Cerca de trinta anos atrás, algumas pessoas pensavam que a queda do Muro de Berlim seria o capítulo final de um século de catástrofes que nunca mais se repetiria. Sem dúvida, faltavam problemas a se resolver. O futuro traria sua parcela de desafios. Mas nenhum deles voltaria a sacudir os pilares do sistema. Havíamos chegado ao fim da história.
Hoje em dia, poucos acreditam nessa ilusão.
Nossa sociedade vive com medo: não apenas de regredirmos a uma era de extremismos e incertezas que julgávamos acabada, mas também o medo de termos ido longe demais. A crise ambiental se faz sentir um pouco mais a cada dia que passa. Novas tecnologias nos trazem não utopias, mas algoritmos obscuros, controle político e fake News.
É difícil acreditar que A Música de Marie, mangá de Usamaru Furuya recém-lançado pela NewPop, não tenha sido escrito com tal medo em mente. Publicado originalmente entre 1999 e 2001, é um trabalho a um só tempo atual e nostálgico; atemporal, mas também hesitante em abordar seu tempo.
Uma caixa de música
A Música de Marie é o tipo de fantasia que não vemos todos os dias – se é que de “fantasia” podemos chamá-la. Seu mundo fictício é mecânico, movido a pistões, engrenagens e ponteiros analógicos. Não perca tempo, contudo, buscando a desilusão ou inquietude com o mundo industrial tão presentes na ficção steampunk.
Trata-se de um mundo construído, mas desprovido de construtores: tão belo e misterioso quanto uma velha caixinha de música flagrada nas vitrines de um antiquário.
O paralelo, aliás, é proposital. Como o título deixa claro, A Música de Marie é a história sobre uma música – mais precisamente, sobre um garoto abençoado (ou amaldiçoado) a ouvi-la.
Quando criança, Kai sofreu um acidente de que não deveria ter sobrevivido. Contrariando as expectativas, ele retorna ao mundo dos vivos e descobre, no processo, que adquiriu sentidos excepcionais. Em primeiro lugar, o episódio o dotou de uma audição fora de série, capaz de escutar até mesmo tensões nas rochas e bolsos subterrâneos de gás. A habilidade prontamente o transforma em uma sensação na vila de mineradores em que vive.
Mais importantemente, ele se tornou capaz de ouvir e enxergar Marie, deusa protetora da humanidade.
Como tantos profetas da mitologia, Kai sobrevive à experiência um tanto menos humano. Seu amor pela deusa ultrapassa o metafórico e se transforma em desejo físico. Para Pipi, que o ama desde a infância e não consegue imaginar um futuro senão ao seu lado, seu retorno é um acontecimento agridoce.
Quando suas tentativas de impressionar o garoto começam a pôr em risco sua própria vida – por exemplo, motivando-a “voar” para ficar parecida com Marie – somos tentados a nos perguntar se esse paraíso mecânico é assim tão paradisíaco.
Infelizmente para Pipi – e todos os cidadãos de seu mundo – algo mais sério que a solidão ameaça os pilares de seu mundo.
Se o país de Kai é belo como uma bailaria de porcelana sobre uma caixa de música, não demora para sentirmos que seu mundo perfeito, milimetricamente planejado, é tão claustrofóbico e opressivo quanto a estante de uma cristaleira.
Os sinais são sutis, mas consistentes. Ninguém entende muito bem como as máquinas que tanto usam funcionam. Depósitos legados por gerações passadas estão repletos de aparelhos estruturalmente intactos, mas que se recusam a funcionar. Sempre que um inventor descobre uma tecnologia nova, sua invenção é destruída em uma pane misteriosa.
Kai, cuja audição supera aquela das outras pessoas, escuta um ruído dissonante imediatamente antes de enguiçarem. É como se as máquinas quebrassem de propósito após receberem um comando. Um comando que só pode ter uma única fonte.
