Você sem dúvida já teve contato com Megumi Hayashibara, ainda que não a conheça de nome. Dubladora, cantora e radialista japonesa com uma carreira de mais de trinta anos, ela já trabalhou em alguns dos animes mais famosos de todos os tempos, como Evangelion (Rei Ayanami), Cowboy Bebop (Faye Valentine), Ranma ½ (Ranma) e Pokémon (Jesse).
The Characters Taught Me Everything (“As Personagens me Ensinaram Tudo”), livro de sua autoria publicado recentemente nesse lado do mundo, é uma rara (e preciosíssima) oportunidade de vê-la atrás da máscara.
“Tirar a máscara”, talvez, não seja sequer a expressão adequada. Hayashibara escreve com a aura de mistério de quem se esforçou por décadas para nublar as fronteiras entre si própria e as vozes a quem deu vida. Fechando metaforicamente os olhos, é até possível imaginar que lemos não uma mulher de carne e osso, mas uma alma compartilhada entre todas suas personagens.
Sua retrospectiva é menos uma autobiografia que uma história de quatro décadas seminais na história dos animes – e daquilo que as tornou tão mágicas.
Vivendo a vida um episódio por vez
Hayashibara não escreve como uma escritora. Seu texto é espontâneo e informal, como se transcrito se um conversa face-a-face, separada dos leitoras apenas pelo espaço entre os bancos de um izakaya.
Sua fórmula também é simples – e forte justamente por isso. Cada capítulo é dedicado a uma personagem do vastíssimo rol de personagens a quem a atriz deu uma voz. Ela nos introduz à obra, conta-nos o que rolou nos bastidores e, fiel ao título, nos diz o que aprendeu com ela.
Essa mera premissa já faz do volume um item obrigatório na biblioteca de qualquer fã de anime. “Eu espero que esse livro possa se tornar uma pequena peça da história do anime”, diz a autora em sua conclusão. A seiyuu não poderia estar mais errada. Ela já é indiscutivelmente uma peça, e nada pequena, da história da mídia. Não me surpreenderia que sua memória, além de uma divertida leitura, viesse a se tornar base para estudos sobre animes por anos a fio.
Digo “memória”, palavra que aparece inclusive em seu marketing, mas vale a pena mencionar que o livro mal toca na vida pessoal de sua autora. Em tempos dominados por influencers que são seus próprios produtos, é reconfortante ouvir de uma criadora tão apaixonada por sua arte que sequer cogita roubar seu holofote.
É fascinante observar, pelos seus testemunhos, o quão radicalmente a indústria de dublagem se transformou com o passar das décadas. Nos primórdios, segundo relatos de seus senpais, o voice-over de filmes estrangeiros era feita ao vivo, e um único erro podia comprometer todo um dia de trabalho. Nos anos de 2010, em contraste, os seiyuus foram apresentados a toda sorte de inovação técnica. Foi o caso da dublagem de Rune Balot em Mardock Scramble, que combinou seu registro normal com uma captação do som conduzido pelos seus ossos, de maneira a produzir uma voz sintética.
Ela nos conta da feliz surpresa em interpretar heroínas em animes infanto-juvenis para, anos depois, trabalhar com estes mesmos adolescentes, hoje adultos e dubladores, gravando animes para uma nova uma geração de fãs. O número de colegas mortos que cita ao longo dos capítulos é um lembrete mais sinistro da passagem do tempo. Trabalhar com colegas de diferentes idades significa, infelizmente, ser mais exposto ao fim da vida.
Não é à toa que a passagem do tempo é um dos assuntos mais recorrentes ao longo de seus testemunhos. “Avanços na tecnologia e desenvolvimento dos sentidos humanos não são diretamente proporcionais” escreve ela. “Quando a tecnologia avança rápido demais, pessoas são deixadas para trás.” Sentimento que direciona ao enredo dos inúmeros animes sci fi em que trabalhou, mas também aos próprios avanços na tecnologia de produção, nem sempre feitos com os dubladores (ou mesmo os espectadores) em mente.
Ao mesmo tempo, a experiência de interpretar personagens que não batem com sua idade – muitas vezes, dentro de séries que se estendem, elas próprias, através dos anos – passa uma estranha sensação de atemporalidade. “Às vezes, ser uma dubladora é como estar descolada do tempo”.
“Ainda que o analógico evolua ao digital, ou os humanos evoluam a uma inteligência artificial, os sentimentos que uma dubladora coloca em sua voz quando está diante do microfone jamais desaparecerão.”
