Algum tipo de cataclisma muito além da compreensão humana deixou partes da Terra inabitável. Dentro dessa “zona” o sol ainda se levanta, o vento ainda sopra, plantas crescem. Mas as coisas são… diferentes.

Como o mundo de um videogame com erros no código, um passo em falso é o bastante para que exploradores desapareçam – ou sejam eles próprios corrompidos por glitches.  “Pessoas” rondam por este mundo abandonado, embora não seja mais possível dizer que são humanas. Muitos dos que partem para encontrá-las não retornam. Os que retornam nunca mais são os mesmos.

Descrita com alguma liberdade poética, essa é a premissa de Piquenique na Estrada, clássico da ficção científica escrito por Alkady e Boris Strugátski.

É, também, a obra que o escritor Iori Miyazawa decidiu ser a inspiração perfeita para uma história romântica.

Recentemente adaptado às telas pelo estúdio LINDENFILMS, Urasekai Picnic é uma história que parece ter pisado em um dos glitches de seu próprio mundo assombrado.

O que aconteceu com os Romeus e Julietas e Tanabatas da vida? Por que Miyazawa escolheu justamente esta história, cheia de paisagens desoladas e divagações filosóficas, para um slice of life yuri?

A resposta, como as anomalias da Zona, é mais surpreendente do que parece.

Piquenique na estrada

Edição brasileira de “Piquenique na Estrada”

Para responder a essa questão, é melhor começarmos do começo.

Criativo e esquisito em igual medida, Piquenique na Estrada – de onde Urasekai Picnic tirou seu título – não é exatamente o que nos vem à mente quando pensamos em um romance capaz de inspirar uma geração de imitadores.

Na sua encarnação original, o livro se passa na esteira de uma visita alienígena. Os extraterrestes em questão não disseram a que vieram. Porém, como latas e comidas largadas após um piquenique, a sucata que deixaram para trás vira o sonho de cientistas, ladrões e oportunistas do mundo inteiro.

A exploração dessas “Zonas” – como as áreas de contato foram chamadas – empurram a humanidade a uma nova revolução científica. Mas é um progresso feito às cegas, aplicando engenharia reversa a uma tecnologia que, fiel à lei de Arthur C. Clarke, é indistinguível da magia.

Como uma personagem coloca, é possível que estejam utilizando contadores Geiger como machadinhas ou componentes eletrônicos como piercings de nariz. Mas se os componentes em questão fossem armas de destruição em massa, à espera do estímulo certo para dispararem seu gatilho?

Redrick Schuhart, protagonista do romance, sabe disso muito bem. “Red” é um stalker, contrabandista que monta expedições à Zona em troca de bugiganças para vender ilegalmente. A profissão tem vida curta. A maioria dos que a praticam desenvolvem mutações terríveis após entrar em contato com substâncias misteriosas.

Sua própria filha foi uma das vítimas, transformada em um criatura com “pequenas patas peludas” graças ao efeito de algum artefato que trouxe consigo da Zona.

[E]le foi inesperadamente acometido por um terrível pensamento: é uma invasão. Não um piquenique, não um pedido de contato – uma invasão. Eles não podem nos mudar, mas eles infiltram os corpos de nossas crianças e os mudam em sua imagem.

Mas Red é um stalker às últimas consequências e não deixará algo tão simples como o medo mudar seu estilo de vida.

Corre entre seus colegas de profissão a lenda de que há um artefato na Zona capaz de realizar qualquer desejo. Conhecido como A Esfera Dourada, é uma espécie se Santo Graal entre os stalkers.

Red decide arriscar tudo em uma última expedição e usá-lo para retornar sua filha de volta ao que era.

Piquenique é um livro curioso. Seu protagonista está longe de ser um herói carismático – ou mesmo um “herói” de qualquer espécie. O enredo é bem menos coeso que meu breve resumo dá a entender.

Boa parte do livro é composta de viagens diferentes à Zona ao longo de um período de quase uma década. A própria decisão de Red de correr atrás da Esfera Dourada só é tomada no final do romance, tarde o suficiente para questionarmos sua honestidade.

Estaria realmente preocupado com a filha – a quem se refere insensivelmente como “macaca”? Ou apenas obcecado de tal forma pela Zona que não consegue imaginar uma vida sem o seu perigo, mesmo que não haja mais nada valioso a se roubar?

Estaria ele buscando alguma coisa na Zona ou apenas fugindo da admissão de que foi seu envolvimento com ela que estragou sua vida?

Será que Red sabe o que quer? Será que algum de nós realmente sabe ?

Stalker

Muitos dos que leram o romance dos irmãos Strugátski saíram da leitura com a mesma impressão. As questões que o stalker Red enfrenta são muito mais interessantes do que os detalhes específicos de seu universo. É por isso que, ao adaptar o livro para as telas , o cineasta russo Andrei Tarkóvski decidiu enxugá-lo ao seus elementos mais essenciais.

Se você é como 99% das pessoas, é provável que Stalker (1979), mais do que Piquenique na Estrada, tenha sido seu primeiro contato com a fábula dos irmãos Strugátski. Surpreendentemente para um filme de quase 3h criado por um ídolo do “cinema arte”, o longa se tornou um clássico cult, inspirando até mesmo videogames.

Para sua versão da história, Tarkóvksi se livrou dos aliens – e também dos nomes próprios. No lugar de Red, sua família e parceiros de profissão, deixou apenas um punhado de personagens: a esposa, o professor, o escritor e, é claro, o stalker.

O enredo acompanha uma única expedição à Zona, guiada pela personagem titular. Seu objetivo é encontrar o Quarto, lugar dotado dos mesmos poderes da Esfera Dourada do livro dos Strugátski.

