Quando resenhei Kagami no Kojou semanas atrás, não imaginei que trombaria com outro romance japonês sobre bullying tão cedo.
Mais surpreendente foi vê-lo escrito por ninguém menos que Mieko Kawakami, que conquistou o Japão e mundo com o incendiário Breasts and Eggs. Dotada de um estilo provocativo, às vezes furioso, sua prosa não poderia ser mais diferente da fantasia meiga de Kagami no Kojou.
Heaven, seu último romance, deixa isso claro. Trata-se de um livro desagradável ,feito para desagradar, e digo isto sem a menor malícia.
É uma fábula sobre o bullying tão imodesta em sua violência – e preto-e-branca em sua moralidade – que parece desafiar leitores a abandoná-la. A julgar pelo ódio e impotência que desperta em nós, é provável que realize este objetivo bem demais.
O céu e o inferno
Seu protagonista é um garoto de 14 anos que conhecemos apenas como “Olhos”. Estrábico, sofre constantes agressões de colegas por conta de sua aparência. Ou, ao menos, é o que ele imagina.
A história abre com um bilhetinho em seu estojo convidando-o a um encontro. Sua autora é Kojima, colega de classe tão atormentada pelas outras garotas como ele é pelos rapazes da turma.
O bullying os aproxima, e logo os dois forjam uma amizade. Longe de prover um porto-seguro contra as agressões, contudo, seu vínculo os transforma em alvos de um abuso ainda maior, que porá à prova sua resiliência – e a de nós, leitores.
Esqueça a lição de vida de Kagami no Kojou ou o humanismo de A Voz do Silêncio, que estendeu sua empatia até mesmo aos bullies. Em Heaven, os valentões são villões irremediáveis capazes de quebrar ossos e fazer as vítimas engolirem fezes. Capítulo após capítulo, Olhos irá do desconforto em ir à escola à insônia, para então contemplar o suicídio.
O próprio nome pelo qual o conhecemos – Olhos – dá uma ideia da desumanidade a que é subjugado. Na visão dos colegas, como na nossa, ele é apenas uma vítima.
Esse não é um livro para os fracos.
O frágil e o antifrágil
O ensaísta Nassim Nicholas Taleb cunhou o termo “antifrágil” para descrever coisas que se tornam mais fortes quando sofrem dificuldades. É o princípio que rege nosso sistema imune, embora possa ser aplicado para muitas outras coisas: um time que jogue melhor a cada partida, uma sociedade que aprenda a resolver problemas quanto mais frequentemente os tiver.
Trago isso à tona porque é uma ideia frequentemente evocada em discussões sobre o bullying. Para alguns, sofrer provocações de colegas é um teste de caráter que jovens devem enfrentar sozinhos. Apanhar se torna “bom” porque nos ensina a bater de volta. Ou, pelo menos, a entender que não somos feitos de vidro e não precisamos chorar com “frescuras”.
O que vale para socos literais vale também para os “pontapés” metafóricos que a vida nos dá. De marcas de vergonha, passar dificuldades, viver na pobreza, ter de trabalhar para o próprio sustentam se tornam virtudes: um Chapéu Seletor divino que separa os bons dos folgados. Não se sobe na vida sem antes sofrer.
Não é uma ideia necessariamente defendida na má-fé, muito embora apareça com frequência no discurso de conservadores e reacionários. Quando gastamos anos da vida comendo o pão que o diabo amassou, é tentador imaginar que nossas dores tenham um propósito.
Mas esse é um raciocínio míope, que ignora os milhares – quando não milhões – que beijam a lona antes de encontrem seu lugar no mundo.
Sim, um ou outro indivíduo conseguem escalar a pirâmide social da base até o topo. Mas e todos os outros que não o fizeram e desperdiçaram suas vidas com empregos sub-ótimos, delinquência, morte precoce? O que seria do nosso país, da nossa sociedade, se estas pessoas tivessem sido emancipadas em vez de varridas para baixo do tapete?
Essa é uma pergunta que Kawakami lança em seus livros, escrevendo com uma fúria que escapa de cada sentença. “Se você quer saber quão pobre uma pessoa era quando estava crescendo” sua narradora diz no início de Breasts and Eggs “pergunte a ela quantas janelas ela tinha.”