Outras digressões são menos felizes. Hayashibara é polida demais para dizer com todas as letras, mas muitos dos animes em que trabalhou passam longe de ser obras-primas. Na tentativa de encontrar uma pérola de sabedoria que encaixe nas séries mais comerciais, seu livro soa às vezes como um volume de auto-ajuda. O capítulo sobre a franquia Gundam, em que filosofa sobre o sentido da guerra, é particularmente fraco.
Felizmente, a parte boa de seu livro mais do que compensa a leitura. Em capítulos que soam particularmente relevantes hoje, nos anos pós-#MeToo, ela comenta sobre como interpretar certas personagens a pôs em conflito com suas próprias noções de feminilidade. Uma autointitulada “tomboy” que nunca se encaixou em modelos prontos de gênero, Hayashibara viu no anime tanto uma oportunidade quanto uma camisa de força.
Por um lado, escutar briefings descrevendo características vocais como masculinas e femininas sempre lhe pareceu “uma forma de lavagem cerebral.”
“Se existisse um jeito de ser objetivamente feminino ou masculino desde o começo, eu não acho que essas palavras teriam sido sequer inventadas.”
“Eu me pergunto se essas palavras não foram criadas porque tantas pessoas não estão fora dos moldes. E sinto que muitos de nós vivem nossas vidas presos pelas suas restrições, como uma maldição”.
Por outro lado, ela também conta como certas personagens femininas a expuseram a facetas do universo feminino que ela mesma não conhecia. É o caso da sensualidade agressiva de Faye Valentine, e sobretudo de Miyokichi de Showa Genroku Rakugo Shinju, que chegou, em sua história, a trabalhar como profissional do sexo. Numa das confissões mais surpreendentes, Hayashibara conta que pediu ao marido que lhe indicasse filmes eróticos para que conseguisse entender a essência da personagem.
Ainda mais fascinante é a história daquela que, para muitos, é sua voz mais conhecida: Rei Ayanami. Se hoje a personagem de Evangelion é lliteralmente a patrona de um arquétipo, quando o anime foi lançado, em 1995, a ideia de uma personagem incapaz de demonstrar sentimentos era praticamente uma contradição em termos.
As orientações de seu criador, Hideaki Anno não ajudavam: “Não é que ela não tenha sentimentos” disse ele “Ela era incapaz de entender o que eram sentimentos”. Para interpretá-la, Hayashibara teve ela própria de se perguntar o que significava ter emoções.
Ela nos conta que a gravação aconteceu durante um período conturbado na relação com sua mãe, uma mulher tradicional que a condenava por preterir a vida doméstica em prol do trabalho. O cabo de guerra entre a paixão pela carreira e as pressões maternas levou Hayashibara à conclusão de que ter emoções é vestir dois rostos. De onde ser Rei Ayanami significava tornar-se uma pessoa incapaz de hipocrisia.
É uma maneira um tanto sinistra de se encarar as emoções, mas tem tudo a ver com uma artista cuja profissão consiste justamente em encarnar outras pessoas. O tema é recorrente em seus testemunhos. “Interpretar alguém que alterna entre dois rostos veio naturalmente a mim” ela diz de Paprika “Em vez de mudar meu tom de voz, eu mudava minha maneira de pensar”.
Longe de provocar angústia, o fardo parece agradá-la. “Quando eu comecei esse trabalho” explica “eu sentia que estava acomodando outras almas dentro do meu corpo. […] Eu precisava apenas me encolher e dar espaço” a elas.
Fãs de anime – ou de qualquer outra arte – costumamos estimar nosso hobby por ampliarem nossos horizontes, colocarem-nos nos pés de outras pessoas. A sensação é de ser somado a cada uma dessas vidas ficcionais, como se nos tornássemos mais quem próprios somos a cada ponto de vista novo que adquirimos.
Ver uma atriz descrever seu trabalho como uma tentativa de se encolher para acomodar essas máscaras tem, à primeira vista, um quê de sinistro. Mas apenas à primeira vista.
Após ler o seu livro, não tive como não interpretar a colocação como fruto de generosidade, tanto para seus espectadores quanto para os mangakás e diretores a cujas criaturas deu vida.
O povo é um silêncio, e eu serei seu campeão, disse Gwynplaine, o protagonista de O Homem Que Ri de Victor Hugo. O universo dos animes não é exatamente um silêncio (ao menos, não literal). Mas é indiscutível que tem uma porta-voz – e uma campeã.
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