É normal que cidadãos falem mal de seus políticos.
Viver em sociedade é uma coisa naturalmente estressante. Não escolhemos em que país, ou sob que tipo de governo, temos o infortúnio de nascer. Ninguém nos pergunta se queremos ou não obedecer às leis. E aqueles que estão no poder têm uma capacidade sem igual de tornar nossa vida um inferno, sem que, na maioria das vezes, possamos fazer qualquer coisa para evitar.
A onda de populismos de extrema-direita que sacudiu o mundo na última década deu um novo sentido a essa insatisfação. Os líderes que subiram ao poder não são apenas corruptos ou incompetentes. São seres humanos repugnantes em praticamente todos os sentidos imagináveis, que parecem se esforçar para violar cada limite da decência e bom gosto.
Para aqueles que acompanham os noticiários, a impressão é de que não somos mais apenas passageiros em uma viagem que embarcamos a contragosto (o que já seria, por si só, ruim). Estamos acorrentados a um veículo que segue desgovernado à beira de um precipício.
Se existe algum alento, é o de que não somos os primeiros a vivenciar tempos turbulentos – nem a transformar estas turbulências em arte. Heike Monogatari, épico da literatura japonesa recentemente adaptado às telas, é uma verdadeira lição do que torna um governo legítimo – e das águas profundas que nos esperam se nossos líderes flertarem com o abismo.
Tirania e devassidão
Se você não conhece a obra, aqui vai um primer.
Heike Monogatari é um épico sobre a derrocada dos Heike (também conhecidos como Taira), clã que dominou a política japonesa no final do século XII. Poderosos e bem conectados, os Heike deixam o sucesso subir à cabeça e se rendem a atrocidades de toda espécie. Seus desmandos motivam um clã rival, os Genji, a usurpá-los do poder.
O conflito, baseado em eventos reais, é conhecido como a Guerra Genpei e terminou com a vitória dos Genji.
Sua adaptação em anime, produzida pelo estúdio Science Saru e dirigida por Naoko Yamada, condensa em apenas 11 episódios as mais de 700 páginas do texto original (a depender da edição). Mesmo assim, ela preserva a lição central da obra sobre a natureza e consequências do poder.
Lendo (ou assistindo) Heike Monogatari à luz dos populismos contemporâneos, poucas personagens nos despertam mais familiaridade que Kiso no Yoshinaka, o terrível comandante dos Genji que toma Kyoto das mãos dos Heike. Bruto criado no anterior, a pompa e a etiqueta da capital imperial são tão incompreensíveis quanto uma língua estrangeira. Pior, Kiso parece tirar prazer em escandalizar seus pares – e mesmo seus superiores – quebrando o maior número de regras possível.
Como os populistas de hoje, ele se gaba de ser um outsider, vestindo a intransigência com o establishment e o desprezo às regras do jogo como um manto de que se orgulhar.
Infelizmente para as personagens do épico, se os outsiders de hoje fingem serem “gestores”, “capitães” ou coisas que o valham, Kiso não esconde ser um sádico. Ele destrói plantações e rouba comida dos camponeses para dar aos seus soldados. Para sanar o tédio, permite que os homens invadam as casas das pessoas e estuprem seus habitantes.
Kiso é um tirano, mas criticá-lo por ser “autoritário” é perder de vista o mais importante. Ele não desrespeita o imperador porque está em uma cruzada popular contra a monarquia. Ele é simplesmente imaturo e não gosta de se impor limites.
Ele não destrói plantações porque pratica uma ação calculada de terra queimada. Ele o faz porque tem um cavalo e, segundo ele, cavalos precisam comer.
Ele não aterroriza a população como parte de um regime de medo – como tantos ditadores na era contemporânea. Como um adolescente manhoso, ele acredita que o mundo gira em torno do seu umbigo, e as vontades dos outros não importam.
O filósofo Harry Frankfurt tem um nome para a postura de Kiso: devassidão. Segundo ele, o devasso é um indivíduo que age sempre de acordo com suas vontades imediatas. Ele não tem capacidade de se segurar e pensar no longo prazo; de considerar se aquele curso de ação, no fundo, é o mais apropriado. Quando o desejo bate, é com a força de uma abstinência de droga.
Quando o devasso é contrariado, ele não consegue resistir à vontade de mostrar o dedo do meio. Mesmo que ele seja um ministro, e as “ofensas” que recebeu sejam críticas a sua atuação em um episódio de calamidade pública.
Quando o devasso sente vontade de fazer uma piada racista, ele não tem como se segurar. Mesmo que os alvos da troça seja parceiros comerciais e seu gesto desencadeie uma crise diplomática.
