Eu era criança quando chegou às livrarias No Ar Rarefeito, relato do jornalista Jon Krakauer sobre o desastre do Monte Evereste de 1996.  Graças, entre outras coisas, a um número excessivo de alpinistas pouco treinados, a temporada de escaladas resultou em uma tragédia. Doze pessoas morreram. 

Na época, não tinha idade, nem interesse, para ler o testemunho de Krakauer, um dos sobreviventes da dita temporada. Mas acompanhei os acontecimentos por meio do meu pai, que escolheu o livro do jornalista como leitura de férias e o terminou com a palidez de quem sobrevive a uma avalanche. “Se fosse hoje, eu não o leria” ele me disse anos depois, ainda chocado com seu conteúdo. 

De todos os detalhes horripilantes que compartilhou comigo, o que ficou em minha mente foi o de Beck Weathers, sobrevivente que voltou para casa sem as mãos, pés e nariz. 

A imagem de um alpinista semicongelado, sem nariz, habitou meus pesadelos por semanas à fio. 

Por conta disso, alpinismo sempre me pareceu um esporte mais sinistro que heroico; uma compulsão perigosa mais do que a empreitada romântica de humanos desafiando a natureza. 

É um bom mindset com que encarar Le Sommet des Dieux, animação de Patrick Imbert baseada no mangá de Jiro Taniguchi.

O cume dos deuses

É o tipo de coisa que jamais adivinharia dos trailers, mas Le Sommet des Dieux tem mais em comum com Cidadão Kane que com um filme tradicional de escalada.  

Suas primeiras cenas nos apresentam a Fukumachi, um fotógrafo enviado ao Evereste para cobrir a temporada de alpinismo. Ao escutar que trabalha em uma revista, um sujeito lhe oferece uma câmera antiga. Segundo ele, ela teria pertencido a George Mallory, alpinista britânico que desapareceu na montanha em 1924. 

A relíquia é mais do que uma simples curiosidade. Diz a história oficial que o Evereste foi escalado pela primeira vez por Edmund Hillary e Tenzing Norgay em 1953. Mas e se Mallory, antes de desaparecer, tivesse alçado o cume e fotografado a conquista? Estas fotos, se reveladas, reescreveriam a história do alpinismo. 

Fukumachi se recusa a comprar a câmera, tomando-a por uma fraude. Algo, porém, o faz mudar de ideia. Logo depois de receber sua negativa, o sujeito que a vendeu é confrontado por outro alpinista, que o acusa de lhe ter roubado a máquina. Para a surpresa de Fukumachi, ele é ninguém menos que Habu Jôji, lendário escalador japonês que desapareceu da sociedade anos atrás. 

Fukumachi pede a licença de seu editor para ir atrás de Habu – em teoria, ao menos, para recuperar a câmera de Mallory. Porém, quanto mais retraça os passos do famoso alpinista, mais a ambição de reconstituir a vida deste homem se transforma em um fim em si. 

Habu não é Charles Foster Kane, mas as migalhas de sua vida, examinadas por Fukumachi por meio de reportagens antigas, vídeos e conversas com antigos conhecidos, parecem arrancadas do filme clássico de Orson Welles.  

Ele era genial, mas irascível. Todos que cruzaram seu caminho terminaram mortos, traumatizados ou enfurecidos. “Para Habu, nós éramos apenas um degrau para que ele escalasse montanhas cada vez mais altas”, confessa um ex-parceiro. 

Em um flashback no início do filme, ele abandona uma confraternização entre colegas de seu clube de montanhismo. Do lado de fora, é interpelado por um desconhecido que lhe pede dicas de escalada. Habu atende seu pedido – por horas a fio, sem sequer se preocupar em procurar um assento.  

Somos lembrados da atriz Ayumi Himekawa de Glass no Kamen, que admite que sua rival artística, Maya Kitajima, é a única pessoa no mundo que a entende. 

Le Sommet des Dieux é uma adaptação do mangá Kamigami no Itadaki de Jiro Taniguchi; este, por sua vez, baseado em romance de Baku Yumemakura lançado em 1998.  O Evereste continua onde sempre esteve, mas muita coisa mudou, de lá para cá, em sua imagem popular.

