É mérito do Studio Ghibli que seus filmes pareçam capítulos de uma mesma história, reflexões de uma mesma (e coletiva) mente criativa. Mesmo quando se tratam de adaptações de livros variados, escritos por autores de diferentes cantos do mundo.
Conhecer como eram essas histórias antes de serem transformadas por Miyazaki e companhia é uma experiência tão gratificante quanto rara. Boa parte desses títulos, como As Memórias de Marnie e Kiri no Mukō no Fushigi-na Machi (inspiração para “A Viagem de Chihiro”) nunca foram lançados no mercado nacional.
Leitores brasileiros podem respiram um pouco mais aliviados. No começo do mês, Entregas Expressas da Kiki, inspiração do clássico O Serviço de Entregas de Kiki (1989), finalmente ganhou uma tradução para o português.
Lançado pela Estação Liberdade com belíssimas ilustrações de Daniel Kondo, o livro é nossa chance de conhecer uma referência importantíssima para o gênero de garotas mágicas – e para o romance infanto-juvenil japonês como um todo.
Àqueles que assistiram à clássica adaptação de Hayao Miyazaki, a premissa de Entregas Expressas de Kiki soará imediatamente familiar. Isto não significa, obviamente, que o romance não ofereça algumas surpresas pelo caminho.
Sua protagonista é Kiki, filha única de uma bruxa e um antropólogo especializado em magia, próxima de completar seus treze anos. Como reza a tradição das feiticeiras, ela precisa deixar a casa dos pais e morar em outra cidade por um ano, usando sua magia para ajudar as pessoas. Munida da vassoura de sua mãe e na companhia de Jiji, seu gato preto, ela alça vôo na esperança de encontrar uma nova casa.
Kiki não é a mais tradicional das bruxas, se é que podemos esperar tal coisa de uma menina de sua idade. Cansada do acolhedor, porém claustrofóbico vilarejo de sua família, ela decide se instalar na maior cidade que encontra.
O que poderia dar errado?
Como aqueles que também trocaram o interior pela metrópole bem sabem, muita coisa. A cidade em questão, Koriko, opera num ritmo próprio, seus habitantes tão apressados e indiferentes quanto as engrenagens de um relógio. Mimados pelas benesses da modernidade, eles não vêem necessidade de magia. A presença de uma bruxa de vassoura e vestido preto desperta toda sorte de desconfianças.
Felizmente, Kiki é criativa na mesma medida que rebelde e rapidamente aprende a se encaixar nesse mundo estranho. Fazendo uso de sua vassoura, a garota funda um serviço de entregas expressas, antecessor bruxesco dos drones de entrega da Amazon. Capítulo a capítulo, o romance acompanha o desenrolar de suas encomendas, tal como as verdades – algumas agradáveis, outras nem tanto – que aprende sobre os outros e si mesma.
Nas mãos certas, é o tipo de premissa que permite ser espandida indefinidamente, cada episódio uma nova encomenda. Potencial que sua autora, Eiko Kadono, levou a cabo. No Japão, o romance inspirou uma série de sete livros, o último dos quais publicado em 2017.
Fico curioso em conhecer os volumes seguintes da série (oportunidade que, com sorte, a Estação Liberdade nos proporcionará num futuro próximo). Não apenas pelo prazer de revisitar a prosa singela de Kadono, mas por conferir como sua protagonista mudou ao longo desses quase trinta anos.
Mais do que uma simples história sobre bruxas, afinal de contas, Kiki foi uma referência importantíssima para a consagração de um dos gêneros mais queridos por amantes da cultura pop japonesa: o mahou shoujo ou garota mágica. Gênero esse que passou por tantas transformações desde o longínguo ano de 1985, quando o primeiro livro foi publicado, quanto sua bruxinha titular durante seu ano de aprendizagem.
De majokko a mahou shoujo
Antes de se tornarem um ícone pop do Japão contemporâneo – Sailor Moon chegou a ser escolhida como uma das “embaixadoras” das Olimpíadas de 2020) – as garotas mágicas não eram necessariamente tão diferentes das bruxas de vassoura e chapéus pontudos do folclore ocidental. Em boa parte, isto se deve à influência da sitcom americana A Feiticeira. Tal como a série dos 1960, o mote do gênero era mostrar as desventuras de uma usuária de magia em um mundo contemporâneo. E, com isso, brincar – e também refletir – sobre o quão desencantada nossa sociedade se tornou.
