Adaptações têm uma fama ambígua no mundo do cinema. Se é verdade que livros e filmes flertam um com o outro desde os primórdios da sétima arte, poucas opiniões são mais repetidas que a máxima “o livro é melhor”.

Quando soube que o conto Drive My Car de Haruki Murakami havia sido adaptado ao cinema, contive meu entusiasmo. Embora Murakami seja o escritor japonês mais popular da atualidade, adaptações de suas obras foram, até hoje… menos que ótimas, para dizer o mínimo. Saber que o novo filme possuía quase três horas pouco fez para aliviar minha desconfiança. Roteiristas frequentemente patinam para adaptar romances a uma história deste tamanho. O que seria de um conto de menos de 40 páginas?

Como quem assistiu Drive My Car sabe, a resposta é um primor do cinema japonês contemporâneo.

Mas comentar por que o filme de Ryusuke Hamaguchi conseguiu acertar em cheio é apenas pretexto para uma discussão mais importante: talvez esteja na hora de repensarmos na nossa relação com as adaptações.

Qual é, afinal de contas, o sentido de contar de novo uma história que já foi escrita?

E o que, exatamente, torna uma adaptação ‘bem’ ou ‘mal’ sucedida?

Drive My Car em palavras…

Capa original do livro “Homens sem Mulheres”

Se o filme de Hamaguchi é qualquer indicativo, a primeira escolha começa antes mesmo que as filmagens. Drive My Car, o conto, é um excelente material para adaptações.

Haruki Murakami é conhecido por seu realismo fantástico e por um estilo intuitivo, quase anárquico de escrita. O escritor já afirmou diversas vezes que não é um “contador”, e sim “observador de histórias”: simplesmente registrando as ideias que saem de sua cabeça. Boa sorte para adaptar um livro destes a um roteiro – mais ainda para fazê-lo funcionar em movimento.

Para complicar as coisas, Homens sem Mulheres, coletânea a que Drive My Car pertence, está longe de seu melhor trabalho. Suas histórias, em grande parte, giram em tornos de homens desprezíveis que insistem em atribuir às mulheres a culpa de suas mágoas. Há mais autocomiseração e misoginia em suas páginas que frases bem construídas. Pelo contrário, alguns períodos, como “todas as mulheres nascem com um órgão especial, independente que lhes permite mentir”, nos fazem perguntar o que passou pela cabeça do editor ao publicá-las.

Drive My Car é uma exceção às duas regras. O conto não apenas demonstra um controle da linguagem de que suas obras posteriores parecem ter perdido, como esbanja uma empatia que falta a seus colegas de coletânea. Seu protagonista é, de fato, um “homem sem mulher” – mas quem é essa mulher e o real significado de sua ausência são questões nada óbvias que nos acompanham pelo conto inteiro – e que o final, em aberto, pouco se esforça para elucidar.

O homem em questão é Kafuku, ator veterano de teatro. Sua esposa (Oto no filme, sem nome no conto) é uma companheira perfeita e colega de trabalho, que grava os diálogos de sua peça para que estude no carro enquanto dirige. Ela também o trai. Serialmente. Com múltiplos homens.

Dividido entre a estabilidade conjugal e um acerto de contas que sem dúvida a destruiria, Kafuku opta pela inação. Em tempo, nenhuma outra escolha lhe será possível. Sua esposa morre (de câncer fulminante no conto, de uma doença súbita não declarada no filme). A dúvida, o choque, e os assuntos inacabados corroem o que resta do homem que um dia foi.

Não é difícil simpatizar com Kafuku. Embora seja a personagem ponto de vista, o ator parece viver pelo mote de outra personagem de Murakami, que certa vez disse que “apenas escrotos sentem pena de si mesmos”.  O conto é quase que inteiramente contado do banco de trás de seu Saab 900, em conversas com Misaki, motorista contratada pelo teatro depois que um diagnóstico de glaucoma o impossibilita de dirigir.

É Misaki que, em dado momento, lhe dispara uma Pergunta-Gretchen – “Por que você não tem amigos?” – depois da qual Kafuku se abre como uma rede esgarçada por toneladas de pensamentos vergonhosos.

… e em imagens

E é aqui que as semelhanças do filme com seu material de origem acabam.

Em seu longa, Hamaguchi força Kafuku para fora de seu Saab com a mesma violência da pergunta de Misaki. Sua esposa, antes uma recordação mal digerida, ganha um nome. Flashbacks da traição nos mostram os detalhes que o protagonista do conto reluta até em imaginar.

Enquanto que Murakami apenas nos informa que Kafuku estava ensaiando a peça Tio Vânia de Tchekov, Hamaguchi transforma sua montagem em uma história dentro da história, praticamente nos forçando a enxergar os paralelos entre uma obra e outra.

