AVISO: Contém SPOILERS para Wolfwalkers
O que seria de O Túmulo dos Vagalumes se o bombardeio de Kobe não acontecesse e Seita, Setsuko e sua mãe vivessem feliz para sempre?
Ou de Nesse Canto do Mundo se a bomba nunca caísse em Hiroshima e EUA e Japão fizessem as pazes graças ao poder da amizade?
As personagens desses filmes sem dúvida não reclamariam. Porém, você estaria perdoado de achar que seus diretores perderam completamente o juízo.
Essas histórias, afinal de contas, só foram contadas porque os sofrimentos que retratam aconteceram de verdade. Todo o seu propósito – e a sua beleza – está em despertar a empatia das novas gerações e impedir que estas atrocidades sejam esquecidas.
Quando um diretor decide falar sobre um tema desses, o mínimo que se espera é que esteja disposto a levar essa bagagem em consideração.
Infelizmente, é justamente o oposto que faz Wolfwalkers, novo filme dos criadores de O Segredo de Kells.
Correndo com os lobos
O novo filme do diretor Tomm Moore conta a história de Robyn, filha do caçador Bill Goodfellowe. Ingleses de nascença, Robyn e seu pai são convocados à Irlanda para prestar um serviço ao governo: exterminar os lobos que apavoram a cidade de Kilkenny, recém-tomada dos irlandeses.
A tarefa, Robyn descobre, não é tão simples quanto parece. Durante uma incursão na floresta, Robyn é acidentalmente mordida por um lobo. O animal se transforma em uma garota chamada Mebh (pronuncia-se “Mêive”), que lhe revela ser uma wolfwalker, membro de uma casta de humanos capazes de assumir a forma de lobos.
Ao mordê-la, ainda que sem querer, Mebh inadvertidamente transformou Robyn em uma wolfwalker ela própria. Com seus novos poderes, veio também um novo entendimento do mundo dos animais – e do ônus, invisível à maioria dos humanos, que a civilização impõe à natureza.
Robyn retorna à companhia dos humanos, não mais focada em ajudá-los a exterminar os lobos, e sim em convencê-los de que pessoas e animais podem viver em harmonia.
É um enredo simples, singelo e não particularmente original, do tipo que consegue, sem muito esforço, tirar um sorriso dos espectadores mais sisudos.
O problema é esse filme vem de não outro que Tomm Moore, co-fundador do estúdio Cartoon Saloon. Tal como em seus longas anteriores O Segredo de Kells (ambientado na Irlanda do século VIII) e A Ganha-Pão (ambientado no Afeganistão de 2001), o diretor irlandês decidiu dar a sua fábula uma roupagem época.
Especificamente, uma época que nada teve de simples ou singela.
Para Connacht ou para o Inferno!
O filme se passa em 1650, durante a Guerra Civil Inglesa. Tensões entre o rei Carlos I e seu parlamento, motivadas em parte por diferenças religiosas, levaram a uma rebelião nacional liderada pelo estadista Oliver Cromwell.
Descontentes com décadas de perseguição religiosa, os católicos da Irlanda – então uma colônia inglesa – aproveitaram a deixa para se rebelar contra seus líderes protestantes.
O resultado foi um conflito conhecido como as Guerras Confederadas da Irlanda. A carnificina chegou a tal ponto que Cromwell em pessoa precisou invadir a ilha e trazê-la de volta à ordem. Até hoje, esta guerra é lembrada como o embate mais sangrento, devastador e traumático da história irlandesa.
Seria injustiça dizer que Wolfwalkers não leva sua bagagem histórica a sério. O filme se passa na cidade de Kilkenny, capital dos confederados irlandeses, no exato ano em que se rendeu às tropas inglesas.
Cromwell em pessoa está presente no filme como seu principal antagonista. O enredo captura bem o terror de se viver em uma zona de guerra, tanto para os irlandeses (ocupados por um exército invasor) quanto para os próprios ingleses (que, com um estalo de dedos, podiam ser enviados ao front para lutar).
