Às vezes, é difícil escapar da impressão de que os animes são feitos exclusivamente para adolescentes.

Se animes sobre adultos não são exatamente raros (e alguns marcam presença em qualquer lista de clássicos), eles somem de vista entre os dramas escolares, jovens prodígios de shounen e garotas moe. 

A temporada de primavera de 2020 parece ter vindo para mudar esse cenário. Do pai solteiro de Kakushigoto aos escritores famosos de Kitsutsuki Tanteidokoro, a última leva de animes lembra otakus de que há vida depois dos 18 anos. Dentre seus destaques, duas séries, Yesterday wo Utatte (Sing “Yesterday” for Me) e Nami yo Kiitekure (Waves, Listen to Me), abordam de frente dilemas específicos do mundo pós-universitário.

Com títulos que remetem à “voz”, essas séries prometem quebrar o silêncio de adultos geralmente relegados a coadjuvantes: pais, mentores, irmãos mais velhos.

Mas será que essas séries realmente fazem jus à experiência adulta?

Se é verdade que essas séries têm sido muito elogiadas, a recepção não foi universalmente positiva.

Yesterday wo Utatte, em especial, parece ter atraído os comentários mais discordantes. Elogiado por jovens reviewers como um retrato fiel de sua fase da vida, o anime também torceu narizes de quem já passou por ela.

Rebecca Silverman do ANN zombou a série como uma dose de “desesperança grunge do final dos anos noventa”. Theron Martin, do mesmo site, foi ainda mais duro, descrevendo-a como uma história de “pessoas se remoendo em auto-piedade rasteira” provocada por uma situação que elas mesmas causaram.

Mesmo Christopher Farris, que avaliou positivamente seu primeiro episódio, reconheceu que é “uma versão aparentemente insossa” de uma fábula sobre o início da vida adulta “que, se você já tiver passado por aquele ponto na sua vida, pode ser enfadonha de assistir”.

Sim, os percalços da juventude podem soar picuinhas para quem já os superou. Mas seriam essas críticas sinais de uma simples briga geracional?

Ou será que as promessas de Yesterday – e o desencanto daqueles que as consideram não cumpridas – revelam algo mais profundo sobre nossa relação com a vida adulta?

Para responder a essas questões, é necessário ir mais a fundo – no anime e em suas críticas.

A longa noite que se segue

Yesterday, (pelo que é possível tirar de seus cinco primeiros episódios), é a história de quatro pessoas que se perderam no caminho que separa a adolescência da vida adulta – nas palavras de Roger Ebert, o abismo entre “o último dia da escola e a longa noite que se segue”.

Rikuo é um jovem formado, amante de fotografia, que preferiu trabalhar em uma loja de conveniência a fazer de seu hobby em uma carreira. Shinako, sua colega de turma, é uma professora de Ensino Médio atormentada pela morte de um crush juvenil. Haru é uma garota que abandonou a escola e trabalha de garçonete em um maid café. Rou é um amigo de infância de Shinako que parece esconder uma paixão reprimida.

Ao explicar suas reservas para com a série, Martin pontua que seu protagonista, Rikuo, reflete as inseguranças de vários jovens recém-saídos da faculdade, sem perspectiva do que fazer com a vida agora que têm um diploma. Experiência que reconhece que ele próprio teve naquele momento de sua vida.

“O ponto de ruptura entre ele e eu” ele acrescenta “É que, ao contrário de Rikuo, eu sabia exatamente o que eu queria fazer na vida; era só uma questão de conseguir um emprego a despeito de um mercado complicado para a minha profissão”.

É um ponto de vista em que eu próprio me vejo. Formado em uma área com baixíssima empregabilidade (História), eu também peguei meu diploma com o pressentimento desagradável de que não conseguiria trabalhar com aquilo que amava. Mesmo enquanto fazia cursos atrás de um “plano B”, contudo, nunca perdi de vista que ser historiador era minha paixão.

Isso não me impede de reconhecer que o argumento de Martin é um tanto injusto. Ter a certeza do que desejamos fazer é um privilégio, não uma coisa que podemos tomar por dada. E para todos aqueles que fazem faculdade “por fazer”, a auto-sabotagem de Rikuo é um protesto perfeitamente válido.

Mas Yesterday parece esquecer que não é apenas ambição que nos move a colocar nossa vida nos trilhos. Para muitos, fazer faculdade e arranjar um emprego é uma forma de atender a pressões muito mais prosaicas: sair da casa dos pais, pagar as contas, sustentar um parente ou um filho.

Usagi Drop

Trabalhar num escritório realizando um emprego que odiamos não é exatamente o sonho de ninguém. Mas é, muitas vezes, o pré-requisito para que tenhamos um módico de independência –   um “quarto para chamar de seu”, como diria Virgínia Woolf – que nos permite tomar, por menor que seja, as rédeas da nossa própria vida.

Para quem vive diariamente  essa rotina, batalhando por cada boleto, celebrando cada happy hour, a autopiedade das personagens de Yesterday pode mesmo parecer revoltante.

