Haruki Murakami é conhecido por um estilo inimitável de realismo fantástico. E por retratos tão comoventes sobre a solidão que fazem qualquer um procurar um copo de whisky ao som de um jazz melancólico.
Suas histórias reproduzem a esquisitice típica dos sonhos. Nos seus melhores momentos, sua prosa empresta a vida e imaginação de um de seus maiores ídolos, Raymond Chandler.
O Assassinato do Comendador, seu último romance publicado no Japão em 2017 e aqui no Brasil em 2019, não foi um desses trabalhos.
O New York Times o chamou de “uma decepção vinda de um autor que já escreveu trabalhos muito melhores.” O Irish Times comparou suas personagens a móveis baratos que o autor esqueceu de montar. Uma de suas cenas de amor foi nomeada ao Bad Sex award, premiação que “prestigia” as piores descrições de sexo da literatura.
Na minha própria resenha, comentei que “boa parte de suas 700 páginas são perdidas em divagações pseudo-profundas” e ideias recauchutadas de seus livros mais inspirados.
O próprio Murakami não ajudou a si próprio. Em entrevista para o site The Guardian, ele argumentou que dar sentido a histórias é tarefa de “pessoas inteligentes” – coisa que escritores não precisam ser.
First Person Singular, sua primeira obra depois de Comendador, pode não ser o livro que seus fãs merecem. Mas ele é, sem dúvida aquele de que o próprio Murakami precisava.
Coletânea de contos com um forte tom autobiográfico, é um retrato tragicômico de um escritor cuja prosa já viu dias melhores – e que veste seus defeitos como uma confortável e puída camiseta de estimação.
Primeira pessoa do singular
First Person Singular é o título de uma das histórias que livro traz, mas também uma assinatura que fã nenhum do autor falhará em identificar. Por mais que tenha experimentado com outras vozes em obras como 1Q84 e Após o Anoitecer, a língua natal de Murakami é a primeira pessoa.
É difícil saber onde os homens solitários, auto-depreciativos e intelectualmente sofisticados de suas histórias terminam e o autor que os escreve começa. Em sua nova coletânea, Murakami joga a distinção pela janela, com contos que se passariam pela autoficção não fosse a presença de macacos falantes e LPs sobrenaturais.
Um de seus contos (The Yakult Swallows Poetry Collection) é explicitamente narrado por um “Haruki Murakami”. Mesmo nos outros, porém, não é preciso muito para saber que estamos enxergando o mundo através de seus olhos – e de mais de 40 anos de carreira literária.
De fato, First Person Singular é praticamente uma retrospectiva dos tiques mais marcantes de sua ficção, convenientemente agrupados em uma espécie de bingo mental.
Há aqui o prazer vazio – e solitário – do sexo casual (On Stone Pillow), que tanto atormentou Toru, protagonista de Norwegian Wood. O paralelo com os Beetles aparece no título de outra história (With the Beetles), que bem poderia ser um capítulo cortado de seu celebrado romance.
Há o surrealismo-assinatura de Caçando Carneiros e boa parte de sua obra (Confessions of a Shinagawa Monkey), desta vez encarnado por um macaco sapiente que trabalha em uma estação de termas.
Há sua paixão característica por jazz (Charlie Parker Plays Bossa Nova), em um conto sobre uma resenha musical que subitamente traz um álbum à vida (quem dera os textos do Finisgeekis tivessem o mesmo poder!).
Por fim, há os “homens sem mulheres” que batizaram uma de suas coletâneas anteriores: narradores masculinos irremediavelmente fascinados, ameaçados e frustrado pelo sexo oposto (praticamente todos os contos, mas em especial Carnaval e First Person Singular).
A morte de um sonho
A bem da verdade, nem todas essas histórias funcionam como contos. Mas talvez encará-las como histórias separadas seja perder de vista o que realmente tentam dizer. Mais do que em qualquer outro livro de sua carreira, o tema de First Person Singular é o próprio Murakami.
Não é sempre que a idade de um escritor pesa sobre sua escrita – ainda mais no caso de um autor reconhecido por sua incrível saúde. Cada uma dessas histórias, contudo, parecem carregar a melancolia própria de quem percebe que o melhor da vida já passou.
“Pessoas envelhecem em um piscar de olhos” ele escreve em um dos contos. “Em todo e cada momento, nossos corpos estão em uma jornada só de ida em direção ao colapso e a deterioração”.
“O que eu acho estranho sobre envelhecer não é o fato de que eu fiquei mais velho” ele diz amargamente em outro “é que me força a admitir, de novo e de novo, que meus sonhos de juventude acabaram para sempre.”
“A morte de um sonho pode ser, de uma certa maneira, mais triste que aquela de um ser vivo”.
Por mais que doa admitir, essa é uma deterioração que se reflete na escrita.
