contraste com a pobreza temática de certos mangás de romance, as personagens de Nishio não se deixam definir por seus afetos. Elas não são namoradas, apenas estão com outras – por pouco ou muito tempo, a depender das circunstâncias, mas sempre cientes de que a vida é uma jornada que deverão realizar sozinhas. E o amor e o sexo, apenas duas – e não necessariamente as mais importantes – das paradas.
Em Mizuno & Chayama, esse relacionamento une duas garotas separadas por rivalidades entre suas famílias. Mizuno é a filha de um político ambientalista em combate contra uma grande empresa do ramo de chá que emprega metade da cidade. Chayama é ninguém menos que a filha do dono da empresa, cujo rosto estampa outdoors.
Ambas se se sentem frustradas: Mizuno porque todos a veem como uma extensão de seu pai: uma celebridade influente a quem podem pedir favores; Chayama, porque a riqueza de seus pais causa rancor entre os colegas mais humildes.
Chayama, em particular, é vítima de um bullying tão violento que parece tirado das páginas de um romance de Mieko Kawakami. A tortura vem das mãos de Aikawa, que em origem – e até aparência – lembra uma versão malévola da Aiko Tanaka de Boa noite Punpun. Pobre, divide uma casa enterrada no lixo com uma mãe que torra dinheiro em produtos milagrosos vendidos por seitas. Aikawa odeia sua vida e põe a culpa na Corporação Chayama, menos por acreditar que são culpados por suas dores que para mascarar sua violência com um verniz de justiça.
Como Asano, Nishio usa e abusa do sexo para atiçar o desconforto do leitor. Mizuno é molestada por um aliado de seu pai durante um jantar da campanha. Ninguém se move para ajudá-la: a eleição é mais importante que o desconforto da filha. O irmão de Aikawa, pré-adolescente, adquiriu o hábito de se masturbar contra os móveis. Por conta da negligência da família, não aprendeu como seu corpo funciona. Sobra à jovem limpá-lo quando chega ao orgasmo.
Quando todas essas violências acumuladas atinge um ponto de ebulição, não nos surpreendemos ao ver o sangue derramado. Há algo de As Flores do Mal na maneira como Mizuno & Chayama migra lentamente para uma tragédia anunciada.
Novos rumos depois dos 30
Sob muitos aspectos, o mangá não poderia ser mais diferente de After Hours, trabalho anterior de Nishio. Aqui, o foco é a relação de Emi, uma mulher de 24 anos, perdida e desempregada, por Kei, charmosa DJ seis anos mais velha.
Não deixe o título e as luzes de balada passarem a mensagem errada. Embora sua história se passe em becos escuros e raves alucinadas, não há nada de libidinoso e chocante em sua história de amor. As baladas de Emi e Kei pertencem ao mesmo universo de Paripi Koumei: um underground sempre às claras – ainda que suas luzes sejam artificiais e estroboscópicas.
É difícil ler o mangá sem pensar em Solanin, obra de Asano sobre os dramas de um grupo de jovens adultos que se envolvem na criação de uma banda de rock. Emi e Kei são mais velhas que o elenco daquele mangá, mas isso só dá mais peso ao seu projeto de vingar na carreira das raves.
Não há nada de misterioso em sonhar de viver de arte nos seus vinte e poucos anos. Fazê-lo depois dos trinta, por outro lado, é uma decisão intrigante a ponto de carregar todo um enredo.
Ao contrário da titubeante Minare de Nami yo Kiitekure (ou de todo o elenco de Honey & Clover), a Emi e Kei nem sempre sabem o que elas querem, mas sabem exatamente o que elas são. Elas não precisam de uma jornada de auto-conhecimento. O seu futuro pertence a elas.
Embora escondido sob a agressividade de sua trama, esse mesmo otimismo está também presente em Mizuno & Chayama. Se Asano é trágico mesmo quando tenta ser leve, há uma leveza nos mangás de Nishio que se sobrepõe às cenas mais chocantes.
Mizuno & Chayama, que se passa no último ano do Ensino Médio – literalmente, o último ano (de suas adolescências/antes do início de sua vida adulta). A despeito dos sapos que são obrigadas a engolir, suas protagonistas nunca perdem de vista de que aquilo que vivem é uma fase que um dia passará sem deixar traumas ou rancores.
Após três anos de pandemia, violência galopante, desmandos políticos e histeria, histórias como essa soam como nada menos que um curativo mental.
Muitos mangás falam sobre os tombos, os machucados, o desespero de e ver sem rumo. Nishio escreve sobre o que acontece quando decidimos nos levantar. E este momento, ela nos ensina, sempre chega.
Todos estamos na sarjeta…
“After hours”, a DJ Kei explica, são aquelas horas entre o fim da balada e o início do próximo dia útil. As horas incertezas que ainda não fazem uma manhã, mas tampouco pertencem à noite; em que o frenesi do escapismo já passou, mas ainda não fomos rendidos pela chave-de-braço da rotina. Um momento para nos situarmos – e, quando a situação pede, respirar.
De certa forma, esses anos 20 que vivemos vem se mostrando as after hours do século XXI, tal como os anos 20 do século passado foram a era do jazz. Que saibamos aproveitá-los tão bem quanto Emi e Kei, ou Mizuno e Chayama; se não para fundar uma rave ou mudar de cidade, para dar à nossa vida o rumo que precisa.
Como escreveu Oscar Wilde, todos estamos na sarjeta, mas alguns olhamos para o céu.
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