Era, como diria Vinícius, um prédio muito engraçado. Famílias com exatamente seis pessoas ocupavam todos os apartamentos.

Aqui e ali, coisas estranhas começam a acontecer. Um homem cuja barba cresce mais rápido do que é capaz de cortá-la. Uma pessoa cujas bolha no pé viraram mini lagoas – com girinos e tudo.

“É coisa do Demônio” explica uma vizinha de outro prédio. Seis, afinal de contas, é o número da besta.

As pessoas da cidade começam a evitar o prédio. Isolados do mundo, seus moradores criam sua própria rotina, depois seu próprio banco central e moeda. Com o tempo, decretam independência e criam suas próprias forças armadas. Na Baía de Tóquio, é possível vê-los em exercícios conjuntos com a Marinha Japonesa.

Se a história acima a fez perguntar o que diabos acabou de ler, não está sozinha. A historinha vem de um dos contos de People From My Neighbourhood da escritora Hiromi Kawakami.

No papel, o livro é um compilado de microficção sobre os habitantes de um subúrbio de Tóquio. Na prática, é um álbum de retratos tão repleto de realismo fantástico, absurdo, metáforas e humor que parece feito sob medida para fritar nossas sinapses.

Esse não é um livro escrito com palavras, mas com imaginação em estado bruto.

As pessoas do meu bairro

Não olhe muito a fundo. Apenas curta o momento.

Esse é o sentimento que a protagonista sem nome de People From my Neighbourhood parece evocar.

Em sua voz, leitores veteranos de Kawakami reconhecerão de pronto o bom-humor de Quinquilharias Nakano, seu romance sobre funcionários de uma descontraída loja de antiguidades. Em certas histórias, o paralelo mais forte é com Parada, conto sobre crianças que se descobrem acompanhadas por seres da mitologia japonesa.

Porém, se Nakano mantém dos dois pés no campo do realismo e o segundo se insere na tradição do folclore, People From My Neighbourhood é uma obra orgulhosamente mais caótica.

Seus capítulos não são exatamente “contos” mais do que descrições de vizinhos de um bairro fictício – e dos eventos, muitas vezes absurdos, que protagonizam. Um adolescente que só é capaz de pronunciar três frases – “Devo assinar aqui?”, “A conta final, por favor” e “Está chovendo forte hoje” – e ocupa um banco no parque como se fosse seu escritório. Vovô Sombras, assim chamado por possuir duas sombras: uma em constante pé de guerra com a outra. Hachiro, garoto-problema abandonado pela família cuja custódia, entre os moradores, é determinada por uma loteria. A dona de uma decrépita casa noturna chamada Love, que passa noite após noite cantando a mesma música no karaokê. Nenhum cliente jamais agracia seu estabelecimento. Ninguém sabe como paga suas contas.

Personagens já apresentadas reaparecem em contos futuros, não necessariamente, do mesmo jeito ou no mesmo momento de suas vidas. A narradora sem nome migra sem cerimônia do passado ao presente e futuro. Muitas vezes, com tão pouco apreço à ordem que suspeitamos se tudo não passa de uma “trollagem”. Apenas Kawakami é capaz de escrever sobre uma doença que transforma todos em pombos – com sequelas irreversíveis –  e retornar ao status quo para o início de outro capítulo.

Nesse sentido, seu livro se aproxima do espírito de Shinya Shokudou (Midnight Diner), mangá de Yarou Abe sobre as histórias – às vezes maravilhosas ou sobrenaturais – de clientes de um boteco da madrugada. No caso de People From My Neighbourhood, bem mais do que “às vezes”.

Cena da adaptação às telas de Shynia Shokudou

Ao contrário de Shokudou, a obra de Kawakami tem os dois pés e alguns tentáculos no campo do realismo fantástico. Há um taxista que leva fantasmas para passear depois do expediente. “Mulheres são mulheres” ele protesta “Sempre é divertido tê-las por perto, mesmo se elas forem meio translúcidas e não tiverem pernas”.

Há uma garota que encontra uma criatura fedida em uma excursão escolar, cria-a até assumir a forma de um homem e a usa para sessões intermináveis de sexo. Quando seu companheiro insaciável começa a traí-la com outras mulheres, ela não consegue encontrar energias para se importar: “afinal de contas, ele não era uma pessoa real, apenas uma coisa estranha.”

Em certas histórias, é difícil escapar à impressão de que o livro de Kawakami é uma coleção de retratos de uma humanidade reduzida ao absurdo. Seus contos começam esquisitos, às vezes absurdos, então progridem a um nível de nonsense que viola qualquer suspensão de descrença.

Em um dos contos, por exemplo, duas crianças olham para uma estátua de bronze e decidem que também gostariam de ser homenageadas desta maneira. Tempos depois, elas declaram guerra ao Estado pelo direito de terem seu próprio monumento. A revolução é derrotada meses depois, e as crianças voltam para casa dramaticamente transformadas: uma tingira o cabelo de vermelho; outra aprendera a tocar trompete.

É o tipo de humor que esperamos do Flying Circus de Monty Python mais do que da autora de A Valise do Professor.

Mas Kawakami é menos consistentemente engraçada que a trupe britânica, e se permite, vez ou outra, nos derrubar com a rasteira de um arroubo de emoção. A linha que separa o fantástico do esquisito é fina – fina demais, muitas vezes, para que enxerguemos a diferença. Se alguma pessoa consegue sobreviver às 120 e poucas páginas de seu livro sem se lembrar de algum ex-morador ou indigente de seu próprio bairro, ela provavelmente não tem coração.

No Japão contemporâneo, realismo fantástico esteve por muito tempo atrelado ao sucesso sem paralelos de Haruki Murakami. People From My Neighbourhood se distancia da atmosfera onírica e urbana de seus romances, mas tampouco se confunde à prosa sóbria, melancólica de Yoko Ogawa; à sátira perturbadora de Sayaka Murata, muito menos à tradição latino-americana do realismo mágico. É um livro difícil de descrever, mais ainda de compreende, se é que “compreensível” é sequer um verbo compatível com sua irreverência. É, porém, uma obra que não deixa de nos surpreender da primeira à última frase.

O que mais um leitor poderia querer?