Em 1998, o desastre do Evereste – e a polêmica suscitada pelo livro de Krakauer – ainda estavam frescos na memória. Mallory – cujo cadáver seria de fato encontrado um ano depois – ainda era uma figura semi-folclórica. A imagem do monte como um playground para ricaços estava em processo de construção. Como experiência, a obsessão por escalá-lo despertava mais espanto que sarcasmo, Fosse a montanha uma droga, seu “consumo” era a nóia eufórica de um novo narcótico, não as consequências batidas de um produto há muito recriminado. 

Hoje, depois de dois desastres ainda maiores do que o de 1996, uma greve de sherpas (os guias nepaleses que acompanham as expedições) e denúncias frequentes do dano ambiental causado pela indústria do alpinismo, ninguém precisa de um filme para entender que há algo de errado em nossa relação com as montanhas. Isto funciona para o filme de Imbert, que se permite acompanhar as vidas de Habu e Fukumachi sem a necessidade de emitir juízos. 

Seu longa se passa quase que inteiramente ao ar livre, mas os conflitos que retrata são pessoais e internos. As cenas de escalada são tours de force de suspense, mas elas não têm qualquer pretensão de heroísmo. Pelo contrário, a cinematografia de Imbert parece estimular em nossos corações uma curiosidade sádica, como se a decisão voluntária de escalar uma montanha fosse comparável ao esforço visceral para sobreviver a uma tragédia. “Ele vai ou não sobreviver?” é o que nos perguntamos a cada corda estourada ou pedra fora de lugar. E a resposta, entendemos, depende nem tanto do que enfrentamos por fora, mas também pelo que temos por dentro.  

É um prazer similar ao de assistir à personagem de James Franco serrar seu próprio braço em 127 horas – se é que “prazer” é o nome correto para este sentimento.   

As montanhas são só um caminho 

Como alguém sem disposição para gastar grandes fortunas arriscando a vida em montanhas, a obsessão de Habu me parece tão absurda quanto a ambição de um Jeff Bezos ou Elon Musk de viajar ao espaço. 

Mas encarar o filme de Imbert como uma mera fábula sobre ricos excêntricos é perder de vista o mais importante.  

Nem todas as compulsões humanas envolvem voos ao Nepal e tanques de oxigênio. Entre nós, pessoas comuns, há também aqueles que se colocam na linha do perigo por motivos nem sempre aparentes. Pessoas obcecadas por desafios sexuais, brigas de rua, rachas em avenidas desertas, substâncias nocivas; obcecadas pelo frio na barriga de subir na ponta dos pés à beira de um abismo, sem saber quão fundo cairão se o pior acontecer. 

Ou ainda compulsões menos óbvias, como a que move Fukumachi a reconstruir a história – e os motivos – de Habu. Eventualmente, o fotógrafo é obrigado a admitir que o alpinista é seu próprio Evereste particular: um desafio intransponível, um cume que não parará de tentá-lo com seus segredos até ser desvendado. 

O que move pessoas a essas obsessões? 

“Não sei o que é” responde Habu no filme. “Parei de me perguntar isso quando percebi que não vivia sem escalar.” 

Nós, pessoas, somos obcecadas por sentidos. Não estamos satisfeitos em seguir o curso dos dias e atender nossas vontades primárias. Precisamos sentir que caminhamos para algum lugar, que a vida é mais do que uma série de eventos marcantes pontuados por vales de insignificância. 

Dessa necessidade vem o milenar (e infinito) imperativo para dar um sentido à nossa existência, causar um impacto nos outros, ser lembrado. 

Não para Habu. “Algumas pessoas buscam o sentido da vida.” Ele diz. “Eu não.” 

“Escalar é a única coisa que me faz sentir vivo.” 

“As montanhas são um caminho, não o objetivo”, complementa Fukumachi. 

Sim. Mas um caminho para onde? 

Para uma vida que nos proporcionará o alívio de nunca mais ter de procurar respostas. 

Podemos denunciar esse estilo de vida como uma tentativa maquiada de escapismo. Podemos zombar daqueles, como Habu, que precisam subir acima dos oito mil metros para gozar de uma satisfação que a vida cotidiana já nos proporciona. 

Porém, como uma montanha em toda a sua glória, não podemos ignorá-los. Nem deixar de admitir, ainda que apenas para nós mesmos, no escuro dos nossos pensamentos, que gostaríamos de experimentar, por um instante que fosse, o mundo através de seus olhos.