Pense um pouco sobre aquilo que mais teme e é provável que você encontre uma diferença.

Sentimentos revolta daquilo que não pertence ao nosso mundo. Quando queremos descrever algo como atemorizante, com frequência o fazemos comparando-o ao que há de mais estranho, sinistro, alienígena.

Pelo mesmo princípio, é justamente apagando essas diferenças que nos comunicamos para evocar empatia.

Máquinas – em especial, robôs – ocupam uma posição conhecida nessa gangorra. Se temos facilidade de nos identificar com os RD D2s e Wall-Es da ficção, androides mais complexos invariavelmente caem no Vale da Estranheza, apavorando-nos cada vez mais com sua não-humanidade quanto mais se esforçam para imitá-la.

É de se esperar que um livro protagonizado por uma inteligência artificial se esforçasse para afastar suas personagens dessa armadilha.

Mas Kazuo Ishiguro, vencedor do Nobel de literatura em 2017, não é um escritor comum.  E Klara e o Sol, seu mais novo livro, não é uma ficção científica como qualquer outra.

Fábula a solidão e sofrimento humanos vistos através dos olhos de uma androide, o romance é sobre aquilo que nos diferencia das máquinas. Mas é também sobre como elas, presas como estão no vale da estranheza, talvez enxerguem uma humanidade à qual nós mesmos já estejamos cegos.

Klara é uma AA (“amiga artificial”), espécie de androide doméstica. No primeiro capítulo, nós a encontramos na vitrine de uma loja, observando crianças passeando com suas próprias AAs à espera do dia em que ela, própria, será adotada.

Seus desejos parecem próximos de se concretizar quando recebe a visita de Josie. A garota se encanta pela AA, e promete que um dia virá para buscá-la. Dias se passam, novos modelos de androides são lançados no mercado, Klara é eventualmente removida da vitrine. Mas ela continua certa de que Josie cumprirá sua promessa.

Não é preciso ter assistido a I.A.: Inteligência Artificial ou Chobits! para saber que essa não é uma história que terminaremos de olhos secos.

Josie retorna para adotá-la, mas quanto mais lemos sobre a criança, mais percebemos que o mundo de Klara é mais complicado que sua programação é capaz de perceber.

Há algo de terrivelmente errado com a criança, que nós, através dos olhos ingênuos da androide, percebemos assim que sua mãe visita a loja. Ande como a minha filha, é o teste que utiliza para testar suas capacidades.

“Eu acho que você vai gostar da nossa casa” a menina diz “Mas pode ter alguma coisa acontecendo. Eu não tenho certeza do que é. Eu nem sei se é alguma coisa ruim.”

“Mas às vezes as coisas ficam, bem, estranhas.”

No Vale da Estranheza

Estamos no território de Não me Abandone Jamais, que se inicia como uma história bucólica sobre um internato no interior da Inglaterra para se revelar uma fábula devastadora sobre clonagem e colheita de órgãos.

Ainda mais que naquele romance, Klara e o Sol é sufocado por uma agonia que se manifesta desde a primeira página.

Como uma androide à beira da pane, é possível sentir os circuitos próximos de queimar com uma tragédia que cada revelação torna mais exasperante.

Josie possui uma doença séria de que não parece que irá sarar. Seu único amigo de verdade é o namorado, Rick, que sofre discriminação por não ter “ascendido”. Há uma tensão crescente entre a empregada e a mãe sobre o destino da filha. Klara não diz, mas suas observações deixam claro que nem todos querem o bem da garota. E que o próprio conceito de “bem” e “mal” desse mundo futurista pode ser tão distante da nossa realidade do que a androide cujas memórias visitamos.

“Klara, você é admirável” diz no início do romance a gerente de sua loja “Você nota e absorve tantas coisas”.

Klara, de fato, não enxerga as coisas como os humanos. No seu entendimento, o sol de cuja energia seu sistema depende é uma entidade sapiente – quando não uma espécie de divindade. Seus “olhos” apreendem o mundo como uma série de polígonos divididos em quadrantes. Pessoas de seu contato, como Josie e Rick, são representadas com alto nível de fidelidade. Aquilo que lhe é desconhecido, porém, rapidamente se perde em um overload geométrico.

