Hoje trago algo diferente para vocês.
Se acompanham o blog há algum tempo, sabem que sou grande fã da obra de James Joyce. Minha admiração por esse autor já me levou a muitos lugares – por exemplo, a fazer cosplay de suas personagens pelas ruas de Dublin. Nunca, porém, antecipei o privilégio que vivi essa semana.
Junto com meu colega, o arqueólogo Alex Martire, entrevistei ninguém menos que Caetano Galindo, escritor, tradutor e um dos brasileiros mais engajados em tornar a obra do autor acessível ao grande público.
Naturalmente, historiadores e arqueólogos que somos, não podíamos deixar de falar sobre o passado. E falando de Joyce, esse “passado” tem nome e sobrenome: Dublin, Irlanda, 16 de junho de 1904.
Sua obra-prima, Ulisses, é uma recontagem da Odisseia de Homero ambientada na capital irlandesa dessa data. Tão detalhado é o retrato que fez da cidade no começo do século XX que o próprio Joyce disse que, se Dublin desaparecesse, poderia ser inteiramente reconstruída usando apenas sua obra de referência.
Isto, claro, em 1922, quanto o romance foi publicado pela primeira. E quanto a 2022, ano de que rapidamente nos aproximamos? Ulisses continuará a ter relevância quando a cidade que o inspirou deixar de existir, substituída por novas “Dublins”? Ou, melhor dizendo, conseguirá a própria Dublin honrar o pedestal em que Joyce a colocou na medida em que se transforma em outra coisa – e os lugares e edifícios citados no livro deixarem de existir?
A mim e ao Alex, Galindo se mostrou otimista. Disse que, por mais louvável que seja a adoração moderna a Joyce (o Bloomsday, evento dedicado ao autor, é atualmente a segunda maior festividade da Irlanda) não podemos esquecer de que ela é um fenômeno turístico bastante recente. Em 1941, quando Joyce morreu, a recepção na cidade foi fria. E levaria muitas décadas a amornar.
“Essa relação da cidade com o livro [foi] alterada na marra” ele disse, comentando sobre a pressão de leitores e críticos, sobretudo nos EUA, que elevaram Ulisses ao patamar de obra-prima da literatura. “A Irlanda meio que teve de engolir o Joyce de atravessado”.
Galindo também comentou como transformar lugares citados por seus livrosem museus não é o mesmo que preservá-los. A farmácia Sweeney, cenário de um dos capítulos de Ulisses, por exemplo, hoje é um centro cultural que organiza leituras de textos de Joyce. Não seria mais fiel ao espírito do romance que continuasse funcionando como uma farmácia? Onde está a linha entre manter a Joyce de Dublin e imortalizá-la como um monumento empalhado, inerte, que não mais pertence à vida cotidiana das pessoas?
“A [Sweeney’s] sobreviveu?” ele pergunta “É uma coisa fake. É uma coisa criada para se vincular ao fato de que aquelas paredes estão de pé. […] É Dublin se alterando por causa do Ulisses.”
E é nisso, talvez, que está a maior força desse romance de cem anos atrás. Dublin não é apenas o palco da história de Joyce. “A paisagem da cidade mudou” diz Galindo. “Ele sacralizou certos espaços […] Delimitou aqueles lugares como lugares especiais.”
Em tempos em que influencers pregam publicamente que clássicos não servem para nada, não é pouca coisa. Como o sultão de Sandman que barganhou com Morfeu para que seu reino durasse para sempre, Joyce conseguiu a proeza de transportar uma cidade inteira para o mundo dos sonhos.
“O Ulisses vai sobreviver. E aquela cidade vai sobreviver no Ulisses.”
Você pode assistir ou ouvir a entrevista completa na página do ARISE.
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