“Eu larguei a faculdade” uma personagem anuncia dramaticamente, encarando o pôr do sol. “Vou sair do Japão com a minha câmera e perambular por um tempo.” Rebeldia inocente que só faz sentido quando se é adolescente e tem-se alguém disposto a pagar a conta.

A fúria sarcástica dos millenials

Nesse sentido, é surpreendente o quanto Yesterday difere de Nami yo Kiitekure, outro anime “adulto” da temporada.

À princípio, ambas as séries parecem beber da mesma fonte de dilemas pós-universitários. Os de Nami vêm de Minare, garçonete desiludida cuja vida muda ao conhecer um diretor de rádio.

Convencida a gravar um programa durante uma noite de bebedeira, Minare acorda para descobrir que se tornou um hit instantâneo da emissora. O sucesso aviva o sonho de que pode trabalhar com aquilo. Mais do que isso, que a carreira de locutora pode ser o bilhete que tanto esperava para largar de vez sua vida morosa.

O enredo já deixa claro que as personagens das duas séries pouco têm em comum além da idade.

Yesterday nos traz um rapaz que se refugia de propósito em um emprego menial. Nami apresenta uma mulher disposta a fazer de tudo para largar o seu.

Rikuo rejeita flertes de uma admiradora enquanto pisa em cascas de ovos com a mulher que de fato ama. Minare não tem papas na língua para rejeitar um colega grudento, nem para se atirar aos outros quando bate a carência.

As personagens de Yesterday raramente sorriem – e, quando o fazem, é o sorriso fingido das Manic Pixie Dream GirlsNami, pelo contrário, ferve com a raiva sarcástica de millenials cansados de engolir o pão que os boomers amassaram.

A série desperta empatia para com sua heroína na mesma medida em que zomba de seu azar. Episódio a episódio, assistimos a Minare encarar a vida como se presa ao assento de uma montanha russa, divertindo-se na mesma medida em que se descabela de desespero.

Não se trata apenas de um escape cômico. Esta diferença de tratamento mostra uma diferença fundamental na forma como os dois animes encaram seu assunto.

A vida adulta, segundo Nami , não é feita apenas de melancolia. Ela também envolve fazer papelão com o vizinho, tomar vodka com iogurte, beber até acordar semi-nua, sem fazer a mínima ideia de como chegamos à cama.

O ponto não é dizer que Nami é “melhor” que Yesterday.  Mas a diferença brutal entre suas mensagens mostra que os critérios pelo que julgamos um anime como “realista” ou “naturalista” (para citar dois termos aplicados a Yesterday) é mais arbitrária do que parece.

O problema das “vozes de uma geração”

O mangaká Inio Asano

Críticos (e leitores) adoram eleger  “vozes da sua geração”. A ideia de que um autor é capaz de resumir as angústias de toda uma faixa etária  – que uma obra, enfim, consegue não apenas ser boa, mas dizer respeito à nossa vida – é irresistivelmente romântica.

Entre os animes e mangás que já ganharam essa honraria estão Aggretsuko – que compartilha a fúria e ponto de vista feminino de Nami – e os mangás de Inio Asano, cujas personagens não se sentiriam fora de casa na companhia do elenco de Yesterday.

Rebecca Silverman reconhece a semelhança, chamando Rikuo de “everyman por excelência da escola Inio Asano – o seu próprio pior inimigo”, “bitolado na ideia de que ele provavelmente deveria “fazer algo” de si mesmo sem de fato entender, ou querer entender, o que isto requer”.

Se essas obras fizeram ou não por merecer é um assunto para outra coluna. Que elas de fato tragam alguma sabedoria sobre nossa época não muda o fato de o termo é bastante problemático.

Primeiro porque somos fruto não apenas de uma “geração”, mas de um país, cultura e classe social específicos.  E nenhuma voz é abrangente a ponto de falar em nome de todos.

Segundo porque aquilo que define uma “geração” está, muitas vezes, nos olhos de quem vê.

Aggretsuko chegou a ser chamada de a Zootopia das trabalhadoras millenials. Em entrevista ao (terrível) documentário Universo Anime , seu diretor, Rareko, se disse surpreso com a recepção efusiva, já que suas esquetes vêm de clichês da comédia japonesa criados mais de trinta anos.

Yesterday, por sua vez, deriva de um mangá publicado a partir de 1997. Um leitor que tivesse a idade de suas personagens no ano de lançamento poderia hoje ter filhos em idade universitária.

Volume 1 de “Yesterday”, lançado em 1997

Se nada mais, isso prova que “vozes da geração” mostram o que queremos que a vida seja mais do que ela é de verdade.

No caso de Yesterday, uma mundo em que nossa falta de rumo é culpa apenas da indecisão, não de forças irresistíveis que vão nos esmagar de uma forma ou de outra. No caso de Nami e Aggretsuko, uma batalha que nos permite, se não vencer, pelo menos cair matando com um belo grito de guerra.

Entender por que construímos (e projetamos) tais fantasias diz mais sobre nós mesmos do que qualquer história que animes possam nos trazer.