Em 2018, o site francês Manga-News perguntou a Nagabe qual era a história por trás do subtítulo de seu maior sucesso, A Menina do Outro Lado: Siúl a Run.

Senti que o entrevistador tinha lido minha mente. Eu sabia que Siúl a Rún ( “Ande, meu amor”), é uma música tradicional irlandesa. Mesmo após ler oito volumes de seu mangá, porém, não havia conseguido captar a conexão.

Será que a canção apareceria futuramente em algum momento de clímax? Será que o universo da história fictício seria cindido por uma guerra, como aquela a que seus versos se referem?

A resposta de Nagabe foi tão gélida quanto um banho de mar na Irlanda durante uma tarde de chuva:

“Eu não conhecia nada dessa música […]. Foi meu responsável editorial que, um dia, me trouxe um CD me dizendo “Escute bem essa canção, eu acho que a atmosfera corresponde ao seu mangá. Eu a escutei e achei que ela tinha uma linha melódica triste, mas ao mesmo tempo colorida de esperança, que ia perfeitamente com a atmosfera que eu gostaria de criar em “A Menina do Outro Lado”.

Verdade seja dita, saber que Nagabe escolheu seu título apenas porque soava bem não me impressona tanto assim. Rola na internet o rumor – talvez apócrifo- de que Hideaki Anno teria escolhido o  nome “Evangelion” porque a palavra soava difícil. Miyazaki confessou que puxou sua Nausicaa de um dicionário de mitologia (embora, anos depois, tenha lido de fato a Odisseia).

Não há nada errado em se inspirar em uma música por conta da vibe. Ainda mais em uma canção que tem alguma penetração no Japão, tendo já sido gravada por intérpretes locais.

Álbum da cantora KOKIA, com faixas em irlandês, inclusive “Siúl a Rún”.

O que me chamou a atenção é que esse está longe de ser um incidente isolado. Para cada Fate/ ou Durarara! que aborda diretamente a cultura ou mitologia irlandesa, há um punhado de animes e mangá que parece se referir à Ilha Esmeralda sem uma razão muito específica.

Há um motivo para ‘Legend of Galactic Heroes’ possuir uma nave chamada Mannanan Mac Lir? Ou ‘Last Exile’ retratar uma nau batizada de ‘Claoímh Solais?

O que há na cultura irlandesa que atrai de tal forma os animes?

Para responder a essa pergunta, é preciso voltar no tempo.

Do Japão à Irlanda…

Seja qual for esse feitiço que une as duas culturas, els não é novo. Já no final do século XIX, um escritor criado em Dublin largou tudo o que tinha para construir uma vida em terras nipônicas.

Seu nome era Patrick Lafcadio Hearn, e ele se tornou o primeiro ocidental a fazer fama escrevendo sobre o folclore e as tradições japonesas. Sua obra mais conhecida, Kwaidan, é um compêndio de histórias de youkai, criaturas fantásticas – e muitas vezes assustadoras – da mitologia nipônica.

Primeira edição de “Kwaidan”, obra mais conhecida de Hearn

Hearn escrevia sobre temas japoneses, mas seu interesse em fantasmas e assobrações carregavam um toque da Dublin em que viveu. O escritor viveu nos anos da Renascença Literária Irlandesa, um importante movimento que repaginou as lendas e mitos gaélicos às sensibilidades do final do século XIX.

Em uma carta ao poeta e dramaturgo W.B. Yeats, um dos maiores expoentes do movimento, ele confessou ter sido influenciado por contos de fada narrados por sua babá irlandesa.

Lafcadio Hearn (também conhecido como Koizumi Yakumo) e sua esposa, Koizumi Setsuko

Hearn teve alguma influência na cena cultura japonesa. Um de seus maiores fãs foi Okuma Shigenobu, fundador da Universidade de Waseda, que o convidou para lecionar lá.

Seu verdadeiro impacto, porém, aconteceu no próprio Ocidente. Hearn estava na posição privilegiada de ser um dos poucos ocidentais escrevendo em inglês sobre um Japão, em uma época em que o interesse pelo país estava nas alturas.

Em grande parte, isso se deveu à Exposição Universal de 1900, de que o país participou com seu próprio pavilhão. Todos os países da Europa queriam saber mais sobre essa nação misteriosa e sua cultura diferente.

Pavilhão japonês na Exposição Universal de 1900, em Paris

A Irlanda, em particular, levou o fascínio a outro patamar. Yeats, conhecido de Hearn, ficou de tal forma fascinado com o teatro noh que decidiu escrever sua própria peça em estilo japonês, At the Hawk’s Well.

A obra passou no crivo dos próprios japoneses, que a adaptaram a sua língua duas vezes, em 1949 e 1967. Hoje, ela faz parte do repertório tradicional do teatro noh.

Montagem da peça Takahime, “At the Hawk’s Well”, co-organizada pelo ator noh Gensho Umekawa e o grupo musical irlandês Anúna.

e da Irlanda ao Japão

Mas será mesmo que é daí que vem a fascinação com a Irlanda no dias de hoje?