Kiki é uma obra de outra mídia, mas compartilha o ponto de vista dos animes e mangás dessa geração. Nesse sentido, é um registro importante do que significava ser uma “garota mágica” antes dos báculos e cenas de transformação se tornarem parte inseparável de seu apelo. Não é uma coincidência, por sinal, que nos anos 1970 estas heróinas eram conhecidas como majokko (“pequenas bruxas”). Kiki se sentiria em casa na sua companhia.
Curiosamente, esse paralelo fica mais evidente no romance de Kadono que em sua adaptação cinematográfica. Nele, Kiki não é “mágica” apenas em razão de seus poderes, mas porque traz magia à vida das pessoas, convidando-as a encarar o mundo de uma forma mais encantada.
É o caso de capítulo em que a bruxinha é contratada para salvar o ano-novo. Ao descobrir que o relógio da cidade está quebrado a poucas horas antes do réveillon, o prefeito pede para que roube o aparelho de uma aldeia vizinha.
Ou então o episódio em que Kiki precisa agir para que o inverno não dure para sempre. Acontece que sua cidade anuncia o começo da primavera com um festival musical, uma cerimônia à la Dia da Marmota que os locais acreditam ser capaz de espantar o frio. Infelizmente, os músicos escalados esqueceram os instrumentos no trem. Se não conseguir reavê-los à tempo, a cidade estará fadada a um ano gélido.
Kadono nunca esconde o que realmente está em jogo: o grito de socorro de uma sociedade desencantada, redescobrindo valor em seus rituais e superstições.
O declínio da magia
Kiki, no final das contas, é uma carta de amor aos encantos sutis que experimentamos ao longo do dia. Trens, aviões, correios e drones da Amazon podem tornar nosso cotidiano mais fácil, mas não é só disse que se faz uma vida. Que não sejamos capazes de conjurar feitiços não significa que não tenhamos nossa própria espécie de magia: pequenos rituais, curiosidade, a capacidade de nos maravilhar com as surpresas do dia-a-dia. Nem que sejam tão mundanas como um prado coberto por capim-cidreiras que nos deixa cheirosos após uma soneca.
Não se trata de uma magia tão deslumbrante quanto uma bola de fogo ou a capacidade de parar o tempo. Para o nosso bem, contudo, é bom que seja o suficiente.
A despeito de seu frequente bom-humor, o livro de Kadono não esconde um lado trágico. No início do romance, a mãe de Kiki conta à filha que, de todos os sortilégios de bruxa, ela conhece apenas a alquimia e o vôo com vassoura. À Kiki, ensinou apenas o segundo, de onde tiramos que a arte de fazer poções morrerá com ela.
Quantas outras habilidades não tiveram destino semelhante? Por quanto tempo a própria Kiki conseguirá manter a tocha acesa diante das conveniências da vida moderna e pressões da vida adulta?
Por quanto tempo qualquer um de nós consegue manter vivas as fantasias de nossas infâncias?
Como outras histórias de garotas mágicas, Kiki é também uma metáfora sobre nosso próprio crescimento; sobre o desafio de abrir mão das poções mágicas e gatos falantes que herdamos de nossos pais e encarar o mundo com nossos próprios recursos.
Há uma cena no final do romance em que Kiki sobrevoa sua nova cidade. O pôr do sol bate na torre do relógio e cria uma sombra que lembra um ponteiro.
É uma imagem bonita, que nos mostra como a própria Koriko, antes uma selva de concreto, se tornou mágica aos olhos da bruxinha. Mas ela também traz uma mensagem mais sóbria/séria/melancólica.
Os ponteiros do relógio estão sempre se mexendo, sejamos ou não capazes de enxergá-los. O tempo não para. Cedo ou tarde, preparados ou não, todos nós estamos fadados a aposentar nossas vassouras.
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