Nenhum conto da coletânea chega aos pés de Sono, história publicada na revista New Yorker em 1992 que o tornou um queridinho do mercado americano. Sua prosa repete a mesma banalidade de O Assassinato do Comendador e partes de 1Q84.
Ao topar com frases insípidas como “esse artigo [… ] reemergiu na minha vida como um bumerangue que você jogou e rodopia de volta quando você menos espera”, é difícil acreditar que esse é o mesmo escritor que produziu Kafka à Beira Mar e um dia foi cotado para o Nobel.
Nesse sentido, é chocante, mas também explicativo as recentes revelações de que as primeiras edições de seus livros para o inglês foram significativamente maquiadas por seus tradutores.
Segundo David Karashima em seu livro Quem Nós Estamos Lendo quando Lemos Murakami, os tradutores do autor para a língua inglesa tomarem liberdades brutais com seu conteúdo. E não falo apenas de honoríficos traduzidos ou referênciais culturais, mas de páginas cortadas às centenas.
O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo teve mais de cem páginas omitidas. As Crônicas do Pássaro de Corda, cerca de 25 mil palavras. Caçando Carneiros foi “atualizado” dos anos 1970 aos 1980 para surfar na onda da nostalgia que cercava a época no mundo americano.
Karashima explica que essas mudanças foram feitas para eliminar passagens mais caóticas e tornar seus livros mais ágeis, “ocidentalizados” e diferentes da literatura japonesa então popular no mercado ocidental.
Esse não é, até onde eu sei, o caso das traduções ao português. Porém, para leitores como eu, que leram boa parte de sua obra antes de estarem disponíveis no mercado nacional, gera uma dúvida aterradora.
Até que ponto o Murakami modernoso, americanizado e criativo de seus primeiros livros não foi um fenômeno literário inflado por uma jogada de marketing?
Escrevendo na defensiva
Diga o que for dos defeitos de First Person Singular, há nele uma diferença crucial em relação a Comendador. Murakami mostra estar completamente a par de seus defeitos – e os assume com uma ousadia que beira o atrevimento.
“Eu não faço ideia se isso pode ser chamado de poema” ele escreve ao nos presentear com alguns versos “Se você o fizesse, é capaz de deixar poetas de verdades irritados, de fazê-los querer me amarrar no poste mais próximo.”
Ainda mais evidente é o caso de sua inexplicável necessidade de descrever o corpo feminino, hábito que levou a escritora Mieko Kawakami a criticá-lo como misógino.
Carnaval inicia com seu narrator contando que “[D]e todas as mulheres que conheci até agora, ele foi a mais feia”. Ao que procede, com um sarcasmo pouco disfarçado: “Eu poderia usar um eufemismo, obviamente, e dizer menos bonita no lugar de feia, o que poderia ser mais fácil aos leitores, especialmente às leitoras, aceitar”.
Menos sarcástico é o conto que dá nome ao volume, possivelmente a melhor história da coletânea. Sua trama acompanha um narrador acostado por uma mulher vingativa, que o acusa de ter feito um grande mal a uma amiga. “Você deveria ter vergonha de si mesmo”, ela rosna.
Nunca sabemos o que aconteceu entre eles – um quê de subjetividade que eleva esse conto acima dos outros. Ao lê-lo, fico me perguntando se o próprio Murakami não se sente igualmente confuso com a recepção morna de seus últimos trabalhos.
“Mas naquele dia […] eu fui acometido por um sentimento desconfortável.” Ele escreve “Eu estou apenas imaginando isto, mas pode ser parecido ao sentimento de homens que secretamente se vestem de mulher”. Se isto não é uma indireta às críticas que tem recebido por conta de suas personagens femininas, devo um álbum do Charlie Parker em desculpas ao ilustre escritor.
First Person Singular é um livro escrito na defensiva, admitindo erros mais do que tentando corrigi-los, respondendo com bom-humor em vez de orgulho ferido.
Mais do que um livro narrado por Murakami, é um livro, parece, escrito para Murakami. E, interpretado dessa maneira, é difícil não sentir um certo carinho pela sua honestidade desajeitada.
Como ele escreve em The Yakult Swallows Poetry Collection, essencialmente uma comparação entre o sucesso literário e a vitória no beisebol,
“Claro, vencer é muito melhor do que perder. Não há o que discutir. Mas vencer ou perder não afeta o peso e o valor do tempo. É o mesmo tempo, de uma forma ou de outra. Um minuto é um minuto, uma hora é uma hora. Nós temos de curti-lo. Nós temos de nos reconciliar com o tempo e deixar para o futuro o maior número de memórias que pudermos.”
É uma “filosofagem” que disputa, em profundidade, com o mais medíocre dos animes slice of life. Ainda assim, ela é escrita de forma tão humilde, tão sincera em sua auto-piedade que desarma o mais rábido dos críticos.
Se Murakami agora mesmo batesse na minha porta, não teria o que lhe dizer além de oferecer um abraço.
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