Sim, Hearn não passou batido aos holofotes da cultura pop. Um de seus contos foi adaptado às telas nos anos 1980. O mangaká Eiji Ohtsuka transformou sua vida em uma série chamada Yakumo Hyakkai (em referência a Yakumo Koizumi, o nome que adotou ao se naturalizar japonês). Touhou Project batizou duas de suas personagens em sua homenagem.

Capa do manga Yakumo Hyakkai

Mas esses exemplos são gotas d’água no oceano de Cúchullains, Diarmuid Ua Duibhnes e Cliffs of Mohers na cultura pop. E nada disso parece ter muito a ver com Hearn.

O escritor foi uma sensação no Japão de sua época. Porém, como lembra Rie Kido Askew, seu apelo sempre foi mais “cult” que mainstream. Por escrever em inglês, suas obras ficavam restritas aos japoneses que dominavam a língua estrangeira.

Ademais, o “fator novidade” que o tornou tão popular no ocidente não existia no circuitos nacionais. Afinal de contas, não havia falta de escritores japoneses escrevendo – em japonês – sobre sua própria cultura.

Se não fosse bastante, Hearn pode ter sido influenciado por histórias de fadas e deuses irlandeses, mas ele pouco fez para tornar esses mitos mais conhecidos no país em que escolheu morar.

De fato, por mais que olhamos as referências à Irlanda nos animes, mais parece que elas estão lá justamente por serem obscuras.

Segundo Rika Muranaka, compositora de Metal Gear Solid, a faixa The Best is Yet to Come foi cantada em irlandês porque Hideo Kojima disse que “não queria ouvir letra em inglês”, nem em nenhuma outra língua que ele reconhecesse.

Yoko Taro, criador da série Nier, deu instruções parecidas aos compositores Keichi Okabe e Emi Evans. “[T]er letras que você reconhece e entende pode distrai-lo do gameplay”, ele justifica. O resultado foram músicas cantadas em línguas inventadas – uma delas baseadas no gaélico escocês.

Em outras palavras, a língua irlandesa é conveniente porque não significa nada. Ou melhor, ela passa uma vibe genérica de “exotismo” capaz de intrigar até mesmo os japoneses mais viajados.

Ironicamente, é exatamente como muitas produções ocidentais lidam com a cultura japonesa de uma maneira cotidiana. Se obras do nosso hemisfério usam samurais, geishas e flores de cerejeira para carimbar uma personagem como “estrangeira”, animes e games nipônicos fazem o mesmo com os Túatha Dé Dánnan e viaturas da Garda Siochána.

Fractale

Mas isso também não explica tudo. Por que a Irlanda e não qualquer outro lugar da Europa – ou do Ocidente como um todo?

Talvez, porque Japão e Irlanda tenham mais em comum do que salta aos olhos à primeira vista. E não falo apenas de serem cercados pelo mar.

Soft power

A Irlanda é um país minúsculo nos confins da Europa – até recentemente, paupérrimo para os padrões do mundo desenvolvido. Porém, ela tem uma vantagem gigantesca sobre qualquer um de seus vizinhos: há irlandeses por toda parte.

O censo dos Estados Unidos estima que quase um em cada dez americanos tenham ascendência irlandesa, incluindo presidentes como John Kennedy, Barack Obama e Joe Biden. O primeiro ministro da Austrália declarou hoje que um terço do país têm raízes irlandesas. Isto sem contar imigrantes em países como Canadá, Chile, África do Sul e muitos outros.

Essa comunidade age como um “megafone” global para a cultura, língua e folclore do país. Além disso, gera um imenso mercado consumidor para as obras vindas da ilha, sejam os livros da Sally Rooney ou filmes do Cartoon Saloon.

E não falo apenas de gente com ascendência irlandesa, mas pessoas sem nenhum vínculo com a ilha que decidem provar uma Guiness ou arriscar uma cúpla focal depois de participarem de uma festa de São Patrício.

Tal como, aqui no Brasil, muita gente se apaixona pelo Japão porque cresceu frequentando a feirinha da Liberdade ou visitando o Kinkaku-Ji do Brasil.

Ambos os países têm de sobra o que cientistas políticos chamam de soft power: a capacidade de projetar sua influência não disparando balas, mas espalhando cultura. No caso da Irlanda, esse é um poder que chegou até à realeza japonesa.

Segundo o jornal Irish Times, a ex-imperatriz Michiko fala um pouco de irlandês, toca harpa e era amiga do poeta Séamus Heaney. Uma de suas filhas, a princesa Mako, fez parte de seus estudos no University College Dublin.

Se nada mais, as aristocratas estão afinadas com o interesse de seus súditos. Organizado pela primeira vez em 1992, a Festa de São Patrício já é um evento nacional no Japão. Em 2019, nada menos que 15 cidades organizavam paradas – em Tóquio, 130 mil pessoas tomaram as ruas.

Parada do dia de São Patrício em Tóquio, 2015. Foto de Yoshiaki Miura

Será que isso é o bastante para que a TG4, emissora irlandesa em língua gaélica, adicione animes a sua programação?

Provavelmente não. Mas eu continuarei na torcida. De preferência, acompanhado de um pint de Guinness.