Certas histórias nos transportam para outros mundos. Outras arrancam nossas vendas, mostrando-nos universos paralelos escondidos debaixo dos nossos olhos.

A Mulher da Saia Roxa, de Natsuko Imamura, pertence ao segundo grupo. É, à primeira vista, um romance sobre uma obsessão mundana entre pessoas inconsequentes, escrito em uma prosa tão simples que nos desafia a procurar sentidos escondidos.

É, também, um romance sobre complôs e silenciamentos, sobre o preço de ver demais e os riscos de enxergar de menos. Um romance sobre temas tão sérios, escritos com tanta irreverência que parecem nos zombar ao mesmo tempo em que nos intrigam.

A julgar pelo título – e primeiros capítulos – é fácil ter a impressão de que estamos diante de uma história sobre uma personagem sui generis, uma Manic Pixie Dream Girl recém-chegada à meia-idade.

A Mulher da Saia Roxa, como a narradora nos conta, é uma figura da vizinhança. Faça sol ou faça chuva, usa sempre o mesmo figurino. Sempre almoça sozinha na mesma praça, em um banco que os locais já aprenderam a reservar para ela. Nem sempre é fácil encontrá-la, pois sua rotina irregular. Quando passa na rua, todos imediatamente reagem a sua presença. Reza a lenda que vê-la duas vezes ao dia traz boa sorte; três vezes, azar. Se é feita de carne e osso, ninguém sabe: é impossível tocá-la. Ela evita a multidão como se tivesse  “um terceiro olho habilmente escondido debaixo de sua franja, girando em 360 graus, dando a ela uma boa visão de o que quer que se aproximasse dela”.

Isso, ao menos, é o que diz a narradora. Leitores atentos, contudo, entenderão logo de cara que há algo mais sinistro em seu interesse. A Mulher da Saia Roxa, no final das contas,não é uma história sobre sua personagem epônima. É uma história sobre aquela que a observa.

É, enfim, uma história sobre uma stalker.

Capa da edição japonesa de “A Mulher da Saia Roxa”

Quem exatamente é essa narradora é algo que Imamura, nos apresenta apenas a conta-gotas. Ela chama a si mesma de “Mulher do Casaco Amarelo”. Ela trabalha como camareira, embora não ganhe o bastante para pagar o aluguel. Esconde suas economias no guarda-volumes de uma estação, à espera do dia em que será despejada. É de se perguntar se o “Casaco Amarelo” que veste com tanto orgulho é uma tentativa de se equiparar a sua heroína, ou apenas a única peça de roupas que lhe resta.

Por que ela é tão obcecada pela Mulher de Saia Roxa é um mistério que nos acompanha até as últimas páginas. Longe das reviravoltas e emoções à flor da pele que esperamos de um suspense, o enredo de A Mulher da Saia Roxa é corriqueiro a ponto de ser opressivo. Algo que a prosa frugal de Imamura vende com uma força diabólica.

Com exceção de uma cena, um tour de force de realismo mágico que poderia ensinar um truque ou dois a Haruki Murakami, não há no livro grandes tiradas ou floreios – ou, se eles existem, não foram incluídos na tradução que li, escrita por Lucy North. Como um excelente thriller, é um livro para se ler em uma única sentada.

Mas elogiá-lo nesses méritos não dá conta de explicar quão fundo o romance mergulha no poço dos sentimentos humanos. Tal como a vida da Mulher em Saia Roxa, há mais aqui do que aflora na superfície.

Não é preciso muito para entendermos que a Mulher da Saia Roxa não é “folclórica” mais do que excluída. Se os outros a evitam ou inventam histórias às suas custas é porque é assim que fazemos com as pessoas que chamamos de “estranhas”. Ela é magra porque come pouco, tem hábitos irregulares porque faz bicos de madrugada, usa amostras de xampu porque não tem dinheiro para produtos de higiene. Se possuísse mais do que uma saia, talvez seu nome seria outro.

Em dado momento, após muitas entrevistas fracassadas, A Mulher de Saia Roxa arranja emprego como camareira no mesmo hotel em que trabalha a narradora.

Coincidência ou armação? Para Imamura, a resposta não é importante. Suas personagens são misteriosas não porque guardam algum grande segredo, mas porque existem à margem da sociedade.

“Às vezes, nossas funcionárias simplesmente desistem, sem nenhum aviso” conta o diretor do hotel, como se fosse a coisa mais normal do mundo. “Eu não entendo você. Geralmente, você é quieta como um rato” ele diz em outra cena, enquanto escuta uma ameaça que o sacode nas bases. A Mulher de Saia Roxa é um livro sobre pessoas invisíveis.

Há uma cena marcante no início do romance em que A Mulher da Saia Roxa sofre provocações das crianças do bairro. Elas se aproximam escondidas e encostam em seu ombro para logo depois fugirem em gargalhada.Sua relação muda radicalmente quando a moça é empregada pelo hotel e passa a trazer chocolates para distribuir entre os jovens.

Como tantos adultos, aquelas crianças só enxergam outra pessoa como humana quando tem algo que podem lhe tirar.

A narradora é um caso ainda mais trágico: uma mulher tão solitária que precisa inventar uma obsessão com uma completa estranha para sentir que sua vida terá o que menor impacto sobre o mundo.

Como a dona de motel de Após o Anoitecer e as hostesses de Breasts and Eggs, as camareiras de A Mulher da Saia Roxa são mulheres economicamente vulneráveis, substituíveis, batalhando por espaço num mundo pronto para cuspi-las quando cumprem sua função. Mas nem por isso são privadas de garras com que se defender – ou dar o bote quando suas vítimas quando elas menos esperam.

A Mulher da Saia Roxa rapidamente acaba seu treinamento, distingue-se entre suas pares, sobe na hierarquia do hotel. Rumores começam a surgir: alguns lisonjeiros, outros perigosos. Ela ganha o apreço de suas supervisoras, então o desdém, finalmente o medo.

Quando uma das personagens finalmente sai das sombras e suas ações ameaçam trazer abaixo o hotel e seu dono, começamos a nos perguntar se não foi tudo proposital. Até os twists de seu enredo mudam de sentido, como se não fossem reviravoltas de verdade, mas apenas verdades ululantes que aprendemos a ignorar.

O quarto estava em silêncio mais uma vez. A porta automática lentamente se fechou, e o diretor respirou um longo suspiro de alívio.

“Diretor” eu subitamente ergui a voz.

Ele levou um susto. “Ah! Você me assustou. Há quanto tempo você está aí, Gondo-san?

“Eu estive aqui o tempo todo”.

Com quantas Mulheres da Saia Roxa cruzamos todos os dias nas ruas? Camareiras, garis, entregadores de comida, subempregados de toda sorte? Pessoas que sequer olhamos nos olhos para apanhar o troco que nos oferecem ou o negar o panfleto que nos empurram?

Imamura trabalhou como camareira antes de se dedicar apenas à literatura. Lendo seu romance, não é nenhuma surpresa. Nem tanto pelas descrições dos bastidores do hotel, mas pela sensibilidade cruel, mas ao mesmo tempo bem-humorada com que nos força a enxergar aqueles que a sociedade perde entre suas frestas.

Diz uma nota ao fim da edição anglófona que Imamura é fã de Yoko Ogawa e conhecida no Japão como “a segunda Sayaka Murata. Entre elas e Hiromi e Mieko Kawakami, só temos a agradecer o privilégio de compartilhar uma geração com escritoras desse calibre. O mundo em que vivemos parece uma montanha-russa com os freios quebrados. Graças a elas, e aos seus comentários, pelo menos encaramos a descida com os olhos abertos.