“Para os pobres, o tamanho da janela não é sequer um conceito. Ninguém tem vista para lugar nenhum. Uma janela é apenas um painel embaçado de vidro escondido atrás de estandes abarrotadas de compensado”.
Seu tom não é ácido por acaso. A pobreza e a necessidade corrompem – e não é uma corrupção que se limita aos bens materiais. Breasts and Eggs é recheado de personagens cansadas, desiludidas, traumatizadas. Tão maltratadas pela vida, na verdade, que não hesitam em propagar tristeza e sofrimento aonde quer que vão, como se, para terem justiça, todos precisassem sofrer como elas sofreram.
Suas personagens nada têm de “antifrágil”. Elas são apenas frágeis, às vezes quebradas, movidas por esta mesma fragilidade a machucar outras pessoas.
Heaven demonstra a falência moral desse discurso com ainda mais ênfase. Nenhuma personagem encarna essa crítica melhor que Kojima, convencida de que sofrer bullying nos torna pessoas melhores.
“Nós não estamos apenas obedecendo […] Nós estamos deixando acontecer.” ela explica a Olhos “Eu não acho de forma alguma que isso é fraqueza. É mais como uma força”.
Força pode até ser. Mas de que adianta tê-la se acabamos igualmente dobrados sobre o punho de um bully? Qual é o propósito de “ser forte” se, com isso, contribuiremos para uma sociedade regida por covardes?
É uma pergunta que Heaven tenta responder, mas infelizmente falha, tropeçando na sua própria violência. Seu retrato do bullying é tão caricato que é difícil relacioná-lo ao mundo real – ou saber que sabedorias realmente têm a oferecer.
Olhos nos conta que pedir ajuda aos pais ou aos professores não é uma opção. Kawakami, porém, nunca explica por que nenhum adulto está disposto a acreditar em sua palavra – mesmo quando, após uma cena chocante, ele retorna a casa ensanguentado da cabeça aos pés.
As próprias cenas de agressões são tão gráficas que flertam com a pornografia. No início do romance, assistimos a Olhos sendo forçado a comer giz, o que prontamente faz com que vomite. É uma peça “leve” para o padrão de seus atormentadores. Outra “brincadeira” o levará ao hospital. Uma terceira, a um estupro.
É de se perguntar até que ponto Kawakami realmente tem algo a dizer sobre bullying ou não usa essas cenas de tortura apenas por valor de choque.
De fato, tomado literalmente, o romance parece fetichizar os próprios abusos que supostamente condena. Ao contrário de Olhos, a esmagadora maioria das vítimas de bullying sofrem abusos significamente mais brandos: apelidos maldosos, exclusão pelos colegas, humilhações na frente da sala.
Até que ponto igualar a experiência desses jovens com os tormentos de Olhos não diminui a percepção de trauma que de fato sofrem na vida real?
Até que ponto a caricatura não contribui para a desculpa – que escutam tantas vezes em vida – de que o que sofrem não passa de uma “frescura?”
Metáforas e alegorias
“Caricatura”, na verdade, parece uma palavra errada, pois supõe uma imagem distorcida da própria realidade. Heaven, pelo contrário, é tão preto-no-branco, que parece querer ser lido como uma alegoria.
Como uma versão adolescente de Jó, Olhos aceita seu tormento passivamente, confiando na misericórdia daqueles que o machucam. Seu bullying é menos um problema social que um caminho – ou um obstáculo – para que encontre um sentido na vida: o “Paraíso” a que seu título se refere.
Como lhe explica Kojima:
Nós entenderemos algumas coisas enquanto estivermos vivos e outras depois que morrermos. Mas não importa quando isto acontecer. O que importa é que toda a dor e toda a tristeza tenham um sentido.”
Kojima faz mais do que aceitar a violência dos colegas. Seu masoquismo chega a tal ponto que ela recusa a tomar banho ou se arrumar, de maneira a provocar ainda mais aqueles que a abusam. Quando Olhos comenta que gostaria de não ser estrábico, ela tem um surto. Como pode ele, que o destino abençoou com um alvo para bullies tão perfeito, tem coragem de negar tamanha bênção?