Ingleses em uma cidade irlandesa, Robyn e seu pai sofrem desde o princípio com a desconfiança da população local. Robyn sofre bullying constante de garotos da cidade. Irlandeses, por sua vez, terminam no pelourinho a troco de qualquer ofensa contra seus mestres ingleses.
Por incrível que apreça, até mesmo o plano maquiavélico de seu vilão – extinguir os lobos e queimar as florestas – tem um fundo histórico. Décadas antes dos eventos do filme, outro político inglês, Sir John Davies, havia escrito que “Um país bárbaro deveria ser quebrado por uma guerra” que nem a “terra deve ser quebrada e adubada” para que “não se torne selvagem de novo”.
“Quebrar” a terra da Irlanda foi justamente o que Cromwell fez – de uma maneira terrivelmente eficaz. O desastre provocado pelass Guerras Confederadas não foi apenas humanitário. Foi também uma calamidade ecológica.
É aqui que o filme de Moore parece ter colocado areia demais em seu caminhão.
Acontece que, historicamente, o lorde protetor venceu. E fez questão de garantir que os irlandeses jamais se esquecessem disto.
As florestas da Irlanda foram completamente arrasadas. Segundo Eileen McCracken, a cobertura florestal da Irlanda caiu de 12,5% no final do século XVI para apenas 2% em 1800. Nem mesmo a ajuda de Mebh teria mudado esse quadro, pois os lobos foram caçados à extinção.
Entre a população irlandesa, as consequências foram igualmente severas. Um quarto de toda a Irlanda foi morta, a maioria de fome ou doenças espalhadas pelos soldados. Cidades inteiras, como Drogheda, foram deliberadamente massacradas pelo Exército Novo do lorde protetor.
Cromwell não parou por aí. Para remunerar seus soldados – e punir ainda mais os irlandeses – o lorde protetor ordenou que católicos tivessem suas terras confiscadas e fossem transplantados para as regiões mais pobres da Irlanda. A medida ganhou um slogan: “Para Connacht ou para o inferno”, referência à província irlandesa que recebeu a maioria dos remanejados.
Essas medidas criaram um fosso social gigantesco entre a maioria católica e a elite protestante que os séculos seguintes só agravaram. Esta desigualdade foi uma das principais causas da Grande Fome da Irlanda, que tolheu a vida de cerca de um milhão de pessoas, a maioria católicos.
O estrago de Cromwell foi tão grande que ele ainda era evocado no final do século XX, quando o ódio entre católicos e protestantes descambou para o terrorismo aberto.
Meses atrás, quando soube que Wolfwalkers seria ambientado nessa época, fiquei extasiado.
Depois de tanto silêncio, essa história finalmente viria à tona. A Irlanda finalmente ganharia um Túmulo dos Vagalumes para chamar de seu: uma fábula que trouxesse esse período sombrio para os holofotes do cinema mundial.
Infelizmente, Moore decidiu seguir pelo caminho de menor resistência e fingir que essa tragédia nunca aconteceu. Seu longa termina com Cromwell caindo num poço sem fundo, as florestas de Kilkenny salvas por uma chuva mágica, o pai de Robyn casando-se com a mãe de Mebh e todos vivendo felizes para sempre.
Esse final torna o filme não apenas escandaloso de um ponto de vista histórico, mas também imperdoavelmente banal. Em vez de beber da tradição literária irlandesa – que tão bem lhe serviu em O Segredo de Kells – Moore adota a mesmice blockbuster da Disney-Pixar, segundo a qual nenhum desafio é grande demais que não possa ser resolvido por um Let it Go.
Longe de honrar as trágedias das Guerras Confederadas, Moore as transformou em perfumaria. Se Wolfwakers diz alguma coisa, é uma mensagem que poderia vir de qualquer um, em qualquer filme, sobre qualquer coisa.
O eterno cabo de guerra
Princesa Mononoke, outro filme sobre lobas mágicas e tragédias ecológicas, pisou em cascas de ovos parecidas sem oferecer respostas fáceis.