Em mãos menos habilidosas, a inclusão de toda essa bagagem extra afundaria a história mais rapidamente do que levaríamos para dizer que “o livro era melhor!”.  Mas há duas características do filme de Hamaguchi que o põe em um caminho diferente.

Em primeiro lugar, a despeito de todos os desvios, ambas as obras chegam ao mesmo lugar.

Kafuku, descobrimos no conto, é um homem sem mulheres, no plural. Muito antes de descobrir a traição, seu casamento foi abalado com a morte precoce de sua filha. Murakami nunca soletra o paralelo, mas é possível deduzir que, como Molly e Leopold Bloom de Ulisses, foi a morte da criança que colocou Kafuku e sua esposa em uma crise que apenas os braços de terceiros podia aliviar.

E Misaki, sua motorista, é uma mulher sem homem. Especificamente, uma mulher da idade de sua filha, consternada pela ausência de uma figura paterna. É da aproximação entre os dois, mais do que a traição que sofreu, que o conto verdadeiramente trata.

O filme de Hamaguchi subverte essa prioridade, afogando o relacionamento de Misaki e Kafuku sob o peso de quase três horas de tramas paralelas. Até mesmo o amante de sua esposa (no conto, apenas um de muitos) ganha um holofote para chamar de seu – junto com um arco pessoal que envolve suas ambições como ator e até mesmo um passado criminoso.

Mas Misaki e Kafuku ainda assim se encontram e abrem-se um para outro e percebem que são peças de um mesmo quebra-cabeças, ainda que tão maltratado pelos anos que dificilmente pode ser montado.

“Isso é tudo o que fazemos” disse, certa vez, outra personagem de Murakami, “tomamos infinitamente o caminho mais comprido”. Drive My Car, o filme, vive por esta máxima.

Em segundo lugar, mesmo o conteúdo original de Hamaguchi parece misteriosamente Murakamiano.

A traição de sua esposa, no conto apenas mencionada, ganha no longa uma cena de sexo ao som do Rondó K.485 de Mozart– tocado de um disco de vinil, ainda por cima. Leitores veteranos do autor reconhecerão de pronto o apreço de Murakami por música clássica – e por cenas eróticas (segundo seus críticos) mais tristes que prazerosas de se ler.

Se originalmente uma tomboy nas linhas de Kaoru, a durosa dona de um motel e Após o Anoitecer, a Misaki do filme mais se aproxima de uma contraparte jovem de Reiko, ex-pianista de Norwegian Wood que aconselha o protagonista Toru à luz dos sofrimentos de seu próprio passado.

O longa, de fato, parece quase uma releitura de Norwegian Wood, com jovens universitários com as emoções à flor da pele trocados por adultos de meia-idade. Mesmo as digressões mais originais de Hamaguchi – as cenas e mais cenas sobre o processo de criação de Kafuku, a subtrama sobre uma atriz surda-muda – lembram o enredo livre de seu romance de 1987, que acompanhar suas personagens sem a mordaça de um Kishotenketsu ou uma estrutura em três atos.

É possível imaginar um mundo paralelo em que Muramaki em pessoa tivesse concebido cada um desses detalhes. Provavelmente, enquanto escutava o Rondó K.485. Ou corria pela manhã.

Um ponto de partida… para a própria obra

Nada disso desmerece o trabalho de Hamaguchi e Takamasa Oe, que coassina o roteiro. Pelo contrário, suas escolhas mostram que seu filme possui algo cada vez mais raro no campo do entretenimento. Um propósito.

Hoje em dia, gastamos tanta energia debatendo se uma adaptação é ou não boa que raramente nos perguntamos para que serve uma adaptação.

Qual é o propósito de reescrever uma história que já existe? Para que revisitar conflitos, plot twists e retratos conhecidos de antemão?

Hamaguchi e Oe têm uma resposta: ela é apenas um ponto de partida – não, necessariamente, para novas ideias, ao menos não como um fim em sim, mas para fisgar aquelas escondidas no próprio texto; não para negar ou substituir a obra, mas para torná-la mais a obra que é.

Leiam comigo as últimas linhas do conto:

— Eu vou dormir um pouco – disse Kafuku.

Misaki não respondeu. Ela estudou quietamente a estrada. Kafuku estava grato pelo seu silêncio.

Quando Misaki aparece na última cena do filme de Hamaguchi, ela também estuda quietamente a estrada. Ela não está na companhia de Kafuku, dirigindo-o a mais uma peça. Não está mais sequer no Japão. Hamaguchi não nos explica o que faz na Coreia ou porque dirige o carro que pertencera ao ator.

Mas nós, como ele, somos gratos pelo seu silêncio.