O leitor estará perdoado se pensar em Drosselmeyer, o sinistro fabricante de brinquedos do conto O Quebra-Nozes – que inspirou o igualmente macabro antagonista de Princess Tutu. Esta é exatamente a atmosfera que Furuya constrói para sua personagem titular.
Seria a Marie que seu povo tanto venera menos uma deusa benfeitora que uma inteligência criada para manter humanos no lugar?
E se esse lugar for bom – como de fato – seria mesmo correto tirá-los de lá? O que é preferível: a liberdade para se destruir ou a segurança trazida por um demiurgo?
Como Furuya resolve esse impasse é algo que você terá de ler o mangá para descobrir. Estragar a surpresa de seu enredo seria uma afronta à sua trama, tão bela e delicada como o mecanismo de um relógio de bolso.
Ainda assim, sem dar mais detalhes, posso contar que há uma falha filosófica em seu trabalho que destoa do todo como uma chave presa entre as engrenagens.
Tal como obras como Nausicaa do Vale do Vento e a série Nier, Furuya brinca com a ideia de que a humanidade será a arquiteta de sua própria destruição – de maneira que apenas seu fim poderia salvar o planeta de um apocalipse generalizado. Ao contrário destas obras, contudo, o autor parece acreditar que o armagedom pode ser evitado mantendo as pessoas longe de laptops e motores a diesel.
É como se o mesmo impulso elétrico que faz um circuito funcionar fosse responsável por acender o ódio e a mesquinhez no coração das pessoas.
No que diz respeito a ideias, esta está longe de ser nova. O que nem de longe significa que não seja problemática.
O mito da humanidade pura
A ideia de que o ser humano é um ser puro enquanto vive em paz com a natureza e é corrompido pela ação da sociedade remonta a séculos, quando não milênios. Ele ganhou popularidade, em particular, em períodos que passaram por rápidas (e bem-sucedidas) transformações sociais. Afinal, se é a sociedade quem estraga os humanos, basta mudar a sociedade para criar pessoas perfeitas.
Se essa proposta soa bem-intencionada (ainda que ingênua e potencialmente perigosa), algumas de suas variações resistiram pior à passagem do tempo. Historicamente, esse discurso também foi utilizado para infantilizar populações nativas, opor-se ao progresso da ciência e fundamentar políticas reacionárias – voltadas não só contra fábricas e chaminés, mas para a glorificações de ideologias retrógradas, fanáticas, violentas e primitivistas.
É verdade que a era industrial tem problemas. Destruição do meio-ambiente, guerras mundiais, relações de trabalho desumanas são apenas algumas das muitas tragédias em seu currículo. Mas também é verdade que ela nos trouxe antibióticos, vacinas, sistemas públicos de bem-estar social e tecnologias de telecomunicação que, por sua vez, nos ajudaram a nos organizar politicamente e melhorar nosso sistema.
Ao mesmo tempo, não é preciso ir muito longe para enxergar que o país sorridente de Furuya existe apenas nas páginas de seu mangá. Como nossas mitologias atestam, violência, egoísmo, engodo e mesquinhez acompanham o ser humano desde que aprendeu a contas histórias. A natureza é responsável pelo brilho das estrelas e pelas estações do ano, mas também pelas doenças infecciosas e pelos nossos piores instintos. Ela não é “boa”; apenas “é”.
A era contemporânea pode ter industrializado a crueldade, mas ela de forma alguma a criou.
Na sua utopia a um só tempo futurista e bucólica, Furuya parece construir seu próprio “fim da história”: uma sociedade não apenas afastada dos problemas do presente, mas da própria história humana, com todas as suas ironias, complexidades e contradições.
Como exercício intelectual, é o tipo de coisa que tem o seu valor. Ursula le Guin, uma das maiores mestras da ficção científica, já dizia que o escritor não tem obrigação de contar a verdade. Seu trabalho é nos incitar a imaginar o diferente, nem que apenas para que tenhamos coragem de questionar o status quo.
Ainda assim, em uma época em que nossos piores pesadelos começam a ganhar vida, é importante que aprendamos a sonhar com a realidade – e não apenas contra ela.
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