“Logo as cenas estavam mudando tão rápido ao meu redor que eu tive dificuldade em ordená-las. Em um certo ponto uma caixa se encheu com os outros carros, enquanto que as caixas imediatamente ao seu lado se encheram com segmentos de estrada e do campo ao redor.”

Mas Klara também percebe coisas que os próprios humanos não entendem. Em especial, ela tem uma incrível sensibilidade para emoções, sobretudo a solidão. Graças a essa empatia artificial, combinada a uma ingenuidade quase exasperante, entendemos que o romance se passa em um futuro distópico assolado por um apartheid genético, medidas orwellianas de vigilância e ideologias extremistas.

A arte do não dito

Como em Não me Abandone Jamais, nada disso é revelado com todas as letras. Pelo contrário, Ishiguro propositalmente nos mantém em um escuro tão angustiante quanto a interface de polígonos com que Klara enxerga o mundo.

Alguns segredos, como o rancor de um diretor de escola para com a mãe de Rick, nunca são explicados. Outros – como a natureza da doença de Josie ou o que significa ser “ascendido” – só se tornam claro após muitos capítulos.  É preciso esperar até quase o fim da história para descobrirmos que a “comuna” em que uma personagem outrora simpática vive é, na verdade, um baluarte fascista.

A literatura de gênero muitas vezes é criticada por sua abundância de nomes próprios. Em Klara e o Sol, Ishiguro faz uma ficção científica privada até mesmo de substantivos comuns. Sua prosa parece é desinteressada de technobabble. O que só torna suas meditações sobre tecnologia e o valor da humanidade ainda mais urgentes quando finalmente emergem das frestas.

Como toda boa ficção científica, Ishiguro não escreve apenas sobre ciência.  O medo de Klara de não ser comprada por Josie nada mais é que o terror de todos nós, na infância, de não encontrarmos outros que nos aceitem. As emoções conturbadas entre Josie e Rick – amargada, de um lado, pela doença da garota; de outro, pela suspeita de que o amor que sentem não é lá tão forte– são as mesmas que sentimos ao entender que a vida é feita de caminhos, e nossas paixões juvenis talvez não estejam lá para nos acompanhar no nosso.

“Talvez todos os humanos sejam solitários” nota Klara em dado momento “Pelo menos potencialmente.”

Nosso futuro pós-humano

O escritor britânico Kazuo Ishiguro

Klara e o Sol é o primeiro livro de Ishiguro depois de vencer o Nobel, e ele demonstra toda a nuance esperada do prêmio. Nas suas páginas, não há espaço para saídas fáceis ou morais prontas.

Como não poderia ser diferente em um livro sobre inteligências artificiais, sua história é uma reflexão sobre o que significa ser humano. Mais especificamente, sobre o medo de que aquilo que chamamos de “alma” não seja mais que o efeito de sinapses instigando corpos de carne e osso em direção à reprodução e ao seu final inevitável:

“Nossa geração ainda carrega os velhos sentimentos. Uma parte de nós recusa a abrir mão. A parte que deseja continuar acreditando que há alguma coisa inalcansável dentro de cada um de nós. Alguma coisa que é única e intransferível. Mas não há nada do tipo, nós sabemos disso agora. Você sabe disso. Para pessoas da nossa idade é uma coisa difícil de abrir mão. Nós temos que abrir mão, Chrissie. Não há nada lá. Nada dentro da Josie que está além das Klaras desse mundo continuar.”

Curiosamente, de todas as personagens do livro, é Klara que se recusa a acreditar nisso.

“Eu acredito que ele estava procurando no lugar errado” ela diz “Existia uma coisa muito especial, mas não estava dentro de Josie. Estava dentro daqueles que a amavam”.

É uma mensagem surpreendentemente humanista, mas que empalidece diante da compaixão maior, pós-humana,  que Ishiguro defende nas entrelinhas.

Talvez, longe de instigar uma distopia, trazer à luz uma IA verdadeiramente humana signifique apenas que ganharemos um alento, ainda que fugidio, para a invariável solidão da nossa existência.

Talvez seja justamente de uma AA, encarando-nos através de seus polígonos, que ouviremos a voz da razão que impedirá nossa espécie de destruir a si mesma.

Em tempos de polarização política, obscurantismo desvairado e ideologias venenosas, não é demais acreditar que uma máquina possa nos devolver a humanidade que nós mesmos parecemos ter perdido.

“Esperança” disse ele “A maldita coisa nunca te deixa em paz.”