Conta a mitologia dos sámi, povo nativo da Lapônia, que epidemias eram causadas por um demônio chamado Ruto. Aqueles que o desagradavam eram arrastados a seu inferno pessoal, o reino maléfico de Rotaivo.
O alvo da sua fúria? Pessoas que negavam a natureza.
A ironia não é perdida em nós, testemunhas da primeira grande pandemia do século XXI. Nos últimos anos, assistimos impotentes a populistas, demagogos e fanáticos desafiarem o senso comum. Das vacinas ao aquecimento global, nenhuma verdade parecia óbvia o suficiente para que o obscurantismo não a desafiasse.
Hoje, a natureza cobra seu preço. E Ruto, se ainda existir, sem dúvida está com um sorriso no rosto. Pois a conta será mais alta que qualquer coisa que os antigos sámi poderiam imaginar.
A lenda de Ruto não aparece em The Butchers (“Os Açougueiros”), novo romance da irlandesa Ruth Gilligan. Lendas, contudo, são o que não falta em sua história.
Unindo O Roubo do Gado de Cooley, épico seminal da mitologia irlandesa, com a epidemia de EEB (mal da vaca louca) nos anos 1990, o livro é uma fábula engenhosa, humana, e comovente sobre a necessidade de encontrar sentido em tempos de pestilência.
O amor em tempos de vaca louca
Como confessaram escritores nos últimos dois meses, a pandemia que vivemos não faz muito bem para a criatividade. É difícil saber quanto nosso mundo mudará, quanto a ficção pré-coronavírus parecerá obsoleta aos leitores do futuro.
A escritora Ruth Gilligan parece ter sofrido a bênção oposta. Seu livro, sobre a epidemia de EEB (mal da vaca louca) nos anos 1990, passar-se-ia por curiosidade em tempos normais. Lançado em 2020, sua mensagem se torna um manifesto dos tempos de covid-19. Quando não uma profecia.
O ano é 1996, e o mercado de carne britânico acaba de ser abalado por rumores de uma doença contagiosa. Na Irlanda, a notícia é recebida com júbilo. Livre da competição com os ingleses, a pecuária irlandesa cresceria, trazendo lucros para todos. Seria o “boom da carne celta” que colocaria o país no mapa dos grandes do mundo.
A promessa nunca se concretizou. A EEB se espalhou rapidamente pela Irlanda, causando prejuízos milionários e mortes de rebanhos inteiros.
The Butchers é a história das pessoas que vivem a calmaria antes dessa tempestade. Uma delas é a de Grá, esposa de membro de um antigo culto pré-cristão. Segundo seus praticantes (os “Açougueiros” do título), vacas só podem ser consumidas se abatidas segundo um complexo ritual. Caso as formalidades não sejam observadas, uma peste terrível assolará a Irlanda.
Vistos com desconfiança desde sua origem, em 1996 os Açougueiros se vêm reduzidos a uma curiosidade na melhor das hipóteses; um motivo de chacota na pior. Lena, irmã de Grá, fugiu da família para se ver livre da crendice. Sua filha, Úna, sofre bullying na escola. Os primeiros fast foods decolam no país, e a mão invisível do mercado ameaça condenar a pecuária consciente, artesanal da seita à lata de lixo da história.
Quando a EEB se espalha pela Irlanda, Grá e Úna se perguntam se aquela não é a peste de que os Açougueiros tanto avisaram. E suas dúvidas e rebeldias não estão por trás da tragédia que está por vir.
Grá zombou do pensamento – maldito gado onde quer que olhasse Mas, ainda assim, nesses dias você ouvia menos e menos sobre essas antigas superstições, todos os antigos contos deixados de lado pelo futuro progresso.
Irlanda moderna.
Aquela era a única narrativa em que os locais estavam interessados agora.
Quem precisa de Cúchulann quando você tem o Touro, não é?
O “Touro” em questão é Eoin Goldsmith, magnata da pecuária com um dedo na política e um pé no mundo do crime.
Tal como as superstições dos Açougueiros, ele também é um “mito”, embora na concepção populista, bolsonariana do termo. Iconoclasta na medida em que os Açougueiros são tradicionais, ele é um homem disposto a pisar em ovos para fazer o boom da carne celta acontecer.
Aproveitando-se do caos provocado pela EEB, o Touro monta um esquema para roubar vacas britânicas e vendê-las ilegalmente, transformando-as em ração para o gado irlandês.
Infelizmente para os irlandeses, rações feitas a base de carnes e ossos de bovinos (conhecidas em inglês como MBM) são exatamente a origem do mal da vaca louca. Ao buscar um lucro fácil sobre a tragédia dos ingleses, o Touro condena seu país a uma epidemia que ele mesmo ajudou a agravar.
Mas ele, a despeito de sua professada “modernidade” não é apenas um capitalista ganancioso. Sem saber, ele repete os passos de outra líder sem escrúpulos: a rainha Medb de Crúachan, que no grande épico da mitologia irlandesa, O Roubo do Gado de Cooley, provocou uma guerra contra o reino de Ulster na tentativa de roubar o rebanho alheio.
O reino de Ulster não existe mais, mas seu nome se tornou um apelido para a Irlanda da Norte. O mesmo lugar que o Touro invade atrás de vacas para roubar.
A história se repete, disse uma vez um autor célebre. Primeiro como tragédia, depois como farsa.
Entre o passado e o presente
Esse conflito entre passado e futuro é um tema corrente no romance de Gilligan. Suas personagens, cada uma a sua própria maneira, estão presas em um cabo de guerra entre tradições defasadas e um progresso que talvez leve a nada.