“Poderes”, aqui,  precisam ser colocados entre aspas. O diretor excluiu qualquer menção explícita ao sobrenatural. Por mais que o stalker passe boa parte do filme apontando as anomalias à espreita, nenhuma delas jamais é engatilhada. Mesmo os acontecimentos mais bizarros jamais deixam claro se o que estamos vendo são coisa de outro mundo ou apenas os frutos de paranoia.

Em dado momento, começamos a nos perguntar se a “Zona” realmente existe. A impressão é ressaltada pelo uso de cores, em que o mundo real é representado em sépia e a Zona, em cores.

É como se Tarkóvksi nos convidasse para uma versão soviética de O Mágico de Oz, percorrendo não uma estrada de tijolos amarelos, e sim túneis alagados e ruínas decrépitas.

O que, exatamente, essa viagem significa – se é que signicia alguma coisa – é um mistério mais profundo que a natureza da Zona. Recheado de closes de atores boquiabertos balbuciando monólogos filosóficos, o  filme traz simbolismo suficiente para enlouquecer até mesmo um doutor em semiótica.

Após o desastre nuclear de Chernobyl em 1986, o filme adicionou “profético” a sua lista de adjetivos. À luz do que veio depois, é difícil não ver na lore do filme – as anomalias, as mutações, a própria ideia de uma “zona” de exclusão – uma previsão do futuro trazida diretamente pela Esfera Dourada.

Não ajuda que o filme pode ter causado a morte de seu próprio criador. Stalker foi filmado em uma usina hidrelétrica desativada perto de Talinn, capital da Estônia. Segundo Vladimir Sharun, técnico de som que trabalhou no projeto, um derramamento químico de uma outra usina próxima ao set teriam sido responsáveis pela morte de câncer de Tarkóvski, sua esposa e um dos atores principais alguns anos depois.

Teria o diretor pisado em um dos glitches da Zona que ele próprio criou?

O “yuri da ausência”

A mística que Stalker criou para si explica seu apelo ao longo das décadas. Mas torna ainda mais intrigante entender o propósito por trás de Urasekai Picnic.

Verdade seja dita, as novels de Iori Miyazawa distoam bastante do material que a precedeu. No lugar de marmanjos de cara amarrada, temos Toriko e Sorao, duas universitárias de Tóquio. Em vez de um perímetro de exclusão, sua Zona é uma espécie de dimensão paralela habitada por creepypastas. O tom é consistentemente mais alegre, mesmo em tomadas que parecem surrupiar ideias diretamente do filme de Tarkóvski.

Considerando a seriedade de Piquenique e seus sucessores – e a maneira irreverente como essas mesmas ideias são trabalhadas no anime – é díficil ver Urasekai Picnic como outra coisa que uma heresia.

Mas e se fosse justamente esse o ponto?

Segundo um depoimento no evento japonês Science Fiction Seminar, Miyazawa disse com todas as letras que seu interesse não está na Zona. Pelo menos, não na mesma “Zona” dos Strugátski e de Tarkóvski.

Escritor especializado em histórias de amor entre mulheres, Miyazawa é defensor do que chama de yuri da ausência: a ideia de que certos tipos de paisagem ou cenário podem ser inerentemente yuri.

Como ele mesmo explicou em uma entrevista:

Iori Morizawa: Um penhasco se ergue diante do mar, a grama cresce sobre ele, há uma cerca, o oceano cinza e o céu se estendendo para além do horizonte, há um banco vazio para duas pessoas… Alguém estava subindo essas imagens com a tag “#yuri”. Dá totalmente para entender isso”

Rikimaru Mizoguchi: Então é como a capa do capítulo 9 de Otherside Picnic, em que duas garotas estão dirigindo um veículo agrícola, e há um descampado sem fim em torno delas… Você está dizendo que isso é yuri.

I.M.: Sim. Agora remova as garotas desse cenário. […] Então imagine que um dia as duas garotas estiveram ali… Isso já não é completamente yuri?

Fez sentido para você? Confesso que, para mim, não muito.

Ler a sua entrevista, contudo, me fez dar conta de que não é a primeira vez que vejo cenários pós-apocalípticos, melancólicos usados propositalmente como metáfora dos sentimentos entre duas mulheres.

É a mesma ideia articulada à exaustão por Girls Last Tour, que acompanha duas sobreviventes de uma guerra que estirpou a humanidade.

Girls Last Tour

Se isso de fato é uma tendência – como Miyazawa acredita ser – estamos diante de uma maneira surpreendentemente original – e esquisita –  de humanizar a ficção científica.  Tarefa com que mesmo os mestres do gênero sempre tiveram dificuldade.

“Há um ditado famoso: “sci-fi é só sobre a imagem” Miyazawa disse, citando palavras atribuídas ao escritor Masahiro Noda. “Eu compartilhava esse ponto de vista e, se nada mais, preferia escrever apenas o cenário e as cenas, as paisagens. Mas para escrever yuri você precisa focar nos sentimentos e emoções das personagens”.

“O Yuri me tornou humano”.

Nesse sentido, mais do que uma adaptação de um clássico do sci-fi, Urasekai Picnic é um anti-Stalker, que se vale da aridez de seu material de origem para destacar o quão mais aberto é seu coração para os momentos mais casuais, efusivos, até mesmo ridículos que fazem de nós quem somos.

A ideia parece ter dado resultado – para os animes yuri, se não necessariamente para o sci-fi. Desde o lançamento do anime, certas páginas elogiaram abertamente a criação de Miyazawa por expandir o horizonte de obras de gênero.

É provável que houvesse formas mais simples de se fazer a mesma coisa. Pelo menos, mais convencionais.

Mas o anime não seria a mídia que tanto amamos se não apostasse em loucuras de vez em quando.