Quando era pequeno, o prédio em que eu morava pegou fogo.
Acordei de madrugada com os gritos da minha mãe. Meu pai não esperou para que eu entendesse que aquilo não era um sonho. Fui puxado escada abaixo com tanta força que tive a impressão de que voávamos.
Nos raros momentos em que uma curva nos forçava a aterrissar, lembro-me de ter sentido o chão frio e molhado. Estranho fogo aquele, que alagava em vez de queimar.
Dias depois, quando já tinha me recuperado do susto, as peças entraram em seus lugares.
Nosso incêndio havia, sim, espalhado labaredas – embora, felizmente, não a ponto de condenar o prédio. A questão é que os vizinhos haviam espalhado toalhas molhadas para conter o fogo.
A explicação me fez sentido, mesmo naquela época. Mas nem ela foi suficiente para apagar a memória de que eu tinha escapado das chamas como quem desce um tobogã.
É sobre esse senso de maravilhamento, essa capacidade de tirar uma aventura das experiências mais mundanas de que fala Hana-chan e a Forma do Mundo.
As formas do mundo
Não é à toa que o incêndio da minha infância foi a primeira coisa a me vir à mente ao abrir o mangá de Ryotaro Ueda. Hana-chan, também, começa com um desastre. Ou seria mesmo?
Uma criança brinca na chuva. Sua professora para o carro ao seu lado e insiste para que saia dali. Um tufão está a caminho. A menina, Hana-chan, diz que já fez os preparativos, mas não parece se dar conta da severidade do que está por vir.
Quando o tufão chega, suas consequências são tão mágicas – por falta de palavra melhor – que nos perguntamos se tudo aquilo não passou de uma fantasia.
O que, realmente, aconteceu com Hana-chan? Pergunta errada. O mangá de Ueda não é uma história sobre as experiências de uma menina, e sim sobre as formas inusitadas, fabulosas que assumem quando são filtradas por sua mente.
É um mangá sobre o que significa apreender o mundo quando ainda somos jovens o suficiente para escapar do cabresto da razão e do raciocínio abstrato. Justamente por isso, é uma carta de amor à imaginação – e à importância de cultivá-la.
O mangá é uma série de contos descrevendo episódios da vida de Hana-chan e seus amigos. Seria fácil descrevê-lo como um slice of life, mas isso não dá conta de explicar o quanto a obra destoa das convenções do gênero. Na verdade, não fossem os nomes japoneses e arrozais espalhados pela paisagem, seria até fácil esquecer de que se trata de um mangá.
Estamos na linha Minha Experiência Lésbica com a Solidão de obras que bebem dos BDs franceses e HQs independentes americanas tanto quanto dos quadrinhos japoneses. Pela personalidade tanto quanto pelo visual, Hana-chan chega a lembrar uma personagem do Ziraldo. Ponha uma panela em sua cabeça e ela se camuflaria perfeitamente em um volume de Menino Maluquinho.
Um Japão que não existe mais
Mangás sobre “garotas fofas fazendo fofices” muitas vezes são escritos para adultos. A “infância” idealizada que retraram é um exercício de escapismo: um contraste aos perrengues, horas extras e boletos que o dia a dia nos lança.
Hana-chan tem uma proposta diferente. Alguns de seus contos, como aquele sobre um plano da prefeitura para eliminar ervas daninhas com robôs, começa e termina no mundo da fantasia. Outros, como a trama sobre uma mulher cujo visual lembra a Sadako de O Chamado, apenas molham os pés no surreal, quando muito.
Ueda nunca traça a linha que separa uma coisa da outra, e seu trabalho é mais bem sucedido por isto. Não só porque faz jus à magia dos primeiros anos das nossas vidas, mas também porque eleva esse mistério acima da mera fantasia.
É, de fato, incrível o quanto aprendemos da vida ‘real’ Hana por meio de uma história que nos diz tão pouco. Hana-chan e seus amigos vivem em uma cidade escondida nas montanhas que diminui a cada ano que passa. Abandonados pela população em declínio, arrozais são consumidos pela natureza. Hana-chan e seus amigos brincam em ruas não asfaltadas, terrenos baldios, carcaças de fuscas abandonados.
Quando o escoamento de uma represa ameaça destruir a vila de Hana, tive a impressão de estar lendo uma versão japonesa de As Cidades Afundam em Dias Normais.
Há de fato mais em comum entre o mangá e esse romance de Aline Valek. Tal como a escritora brasileira fez com seu retrato do cerrado, Ueda escreve sobre um Japão que não existe mais – apagado por águas, reais e metafóricas.
“A chuva é quando o mundo troca de pele” diz Hana-chan. Cedo ou tarde, tudo o que conhecemos passa por esta metamorfose.
Muitas vezes, o que encontramos do outro lado é irreconhecível.
Todos nós temos um lugar a que não podemos voltar. Mesmo que não desapareça de maneira tão dramática quanto o Japão rural de Ueda.
Isso porque jamais voltaremos a enxergar o mundo com a imaginação de Hana-chan. O prédio onde morava quando minha casa pegou fogo continua firme e forte. Na verdade, continuo morando no mesmo andar de onde levantei vôo com meu pai naquela noite.
Mas onde o Vinicius de sete anos via uma experiência de outro mundo, eu enxergo apenas tijolo e cimento, escadas e extintores de incêndio. Para o mal, mas também para o bem, a perda de inocência é um caminho sem retorno.
O mangá de Ueda, porém, sugere que não é necessário lutar contra a corrente.
Memórias se remetem ao passado, mas não pertencem a ele. Elas existem também no presente, no futuro, em qualquer tempo em que pessoas estiverem dispostas a relembrá-las e compartilhá-las.
E, ao salpicá-las de magia, podemos garantir que nosso futuro, também, preserve algo de mágico.
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