Sua Cromwell – Eboshi – é uma industrialista predatória, mas também uma revolucionária. As balas que amaldiçoam os javalis da floresta – e que podem trazer abaixo todo o equilíbrio natural – são as mesmas com que protege mulheres e leprosos da violência dos samurais.
Seu Robyn – Ashitaka – percebe isto. Por esta razão, decide se estabelecer entre os mineradores em em vez de correr com os lobos. Sua Mebh – San – é lúcida o suficiente para entender que nenhum dos dois mudará seu caminho, não importa quantas mordidas recebam.
Nenhum dos três termina o filme da forma como desejavam no começo. Tampouco eles compram a ilusão de que podem viver bem graça ao poder da amizade.
Os propósitos de Eboshi e San são incompatíveis, tal como o são aqueles de todos os seres humanos, condenados a um eterno cabo de guerra entre natureza e cultura, passado e futuro. O máximo a que podemos aspirar é uma coexistência aflita, sem garantias de uma paz duradoura.
As personagens de Wolfwakers se encontram em um mesmo cabo de guerra. Infelizmente, o otimismo simplório de sua história a reduz a um Pocahontas de baixo orçamento; anódino na pior das hipóteses, revoltante na pior.
Seus truques visuais e canções contagiantes provavelmente agradarão a crianças bem pequenas. Adultos, que já sofreram um novo Pocahontas em Avatar – e sofrerão um vomitório de sequels suas nos anos vindouros – tem opções melhores com que gastar seu tempo.
Acabei de assistir, estava com saudades de uma animação 2D tão rica em detalhes, cada frame é uma linda obra de arte. Fico feliz que crianças sejam apresentadas a esse terrível contesto histórico com o bem triunfando, porque quando crescerem e, se depararem com a injustiça da história real, terão o sentimento de que o real não foi certo, e quando vêem que acontece ainda hoje, sentem que isso não deve ser normatizado pela sociedade, e serão inconformodas e irredutíveis quanto a isso. Por isso, embora essa crítica seja muito boa para situar à realidade, é muito pobre em não perceber que, crianças também merecem ter sua versão da história até que chegue a idade adulta e lhes combata a esperança diante da dureza implacável da injustiça no mundo real. Ao achar que toda animação ambientada num período sombrio, não pode se valer disso para fazer o bem triunfar ao menos na ficção, é o mesmo que dizer que devemos excluir crianças do público alvo de uma animação e fazer de todo desenho que se baseia em algum período histórico, ser um “O Túmulo dos Vagalumes”, mas se esquece que, para que a realidade de O Túmulo dos Vagalumes nos seja tão chocante, é porque em algum momento desde a infância, histórias como Wolfwalkers nos ensinaram o valor do bem e como vale a pena lutar por ele, e o quanto é injusto e aviltante quando os poderes seculares da nossa sociedade perdem esses valores e tratam vidas como objeto quando úteis e como lixo quando incômodas. O que o crítico não se deu conta é que, O Túmulo dos Vagalumes se torna ainda mais simbólico, porque histórias como Wolfwalkers primeiro nos ensinaram que o mundo deveria ser diferênte, no contrário O Túmulo dos Vagalumes seria mais do mesmo, mais um dia semelhante aos dias de Cidade Alerta que vemos sempre e nos anestesia e nos conforma com a maldade do mundo, nos deixando inertes até que aconteça com a gente.
A Ganha-Pão, filme do mesmo criador de Wolfwalkers e dirigido ao mesmo público alvo, consegue lidar com uma tragédia tão terrível quanto e muito mais próxima (a ascensão do Taliban), sem finais felizes forçados, sem pisar em cascas de ovos e sem se furtar a mostrar a violência nua e crua.
Seu argumento de que mostrar a realidade tal qual ela é significa excluir crianças do público alvo não faz o menor sentido. O cinema não é só feito de filmes sacarinos e Cidade Alerta. Há um amplo espaço para histórias infantis nuançadas que celebram o bem sem fazer sugarcoating. Princesa Mononoke está aí de prova.