Semanas atrás, enquanto dava uma aula, alguém me perguntou se os games já haviam influenciado a literatura.
Essa pessoa não se referia às inúmeras novelizações de jogos eletrônicos, às light novels isekai ou a fenômenos como The Witcher. O que ela queria saber é se jogos já apareciam na literatura dito “séria”: Guimarães Rosa e Shakespeare mais do que Ernest Cline e George R.R. Martin.
Millennials e Gen-Zs, afinal de contas, nasceram e cresceram com um controle em mãos. Será que os novos clássicos da literatura que essas gerações virão a produzir serão influenciados por essa mídia?
É uma pergunta interessante, que muitos amantes de literatura e games talvez já tenham se feito.
Graças a Stephen Sexton, porém, não precisamos mais adivinhar a resposta.
It’s a me, Mario!
Não há maneira de descrever a obra de Stephen Sexton que faça jus à simplicidade – e ousadia – de sua proposta: If All the World and Love Were Young conta a história real da batalha de sua mãe contra o câncer, narrada como uma releitura de Super Mario World.
Não, você não leu errado. Escrito em verso, o livro é uma coletânea de poesia diretamente inspirada pelo clássico da Nintendo. Cada um dos 96 poemas empresta seu título e vocabulário de uma das fases do game, divididos em nove partes correspondentes aos seus “mundos”: Yoshi’s Island, Donut Plains, Vanilla Dome, Twin Bridges, Forest of Illusion, Chocolate Island, Valley of Bowser, Star World e Special World.
A história que contam, porém, não tem nada de inocente.
O “precinto de tefra cuspida a rocha como/ mel negro dobrando-se” de Iggy’s Castle, por exemplo, vira uma metáfora para as terríveis dores causadas pelo tratamento da mãe, “alguém de pé cercada de fogo que / diz para seguirmos em frente / sem mim”.
As enfermeiras indo e vindo no hospital são comparadas aos fantasmas da Vanilla Ghost House; as correntes de seus relógios aos morcegos que dormem de ponta-cabeça. Já a mesa de operação, com suas tesouras e bisturis, se transforma nas armadilhas afiadas de Morton’s Castle, “ […] onde ro-/chedos sorriem e/ quicam abaixo/ uma maça que balança girando seu mais cheio círculo.”
O médico em si é descrito com uma aura de terror que apenas uma criança diante de uma boss fight iminente é capaz de entender:
No castelo está o cirurgião magro e elegante
como um garfo.
É assim que se faz precisamente ele diz
afiando seu dedo
até um gume tão fino mais fino que qualquer brilho
em seu olho.
Como diz o próprio autor no prefácio, a ideia de aplicar referências tão meigas a um episódio tão mórbido veio de uma velha foto de 1998, tirada pela mãe, em que ele aparece jogando seu SNES. Honrar a memória daquele momento de alegria se tornou uma missão depois que o câncer tolheu a vida de sua progenitora.
Mas Sexton, cuja obra faturou o Forward Prize (um dos prêmios mais prestigiosos dedicados a novos poetas), não se limitou a reciclar imagens de Super Mario. Parte do motivo que fez seu livro conquistar um público tão amplo – e, de certa forma, tão tradicional – foi sua capacidade de combinar sua nerdice com imagens que dispensam explicações.
Nascido na Irlanda do Norte em uma época em que seu país ainda sofria sob o terrorismo, seu livro é recheado de referências aos pesadelos que testemunhou quando crescia.
Em Forest of Illusion 3, ele nos conta como “no rádio/na cozinha há uma devastação de Omagh bem a-/lém do lago”, uma referência ao atentado de Omagh de 1998, o episódio mais sangrento das Troubles.
Já em Donut Plains 4, os goombas — “avelãs [ que ] desmaiam e rolam por aí e / outras caem de paraquedas / de árvores” são comparados às nozes coletadas para a produção de munição na Primeira Guerra Mundial:
Durante as guerras do século sombrio eu lia que cri-
anças enchiam seus bolsos
Com avelãs para transformar em acetona para
transformar em
cordite em ogivas esperando armadas nos fu-
zis de seus primos.
Nós, que crescemos jogando games e vivemos nossas vida sob seu prisma, sabemos que a mídia é bem mais que uma brincadeira de criança. Jogos como Mass Effect, Majora’s Mask, Life is Strange, Nier: Automata e tantos ganharam espaço no cânone por trazerem a mesma sensibilidade humanista oferecida pelo melhor da ficção.
Sexton vai além e nos mostra que mesmo um simples platformer visto através de uma TV de tubo pode ser uma ajuda para encaramos – e aceitarmos – as verdades mais dolorosas que enfrentaremos na vida.
