O ano é 2020. Tóquio está em chamas, seus habitantes em fuga diante de um perigo desconhecido. A cidade, que se preparava para hospedar as Olimpíadas, começa a se perguntar se durará até a manhã seguinte.
Poderia ser as manchetes de qualquer jornal de um ano atrás, quando “Covid-19” e “coronavírus” entraram no rol de nossos piores pesadelos. Mas é a tomada inicial de “Asadora!”, mangá que ressuscita a fórmula dos filmes de kaiju para a segunda década do século XXI.
“Desastre” é o tema do momento – de certa forma, de todos os momentos. Não é fácil encontrar algo relevante a dizer sobre o tema quando os jornais parecem disputar a todo instante com a ficção. Nos piores casos – como “2020 – Japão Submerso” – o paralelo com o presente apenas escancara o que não passa de oportunismo em lucrar com as manchetes.
Não seria fácil se o autor em questão não fosse Naoki Urasawa. Poucos mangakás tem um dom similar de transformar tudo o que tocam em ouro que o autor de Monster, 20th Century Boys e Pluto.
Com personagens comoventes e uma trama geracional que atravessa as décadas, Asadora! Não é diferente.
O cenário é a cidade de Nagoya no final dos anos 1950, em um Japão não de todo recuperado da hecatombe da Segunda Guerra. Nossa protagonista é Asa, uma valente menina com coragem demais e paciência de menos.
Asa vive o que parece ser um dia normal até que flagra um ladrão escapando de uma casa na vizinhança. Desesperado por ver seus planos arruinados, o bandido a sequestra.
Subitamente, o contâiner em que monta seu cativeiro treme. Ao abrir a porta, Asa e o ladrão descobre que não foi apenas sua rotina que foi virada de ponta cabeça.
O “tremor” em questão é nada menos que o Tufão Vera de 1959, até então o maior desastre climático a açoitar o Japão. Embora para nós estrangeiros ele tenha sido eclipsado por outras tragédias (como os terremotos de Kanto e Kobe), aquele setembro de 1959 foi um divisor de águas.
Se nada mais, o fato do Japão ter saído por cima na tragédia é prova do quanto ela mudou o país. Os estragos de 1959 levaram a nação a criar protocolos avançados contra desastres naturais – hoje, entre os melhores do mundo.
Asadora! não é uma história o tufão mais do que sobre a geração que o enfrentou. Estendendo-se de 1959 a 2020 — como anuncia a primeira cena — o mangá mostra como cada uma daquelas pessoas, a sua maneira, encarnaram na própria vida o cabo-de-guerra entre passado e futuro.
Kasuga, o ladrão, é um antigo ás de Marinha Imperial que não consegue emprego como piloto. Em um golpe de ironia para quem voou contra americanos, obter um brevê no japão dos anos 1950 exige uma prova de inglês. Shota, amigo de Asa, é um garoto sem talento para esportes, mas cuja família o força a treinar para as Olimpíadas de Tóquio.
O motivo? “Vestir” os sapatos de seu irmão, que deveria ter participado das olimpíadas de 1940.
Esses conflitos ficam mais claros quando o mangá coloca um pé no sobrenatural, e começamos a ter a impressão de que a casa de Asa não foi destruída por um mero tufão.
O monstro de Urasawa não tem nome – ainda – mas é impossível não notar a referência à Godzilla. Poucas personagens, afinal de contas, resumem tão bem o zeitgeist japonês dos anos 1950: as lembranças das cidades devastadas por bombardeios, o espírito de solidariedade entre vítimas, o trauma da guerra nuclear.
Na medida em que esses temas se emaranham mais e mais com a história de Asa e Kasuga, o leitor estará perdoado se pensar que Asadora fará com o kaiju mais famoso de todos os tempos o mesmo que Pluto fez com Astroboy.
Mas Asadora vai muito além de uma homenagem à Godzilla. A trama de Urasawa se desenrola ao longo de anos durante os quais a aparição do monstro é apenas uma de tantas emoções na trajetória de suas personagens. Trajetória esta que as leva a outro evento, tão – ou mais – importante que o famoso lagarto radioativo.
Em dado momento, Kasuga é contatado por Coronel Jissoji, seu antigo mentor durante os anos de guerra. O ex-oficial está envolvido na organização das Olimpíadas de Tóquio e precisa da ajuda do piloto.
Mais do que medalhas de ouro estão em jogo no evento, ele explica. O campeonato será a chance do Japão de provar aos outros países – e a si mesmo – que estava pronto para caminhar com seus próprios pés.
Nada pode tirar esse plano dos trilhos. Nem mesmo uma visita inexperada de um kaiju das profundezas.
Lendo Asadora durante à luz da pandemia de Covid-19, é tentador pensar que pouca coisa está em jogo no mangá de Urasawa. Afinal de contas, qual é a importância de um evento esportivo diante de um catástrofe de proporções nacionais?
Se um vírus fez as Olimpíadas de 2020 serem adiadas (e, possivelmente, canceladas nos próximos meses), não é de se esperar que um kaiju faça o mesmo?
Como Urasawa nos lembra, não exatamente.
Um novo Japão
Historicamente, as Olimpíadas de 1964 foram tudo isso que Cel. Jissoji disse – e mais um pouco.
