Vocês que acompanham o blog sabem que eu tenho uma queda por artistas que tiram algo a mais da cultura pop. Sejam elas romancistas, cosplayers ou poetas, há algo de belo – e valente – em utilizar games, quadrinhos e animes como ponto de partida, não um fim em si. Em uma paisagem midiática cada vez mais dominada pela impessoalidade e por algoritmos, criar é a maneira mais pura de mostrarmos que somos protagonistas das nossas nerdices, não meros consumidores esperando na fila pelo que quer que esteja em oferta.
Foi uma grata surpresa, assim, conhecer o trabalho do Sofá a Jato, banda gaúcha formada por Frederico Demin, João Beal e Yussef Lima, que partiram de referências comuns a toda uma geração de gamers para encontrar sua própria voz no metaverso da cultura pop.
Nessa entrevista exclusiva, eles me contaram sobre como usam música e recursos audiovisuais para replicar a sensação de escapismo gerada pelos games – e sobre o que significa “escapar” em um mundo onde a alienação vem se tornando o novo normal.
Confiram:
O Sofá a Jato é uma banda com uma identidade bastante distintiva, misturando estilos brasileiros com expressões dos games e da cultura pop. De onde veio a ideia por trás do projeto? Vocês poderiam contar um pouco sobre como foi seu percurso até aqui?
O nome da banda iniciou ainda no colégio. A intenção era participar do show de talentos e se divertir. Esse interesse por games sempre esteve presente no grupo, principalmente pela arte que eles transmitem no visual e no som juntos. A gente sempre curtiu o poder imersivo das trilhas sonoras de jogos, o quanto uma boa música fazia a gente entrar mais no mundo do jogo e esquecer a realidade. Acho que foi natural seguir usando características dessas músicas nas nossas composições. Acho que a partir disso que veio a ideia de usar também essas narrativas mais fantasiosas nas letras e tal.
A compositora Yuki Kajiura certa vez disse que animes exigem trilhas sonoras de peso, pois a animação, por si só, não chega aos pés da expressividade do rosto humano vista no cinema live action. Este princípio também é visto em videogames, sobretudo naqueles que não contam com gráficos fotorrealistas. De certa forma, o Sofá a Jato parece fazer o percurso oposto, trazendo recursos visuais para complementar o som. De onde veio a ideia desse conceito multimídia? Do brainstorm até a performance, como ‘nasce’ e se desenvolve uma obra da banda?
Acho que duas obras influenciaram fortemente isso. Uma delas foi o filme Interstella 5555 do Daft Punk, inclusive um anime muito bom. Ali ficou claro desde cedo o poder narrativo em incorporar as diferentes mídias numa mensagem só, parece que ela fica mais poderosa. E também, a banda sempre teve essa ideia de ser uma trilha sonora de um espetáculo. Isso é uma grande influência que surgiu ao assistirmos os show do Pink Floyd/Roger Waters. Nunca foi nosso foco que o público assistisse apenas a banda tocando ao vivo, mas sim, passar essa sensação de estar em uma sessão de cinema ou teatro em que a trilha sonora está sendo tocada ao vivo. Além de tirar o foco da gente. O palco sempre foi meio delicado pra nós, hahahahah.
No seu livro A Composer’s Guide to Game Music, a compositora Winnifred Phillips cita várias maneiras como a música pode afetar nossa percepção do tempo e espaço. Por exemplo, como peças em tons maiores fazem com que ouvintes percebam a passagem do tempo de forma mais lenta, ou que uma dada imagem pode assumir sentidos diferentes dependendo da música que nos embala enquanto a observamos. Vocês usam alguma técnica do tipo para gerar a vibe psicodélica de seus clipes e shows?
Depende de como veio o processo. Com o nosso disco que está pra sair a gente foi mais cuidadoso, até porque ele envolve contar uma história ao longo dele todo. A gente sempre curtiu muito conversar bastante sobre as diretrizes e intenções e em caso de dúvida tentar se guiar por elas, desafiar a criatividade pra tentar passar aquela parte da maneira emocional adequada. Pra isso usamos de tudo, desde mixes mais espaciais pra dar grandeza até acordes suspensos pra dar um ar de aventura e incerteza do que virá. A parte visual tende a vir depois, com muita experimentação, mas de novo, no caso dessas novas músicas elas foram pensadas pra servir a história e as sensações da músicas, sem necessariamente “explicá-las”.
Há não muito tempo, referências a jogos e personagens eram um código que poucos dominavam. Hoje, esta linguagem consolida cada vez mais seu espaço na mídia mainstream. O trabalho do Sofá a Jato, de certa forma, é um reflexo disso. Como vocês enxergam o seu lugar como artistas dentro dessa paisagem cultural em movimento? Existem novas oportunidades ou desafios que vem surgindo?
Temos percebido mais artistas utilizando referências do mundo geek/nerd em suas obras, seja um sample de um anime em alguma música, ou uma letra que fale sobre a jornada de um herói, esse universo está cada vez mais presente na música. Pra nós, eu diria que o maior desafio é como unificar tudo isso através das várias maneiras que temos que entrar em contato com o “mundo”, com as pessoas. Um exemplo são as história em quadrinhos que fazemos pra contar os bastidores da banda, uma maneira de fazer algo divertido e que combina conosco e também achar uma maneira de não aparecer muito, que não é muito a nossa praia, hahaha.
Como fã de games, não posso deixar de notar a referência a trilhas icônicas em seus trabalhos, como Zelda: Ocarina do Tempo e Chrono Trigger. E quanto a trabalhos mais recentes? Existem artistas/compositores contemporâneos na cena nerd cuja obra vocês acompanhem?
Sim, com certeza. Em termos de trilha sonora de jogos, Celeste seria um que vem a memória fácil. Horizon Chase também. Quando vamos jogar RPG usamos a trilha sonora do The Witcher 3, por aí vai. Acho que em termos de influência mais direta, ultimamente voltamos forte às trilhas dos filmes do Studio Ghibli. O compositor Joe Hisaishi é um gênio.
‘Escapismo’ é uma experiência prometida com frequência por jogos eletrônicos. Talvez como resultado da entrada dos games na cena mainstream, ele também se tornou um tema controverso. Se por um lado ele é visto como um refúgio necessário ao estresse e problemas do mundo, há quem diga que o escapismo nos aliena, incentivando-nos a enxergar esses produtos (e a própria vida) com olhos passivos. A obra do Sofá a Jato evoca várias vezes esse tipo de experiência, notavelmente na música “Lugar”. Como artistas, como vocês navegam essa corda bamba?
Então, esse é exatamente o tema do próximo disco, na qual “Lugar” fará parte! A gente julga importante discutir o escape, ainda mais em tempos modernos de alienação e vidas relativamente falsas online. Lidamos com depressão nas nossas vidas e pessoas próximas e achamos que temos uma responsabilidade de trabalhar melhor a ideia do escape, sim. Acho que falar mais a fundo entregaria um pouco o disco então, por enquanto vamos nos segurar!
Conheçam mais sobre o Sofá a Jato em sua página.
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