Quando o devasso perde, não tem esportiva para aceitar a derrota. Como uma criança que ainda não aprendeu limites, ele esperneia, grita que “não valeu” e ameaça levar sua bola embora. Mesmo que a “derrota” em questão seja uma eleição e a “bola”, o futuro do país.
Pra Frankfurt, o devasso não é só uma pessoa irresponsável. Ele não é sequer uma pessoa. Como um animal selvagem, ele é regido completamente pelas vísceras. Debater com um representante da laia é uma perda de tempo. Ser governado por um, uma tragédia.
O texto de Heike Monogatari dá voz a esse sentimento:
“A capital inteira fervia com os Genji,
Que entravam em todos os lugares e cometiam incontáveis roubos.
Mesmo em terras que pertenciam a Kamo ou Hachiman [i.e. sagradas],
Eles ceifavam plantas de arroz ainda verdes para alimentar seus cavalos.
Eles invadiam depósitos e tomavam o que havia dentro deles;
Eles roubavam de viajantes e os privava de suas roupas.
“Quando os Heike controlavam a cidade”, as pessoas diziam,
“O lorde Kiyomori era apenas uma vaga ameaça.
Ninguém roubava todas as suas roupas.
Melhor os Heike que os Genji.”
Mais do que cruel, o devasso é perigoso porque suas ações são arbitrárias. Ao contrário de um tirano “consistente”, que sempre retribui os aliados ou tortura seus inimigos, o devasso faz o que lhe der na telha.
Ele é o sujeito que cobre aliados de privilégios em um momento, para mais tarde “fritá-los” e salvar a própria pele. É o covarde que beija os pés de seus superiores quando recebe uma intimação, mas volta atrás nas palavras na primeira oportunidade.
Apoiar um devasso é como se pendurar na roda da fortuna. Parece bom enquanto estamos por cima, mas não sabemos qual momento de glória será nosso último.
Em Heike Monogatari, os aliados de Kiso aprendem isso da forma mais difícil. Cansados dos seus desmandos, os próprios Genji enviam tropas contra ele. Num exemplo ainda mais chocante de devassidão (infelizmente cortado da versão anime) Kiso cogita brevemente virar casaca e se unir aos Heike para salvar a própria pele.
É fácil tirar dessa parte da história a mensagem de que “devassos são ruins, e devemos expulsá-los da política”. Embora não deixe de ser verdade, é uma lição fácil – e pequena – demais para as ambições do épico.
Algo que salta aos olhos quando apreciamos a obra nos dias de hoje é a ausência de protagonistas e antagonistas claros. Não porque a história tenha uma moralidade cinza, mas porque fala de vícios e virtudes que vão além de meras dinastias.
Heróis ou vilões, devassos ou comedidos, todos têm momentos de fraqueza, instantes de redenção, pecados a pagar.
Apreciando a obra sob o ponto de vista da devassidão, não é difícil entender o porquê. Afinal,
Um governo não precisa de ‘devassos’ para ser ele próprio devasso
A afirmação acima é de Arthur Applbaum, um dos pensadores que mais tem se dedicado a entender os efeitos da devassidão na política. Como ele explica, esse é um problema que vai muito além dos populistas do momento.
Tal como é esperado de uma pessoa bolar planos e agir consistentemente, ele diz, um governo deve ser capaz de fazer o mesmo. Na verdade, é ainda mais importante que um governo não seja governado pelos seus impulsos, pois a vida seu povo está, literalmente, em suas mãos.
Um indivíduo devasso pode matar alguém em um surto de ódio. Um governo devasso pode exterminar toda uma população, destruir relações diplomáticas ou causar danos irreversíveis ao meio ambiente.
Por incrível que pareça, diz Applbaum, esse governo não precisa ser formado por pessoas devassas. Uma cúpula que não consiga tomar decisões ou parar de brigar internamente pode, para todos os fins, agir de maneira indistinguível a um devasso. Mesmo que seus membros sejam os sujeitos mais íntegros, comedidos e racionais da face da Terra.
Emprestando uma metáfora da filósofa Christine Korsgaard, Applbaum compara esse governo a um saco cheio de ratos. Presos com seus colegas, os animais vão se mexer desesperadamente. Com o tempo, é até capaz que o próprio saco “caminhe” alguns centímetros para um lado ou para o outro. Diante de um estímulo externo – por exemplo, um tapa – é provável que os ratos, por coincidência, fujam para a mesma direção. Porém, não é possível dizer que o saco aja, como se tivesse uma capacidade de cálculo.
Governos devassos são tão perigosos quanto líderes devassos, pois reproduzem seu maior vício: a arbitrariedade. Tal como um devasso pode decidir salvar uma pessoa em uma ocasião e mandá-la matar amanhã por mero capricho, o governo devasso é completamente imprevisível.