Com isso, ele passa uma lição que todos que se dizem “nerds” deveriam urgentemente escutar.
A doença da nostalgia
A despeito de suas pretensões de progressismo – e da juventude daqueles que se identificam com ela – a cultura nerd é obcecada pelo passado.
A doença tem um nome – “nostalgia” – e um modus operandi – a adoração de qualquer obra, brinquedo ou personagem, que tenha feito parte de nossa juventude. Nem que ela tenha sido apenas uma desculpa descarada para vender brinquedos.
A religião da nostalgia encontra sua expressão máxima no livro Jogador No 1 de Ernest Cline, uma “carta de amor” à nerdice que cita mais referências do que cabem em todo o MCU, mas não é capaz de dizer por que elas são importantes.
Essa devoção ao entretenimento do passado age quase como fim em si, como se estivéssemos mais preocupados em justificar o tempo perdido fazendo “coisas de fã” que tirando dessas obras alguma coisa engrandecedora.
O que Cline e outros nostálgicos não percebem é que a nostalgia que sentimos, no fundo, não vem dos desenhos, brinquedos e jogos que de nossa infância. Vem, sim, da própria época em que éramos jovens o suficiente para apreciá-las.
Sentimos falta de uma época mais simples em que passávamos às tardes no tapete, assistindo a desenhos por horas a fio sem se preocupar com contas a pagar, pandemias ou presidentes facínoras.
Sentimos faltas de sermos crianças com um futuro ainda pela frente, não adultos que desperdiçaram a vida assistindo animes moe enquanto nossos pares fundaram empresas, revolucionaram a ciência, publicaram livros e deixaram sua marca no mundo.
Sentimos falta de sermos pequenos demais para entendermos de política ou termos alguma consciência social – e de não percebermos, portanto, que as obras que assistíamos haviam sido feitas por pessoas reais, falando de coisas reais à sombra de violências reais. De onde o incômodo de tantos nerds reacionários para que seu entretenimento “para de falar de coisa séria” e volte a ser um escapismo vazio.
Sentimos falta da nossa avó, hoje falecida, que nos preparava um lanche enquanto jogávamos Mario Kart com o coleguinha de escola. De nosso pai, hoje divorciado e morando em outro estado, que nos levava na loja de brinquedo para comprar um boneco de Power Rangers. De amigos que pensávamos inseparáveis, mas de que hoje só nos lembramos do nome. Às vezes, nem mesmo isso.
Como Thanos de posse da manopla do infinito, o que realmente queremos – mas não admitimos – é estalar os dedos e voltar os ponteiros do relógio de nossa própria vida, de maneira a curtir de novo a idade da inocência.
O problema é que essa inocência jamais voltará, ainda que nos enganemos vestindo camisetas de heróis e encarando a vida como se tivéssemos superpoderes.
Quando o mundo e o amor eram jovens
Sexton sabe disso muito bem, e é por isso que seu livro é uma das melhores – se não a melhor obra literária já escrita sobre o mundo dos games.
Como ele próprio disse, “[eu] logo percebi que esse jogo em particular era de tal forma parte da minha infância que eu não podia escrever sobre ele sem pensar na minha infância e não podia pensar na minha infância sem pensar na tristeza”.
Cada um dos poemas que compõem sua narrativa é uma tentativa de fazer as pazes com o fato que todos os power ups e vidas extras do mundo não trarão sua mãe de volta.
Aquela tarde de 1998 em que foi fotografado jogando Super Mario World jamais será mais que uma foto, uma memória cada vez mais distante e inacessível. Tudo o que nos resta fazer é nos inspirar no momento em que a luz de uma tela nos iluminou e encontrar nossa própria luz para nos guiar na jogatina que chamamos de vida:
e a voz dela se movia pela borda do
mundo e agora eu
acho eu
lembro o que eu quero dizer que é apenas
dizer aquilo uma vez
quando todo o mundo e o amor era jovem eu
o vi belo brilhando
uma vez no canto da sala uma vez eu estava
sentado em sua luz
If All the World and Love Were Young é um primor literário, um tesouro que faz aos games o que As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay fez aos quadrinhos de herói e A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao fez à nerdice como um todo. Mais do que um tributo à cultura pop, é a chave de que ela precisa para escapar do reacionarismo das fanbases, do ultracomercialismo das convenções e da obsessão trivial, fanática por “referências”.
A cultura nerd é capaz de mais do que isso. A princesa está em outro castelo. E Sexton acaba de nos mostrar o caminho.
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