Os planos para o campeonato remontam à 1940, quando a cidade de Tóquio foi escolhido para hospedá-lo. Era a chance para o Japão, então uma potência ascendente, de encarar os poderes ocidentais de igual para igual.
Infelizmente, o crescimento do Japão tomou rumos mais sombrios. A repercussão das atrocidades cometidas durante a invasão da China levou o comitê olímpico a transferir as Olimpíadas para Helsinque. O agravamento da Segunda Guerra Mundial eventualmente cancelou-o por completo.
Em 1964, o governo japonês estava determinado a fazer diferente. Para carregar a tocha, escolheram Yoshinori Sakai, cidadão de Hiroshima nascido no dia em que a bomba caiu. Boa parte dos terrenos e edifícios onde o evento foi realizado eram antiga propriedade das forças armadas imperiais, ocupadas pelos EUA após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Recebê-las de volta para um evento que celebrasse a paz entre as nações era mais do que golpe de marketing. Era um caminho para construir, sobre as ruínas do fascismo, os pilares de um futuro democrático.
Não é por acaso que o duelo entre Kaneda e Tetsuo no longa Akira acontece justamente no estádio olímpico. Mais do que um edifício, é o Japão esperançoso de 1964 que explode em pedaços na Neo Tokyo distópica de Katsuhiro Otomo.
A imaginação do desastre
Asadora! e Akira não são pontos fora da curva. Poucas coisas nos fazem refletir sobre o que os podres- e pérolas – de nossa sociedade do que vê-la em chamas numa tela de cinema.
Godzilla, referência principal de Asadora, é um dos exemplos mais conhecidos, mas está longe de ser o único. Da Estátua da Liberdade soterrada em Planeta dos Macacos à Toquio alagada de O Tempo com Você, estas histórias funcionam porque questionam uma normalidade que damos por certa.
É isso que levou a escritora Susan Sontag a dizer que filmes clássicos de ficção científica não são realmente sobre “ciência”. O seu assunto é o desastre.
Esse tipo de filme, ela argumenta, “está preocupado com a estética da destruição, com as belezas peculiares encontradas em causar estrago”.
Essa imaginação do desastre, como ela a batizou, nos traz histórias moralmente simples, em que os monstros são sempre monstruosos e não há dúvidas de quem são os mocinhos. Com isto, ela serve de válvula de escape a fantasias de violência, impedindo-as de tornarem-se um fascínio perigoso.
Ela nos fala do poder da amizade e da união entre nações; na capacidade dos seres humanos em colocar de lado suas diferenças e trabalhar por um bem comum. Seus heróis são muitas vezes cientistas, capazes – com algum esforço – de convencer políticos a fazerem o que é melhor para a humanidade.
Exaustos como estamos à mercê da pandemia, solidão e um presidente genocida, é fácil entender o apelo dessas histórias.
Nas palavras de Sontag:
A nossa é de fato uma era de extremos. Pois nós vivemos sob a ameaça contínua de dois igualmente medonhos, mas aparentemente opostos destinos: a banalidade ininterrupta e o terror inconcebível. É a fantasia, servida em largas doses pelas artes populares, que permitem que a maior das pessoas lide com esses espectros gêmeos.
Mais de cinquenta anos depois (Sontag publicou seu ensaio em 1965) nós vivemos, de novo, em uma era de extremos. Era de se esperar, portanto, que um mangá como Asadora!, abordando os temas que aborda, ofereceria justamente esse escapismo de que tanto precisamos.
Mas Asadora!, surpreendentemente, não é esse tipo de história.
Como é de se esperar de um mangá de Urasawa, ninguém é tão simples quanto parece. Kasuga é um herói de guerra, mas também um ladrão e sequestrador. Asa tem coragem, mas não bom-senso. Nakaido, cientista que ajuda a protagonista a identificar o monstro, é um covarde elitista. Nenhum deles é exatamente hero material.
Não há, tampouco, vilões convencionais. O “kaiju” – se é que, de fato, podemos chamá-lo assim – não é um monstro mais do que uma força da natureza, nem mais nem menos maléfico do que o tufão de 1959.
Nenhum dos conflitos do mangá podem ser resolvidos pela violência. Pelo contrário, cada uma das personagens sabe muito bem que foi a violência – mais, sua tolerância com a violência, nos anos sombrios da guerra, que os colocou nessa cilada em primeiro lugar. É para se remidir desse pecado que Kasuga, que ontem torpedava navios americanos, hoje voa para salvar civis; que Cel. Jissoji, ex-figurão do regime fascista, dedica a vida para reconstruir a democracia.
Urasawa é mais crítico e, justamente por isso, mais otimista que a ficção de kaiju que lhe serve de tributo. Como os organizadores das Olimpíadas de 1964, ele acredita que mesmo um país dilacerado pelo ódio e radicalismo pode dar a volta por cima, sem com isso deixar de responder por seus erros.
Seria o nosso mundo de 2021 capaz da mesma salvação? É demais sonhar que os Kasugas e Jissojis que arquitetam nossa própria ruína entendam que estamos à beira de um precipício e façam aquilo que é certo?
Talvez seja. Mas é o papel da fantasia, como Sontag nos lembra, nos dar corda para que sobrevivamos aos tempos difíceis, por mais problemáticas que sejam essas ilusões.
!!! vou ler!!! top demais