O Clã Taira de Heike Monogatari é um exemplo perfeito de governo devasso. Fiel aos comentários de Applbaum, nem todos os seus membros são ruins. No início do épico, Shigemori, filho do patriarca Kiyomori, é uma bússola moral para a família. O nobre faz de tudo para preservar a reputação da família, chegando ao cúmulo de peitar o próprio pai – algo inimaginável segundo as normas sociais da época.
Mesmo Kiyomori, a despeito de ser um tirano, nem sempre foi um devasso. Para tomar o poder durante a Rebelião Heiji – uma guerra que precede os eventos do épico – ele balanceou a truculência com doses copiosas de misericórdia.
Seu principal rival, o líder Genji Minamoto no Yoritomo, por exemplo, passou anos se recusando a erguer um dedo contra os Heike. O motivo? Kiyomori havia poupado sua vida durante o conflito, ação pela qual ele ainda era grato. O patriarca dos Heike podia ser cruel, mas sabia que sua linhagem só se manteria no poder se planejasse para o futuro.
Infelizmente, Shigemori e o jovem Kiyomori eram apenas dois ratos no saco escuro que era o clã Taira. Com a idade, Kiyomori se torna cruel e arbitrário. A toda e qualquer ameaça ele responde com violência, mesmo que isto só piore as coisas no longo prazo. Na verdade, ele sequer consegue pensar no longo prazo. No leito de morte, ele literalmente diz que seu único desejo é ver seu rival, Yoritomo, morto a qualquer custo.
Os outros membros dos Taira são ainda piores. Munemori, outro filho de Kiyomori, cria um incidente político por conta de um cavalo. Ele cobiçava a montaria de Minamoto no Nakatsuna, do clã Genji. Quando Nakatsuna lhe disse que não lhe entregaria o cavalo, Munemori usou o poder da sua família para tomá-lo à força. Não satisfeito, batizou o animal de “Nakatsuna” para ridicularizar publicamente o nobre Genji.
Mas o exemplo que melhor ilustra o ponto de Applbaum é talvez o de Shigehira, um dos generais dos Taira. Enviado para refrear uma rebelião entre os monges de Nara – onde estão alguns dos templos mais importantes do Japão – ele acaba acidentalmente ponto fogo em todo o complexo.
A tragédia gera um mal-estar de que os Taira nunca mais conseguiriam se descolar. Tempos depois, quando os ventos começam a soprar em outra direção e os inimigos da família avançam contra a capital, Kiyomori e seus descendentes até chegam a implorar pela ajuda de outros templos. Os monges, porém, haviam aprendido sua lição:
“Sannou [, deus do Monte Hiei,] tenha piedade de nós!
Três mil monges, acrescentem sua força à nossa!”
Esse foi o espírito do apelo dos Heike,
Mas sua conduta ao longo dos anos
Ofendera demais os deuses
E traíra toda a esperança dos homens.
Suas preces não obtiveram resposta;
Suas súplicas não convenceram a ninguém.
Ao contrário de Kiso e Munemori, Shigehira não é um devasso. A destruição de Nara foi um erro tático que ele nunca tentou negar e pelo qual sempre se arrependeu. Como ele mesmo afirma antes de sua execução, seu único crime foi ter obedecido ordens de seus superiores. Coisa que só fez porque a alternativa – a execução por desobediência – era pior.
Infelizmente para Shigehira, seus “superiores” eram um saco de ratos que tratava a política como um jogo de acerte-a-marmota. A mão que botou fogo em Nara pertencia a uma pessoa capaz de pesar ações e consequências, mas o governo que lhe deu a ordem reagiu à rebelião dos monges como um animal selvagem a um cheiro desconhecido.
Shigemori, o Heike “do bem”, até tenta, mas não consegue desviar o clã do precipício a que se dirige. Embora sua versão literária não tenha o mesmo dom da profecia de sua encarnação no anime, ela é sábia o suficiente para entender uma verdade dolorosa. Verdade que, às vésperas de uma eleição presidencial que promete ser tão desastrosa quanto a de 2018, faríamos bem em aprender:
Um governo, uma nação, é maior que a boa vontade de um único indivíduo. É uma entidade grande demais – perigosa demais – para ser largada à deriva.
Colocá-la de volta ao rumo não é tarefa para devassos que prometeram “se comportar”, salvadores da pátria ou autointitulados “técnicos” subordinados a ministérios desgovernados.
Precisamos, urgentemente, nos livrar desse saco de ratos. Ou então estaremos, como os Heike, fadados a afundar no nosso próprio Estreito de Shimonoseki.
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