Não importa se estamos falando do Pulitzer ou de um top 10 mental tirado de Alta Fidelidade. Todo tipo de prêmio tem seus award-baits: obras feitas sob medida para ticar todas as caixas de quem as avalia.
Esses trabalhos não são necessariamente ruins. Às vezes, são apenas reflexo do talento de alguns artistas em lidar com fórmulas pré-estabelecidas. E do poder que estas fórmulas exercem dentro de suas respectivas mídias.
I Had That Same Dream Again (originalmente Mata, Onaji Yume wo Miteita), indicada ao Prêmio Eisner 2021, é esse tipo de obra. Não estou dizendo que foi feita com esta (ou qualquer outra) premiação em mente. Mas o mangá tem o exato perfil daquelas histórias que fisgam o coração de leitores e críticos:
Fácil, culturalmente acessível, socialmente relevante sem abusar do valor de choque, sofisticado na medida certa para se distinguir do nosso slice of life de cada dia. Tudo isto embalando um melodrama cativante – ainda que o resultado seja mais previsível que ver o sol nascer de manhã.
A procura da felicidade
Baseado em romance de Yoru Sumino (Eu Quero Comer seu Pâncreas), o mangá conta a história de uma garota chamada Nanoka – e de três amigas improváveis que conhece no caminho da escola.
A primeira é Minami, colegial que passa as tardes sozinhas escrevendo em um prédio abandonado. Seu sonho, conta a Nanoka, é ser escritora. A segunda é “Skank”, uma jovem solteira que ganha a vida “vendendo sua juventude”. A terceira é uma velha senhora com uma admiração por um pintor de nome curioso: Live Me.
É óbvio, desde o primeiro momento, que cada uma dessas mulheres escondem mais do que deixam mostrar à primeira vista). Minami é uma órfã que se automutila. “Skank”, como seu apelido sugere, possui um histórico de delinquência e abuso de substâncias. A senhora parece ter uma vida mais tranquila, mas a urgência com que afasta Nanoka de más decisões sugere uma tragédia cicatrizada pelos anos.
Há algo de dickensiano na maneira como essas três mulheres se tornam parte da vida de Nanoka. Em mais de um momento, o mangá parece uma versão de Um Conto de Natal, livro sobre um velho avarento que lentamente aprende o caminho da compaixão e generosidade.
Por conta de suas diferentes idades – e pontos de vista – Minami, Skank e Vovó funcionam como os Fantasmas do Natal do Passado, Presente e Futuro. E Nanoka, como o Scrooge de Charles Dickens, entende que suas conversas nada mais são que avisos do que pode lhe acontecer se não mudar de atitude.
Dizer que I Had That Same Dream Again é previsível é o mesmo que chamar um furacão de “mau tempo”. O roteiro de Sumino praticamente obriga Nanoka fazer as perguntas certas, dando-lhe como conflito um trabalho de escola em que tem de responder o que significa ‘felicidade’. Há livros de catecismo que vendem sua mensagem com mais sutiliza.
Ainda assim, há uma autenticidade no mangá com que é difícil não simpatizar. Nanoka, em particular, age e fala como uma garota real. Lendo seus diálogos, é quase possível escutar sua voz irritante.
Ela é uma típica genki girl, embora sua energia nem sempre seja apontada para o lugar certo. É uma leitora compulsiva que, em vez de compartilhar sua cultura, a utiliza para diminuir os outros. Aqueles que a desagradam são “errados na cabeça”, expressão que usa na cara dura, mesmo com aqueles que pretende ajudar.
Em nenhum momento isso é mais evidente do que quando se ergue em defesa de Kiryu, colega que sofre bullying. Longe de ser declarada heroína da sala, Nanoka consegue a um só tempo antagonizar sua turma, e o próprio Kiryu, a quem chama de “covarde” por se recusar a reagir da maneira como ela julga a ideal.
Aqueles de vocês que acompanham o Finisgeekis sabem que tenho um problema com protagonistas cheios de si. Falo do geniozinho metido a prodígio de Penguin Highway ou da “heróina” de Olhos de Gato, para quem “heroísmo” significa fazer sujeira para os outros limparem. Chame isto de mea culpa, se quiser: fui uma criança do tipo durante boa parte de minha vida escolar.
Nanoka é praticamente o oposto dessas personagens. De aspirante a mary sue, ela eventualmente aprende que o mundo não gira em torno de seu umbigo – e que ajudar o próximo significa apoiá-los em suas próprias soluções, não forçá-los a aceitar as nossas.
Mesmo nos seus momentos mais insuportáveis, é difícil não sorrir com a esnobice de Nanoka. Isto porque a garota tem o hábito de ilustrar seu ponto com comparações charmosas, poéticas de tão estapafúrdias.
“A vida é que nem cáries” ela solta em dado momento “Se você não quer ficar com ela, precisa tirá-la imediatamente”.
“A vida é como a parte de dentro de uma geladeira. Mesmo se eu esquecer dos pimentões, que eu detesto, nunca vou esquecer dos bolos, que eu amo”.
Frases como essa dão uma voz indistinguível à protagonista, mas também cumprem um objetivo narrativo. Nanoka pode ser arrogante,mas ela realmente tem um dom com as palavras. E será polindo-o, logo entendemos, que amadurecerá de criança a mulher formada. Um dia, possivelmente, até mesmo a escritora.
Há uma revelação ao final da história que reenquadra a relação entre Nanoka e as três mulheres. Chamá-la de “twist” talvez seja lhe dar um crédito que nunca reinvindica. Repleto de referências a livros infantis, de O Pequeno Príncipe a O Serviço de Entregas de Kiki, o mangá de Sumino nunca esconde que tipo de coelho pretende tirar da cartola.
Mas talvez dizer que a vida, em si, é previsível seja a mensagem fundamental por trás da história. “Todo mundo é igual, mas diferente” diz Skank a Nanoka. Cada vida carrega seus próprios problemas. Mas, num nível fundamental, estamos todos na mesma, em momentos distintos da vida, sonhando o mesmo sonho.
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