Mas a amiga não é a única personagem que parece saída de uma parábola bíblica. Momose, um de seus bullies, ocupa um papel similar: um Lúcifer que o tenta ao inferno para se contrapor a Kojima e seu paraíso.
Momose lhe conta que não existe razão por trás de seu bullying. Eles o torturam porque podem e sentem vontade, e esta é a única razão de que precisam, pois a vida não tem propósito:
“Mas pensa só nisso” disse Momose “Coincidência. É só o que existe. É assim que o mundo funciona. Eu não estou falando só de você sofrendo bullying. Por acaso alguma coisa no mundo acontece por uma razão? Tenho certeza de que a resposta é ‘não’. Sim, uma vez que ela tenha acontecido, você pode inventar todo tipo de explicação que parece que faz o maior sentido. Mas tudo começa do nada. Sempre. Você nasceu por motivo nenhum e o mesmo vale pra mim. Não há razão para nós estarmos aqui.
[…]
“Nada disso tem qualquer sentido. Todo mundo só faz o que eles querem. Eles têm estas ânsias, então eles tentam satisfazê-las. Nada é bom ou ruim. Havia uma coisa que eles queriam fazer, e eles tiveram a chance de fazer. O mesmo vale pra você.”
Criticar a passagem acima apontando que um adolescente jamais diria isso é perder de vida o mais importante. No romance de Kawakami, o bullying se torna uma metáfora para as agruras da própria vida, e Momose e Kojima, duas formas diferentes de encará-la: um hedonismo niilista, nietzcheano, e um conformismo messiânico.
Nesse sentido, Heaven tem menos a ver com Lonely Castle in the Mirror que com os mangás de Inio Asano e Shuzou Oshimi: histórias traumáticas, quase sádicas de adolescentes que descem ao abismo da depravidade humana – e lá encontram uma portilhola a um mundo diferente, se não necessariamente melhor.
Mas há duas virtudes fundamentais nas obras desses mangakás que os elevam acima de uma mera pornografia do sofrimento.
Primeiro, elas flertam com o místico, o surreal ou o fantástico. Nijigahara Holograph é uma narrativa mágica que entrelaça passado, presente e futuro. A Cidade da Luz sela seu clímax com um ônibus voador. Em As Flores do Mal, cada passo de seu protagonista rumo ao abismo é seguido por uma flor gigantesca que brota sobre sua cidade:
Segundo, elas pingam de sarcasmo dirigidos as suas personagens, mesmo quando nos convidam a simpatizar com elas. Em As Flores do Mal, o protagonista Kasuga é psicologicamente torturado pela colega Nakamura, mas Oshimi deixa claro que foi a sua prepotência, sua esnobice adolescente, que o tornou vulnerável a seus encantos em primeiro lugar.
Asano leva isso ainda mais longe em Bom Noite Punpun, com uma personagem principal zombada por Deus, e que o próprio autor menospreza, nas introduções aos capítulos, como um furita inútil.
Graças a esses dois “temperos” – misticismo e humor – seus trabalhos ganham um tom surreal que mantém seus elementos repugnantes sob controle. Como um livro de Franz Kafka, somos capazes de entender as situações que suas personagens enfrentam como uma redução ao absurdo de males do dia a dia.
Kawakami domina bem essas técnicas, pois as usou para grande efeito em Breasts and Eggs. Makiko, irmã da protagonista, é uma quarentona esquelética de tão pobre que insiste em torrar uma fortuna que não tem para colocar implantes de silicone. Sua filha, Midoriko, encerra uma briga em família quebrando uma caixa de ovos sobre a cabeça. Uma visita da protagonista Natsuko à casa de banhos termina com uma visão de sonho surrealista digna de um conto de Haruki Murakami.
Heaven, pelo contrário,não possui nenhuma coisa nem outra, o que faz sua alegoria sobre bullying parecer excessiva e manipulativa. No final da leitura, é o gosto amargo de suas cenas de tortura que permanece, concentrado demais para remediar qualquer lição de sabedoria.
Se você, leitora ou leitor, tiver uma cópia de Kageki no Kajou, faça questão de mantê-la ao lado de Heaven. É provável que sinta vontade de relê-la após esse exercício de sadismo.
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