O fato de viverem um momento de crise, em que escolher é inevitável, só a torna a escolha mais dolorosa. Ao mesmo tempo, isto dá ao seu livro, pessoal em escopo, as qualidades de uma história épica.
Em circunstâncias normais, é difícil saber quando vivemos um momento histórico. A trama da história é complexa, caótica demais para validar profecias. Apenas depois – às vezes, muito depois – de vividos certos acontecimentos se provam importantes.
Para Gilligan, o ano de 1996 é um desses momentos. Mais do que uma simples epidemia, a EEB de The Butchers é descrita como o empurrão de mãe-pássaro que força a Irlanda para fora do ninho.
1996 foi o ano da legalização do divórcio, três anos depois da descriminalização da homossexualidade. O ano do primeiro MacDonalds aberto em solo irlandês. O ano do fechamento da última lavanderia de Madalena: prisões, administradas pela Igreja Católica, em que lésbicas, prostitutas, mães solteiras e outras “mulheres perdidas” trabalhavam em regime escravo.
“Ah, a Irlanda moderna está a caminho, sem dúvida” reflete uma personagem “Mas ninguém os havia avisado de que viria com um preco muito moderno. ‘Uma nação de bichas e divorciadas.’”
Na prosa de Gilligan, essa e outras personagens soam tão patéticas quanto os druidas após a chegada do missionário São Patricío: os últimos bastiões da “velha Irlanda”, pagã e reacionária, diante das forças irreversíveis da modernidade.
Mas tal como São Patrício não derrotou completamente os Deuses Antigos – que sobreviveram, de uma forma ou de outra, no folclore – a “Irlanda moderna” também parece forçada a incorporar a tradição.
Sim, o passado foi o tempo da opressão da Igreja, das injustiças sociais, da miséria; dos problemas, enfim, cujos preços pagamos no presente. Mas nele também estão a memória dos problemas que já resolvemos – e dos erros que nos impediram de solucionar outros tantos.
Na ausência de profecias, essas esperiências são tudo o que temos para nos guiar no futuro.
[A]parentemente era mais fácil deixar as coisas morrerem – a Irlanda deixando o passado para trás e finalmente alcançando o resto do mundo. Mas a maneira como Úna pensava sobre isto, sem folclore e tradições, certamente a Irlanda não existia de verdade? Certamente poderia tão bem ser a Inglaterra ou a França ou qualquer outro lugar (tirando uma enxurrada infinita de chuva)? Então, tal como havia aqueles que preservavam a língua mãe do país e aqueles que guardavam todas as suas histórias nativas, havia aqueles como o seu pai que dedicavam suas vidas para manter suas crenças antigas.
É o passado, por meio da tradição milenar dos Açougueiros, que dá a Grá e sua filha Úna a coragem para curar as feridas de sua família. E é graças ao passado, na sua expressão mais poderosa – a mitologia – que Davey, filho de Fionn, o capanga do Touro, aprende o verdadeiro nome da vilania do magnata:
O rosto do Touro tinha a aparência de pura malícia. O cabelo castanho tinha a aparência inconfundível de um pente. E desta vez não era um conto antigo que vinha à língua de Davey,mas uma palavra antiga. Húbris. A arrogância do invencível; a confiança de que nada pode dar errado. Ele pensou em Dédalus mais uma vez, construindo um par de asas para que seu filho Ícaro pudesse voar para fora da prisão, apenas para o garoto tornar-se ávido demais e pairar muito perto do sol.
Nome esse que “mitos” contemporâneos, tão crentes como Ícaro na própria invencibilidade, fariam bem de conhecer.
Essa e outras referências – à mitologia grega, mas sobretudo à irlandesa – permeam o livro. Para a sorte do leitor, elas vêm acompanhadas de contexto.
Irlandesa expatriada (Gilligan é professora na Universidade de Birmingham), a autora sabe bem o estranhamento que nomes gaélicos causam em ouvidos estrangeiros. Seu romance introduz lendas antigas com a paciência de uma contadora de histórias, e o resultado é uma trama que nos acompanha pela mão.
Acompanha-nos, sim, mas nunca duvida de nossa inteligência. “Há tradições que devem viver e outras que deveriam ser abandonadas para encolher-se e morrer” diz uma personagem. Como diferenciar uma da outra é um mistério que Gilligan deixa a cargo do leitor.
Escritora talentosa, ela sabe que as perguntas mais importantes são justamente aquelas que não têm respostas claras.
Na medida em que Úna via o caos fervilhando, os fotógrafos escalando uns aos outros para conseguir a melhor versão da mesma foto, ela pensou nos homens perdendo seu sustento e sua dignidade, em pessoas perdendo sua fé e sua identidade. Ela se perguntou se havia algum lugar especial aonde estas coisas iam parar quando eram perdidas e se elas podiam ser encontradas de novo.
The Butchers não foi escrito com o covid-19 em mente. Ainda assim, ele encapsula perfeitamente o espírito dos últimos dois meses.
Em jornais, blogs e contas de Twitter internet afora, a única coisa mais constante que notícias da pandemia são previsões do que virá depois.
Alguns dizem que a austeridade será inevitável. Outros cantam a vitória de programas de assistencialismo. Globalistas comemoram o fortalecimento de intercâmbios. Nacionalistas vaticinam o fim da globalização. Defensores da ciência apostam que, daqui para a frente, a pesquisa será valorizada. Pessimistas acreditam que a pós-verdade já venceu. Há até quem acredite até que o vírus trará o fim da monogamia.
Como as personagens de Gilligan, o que todas essas vozes têm em comum é a necessidade de dar sentido a tempos excepcionais. Incertas do que virá pela frente, elas se refugiam nas suas próprias narrativas, causas políticas, mitologias pessoais.
Nada disso bastará para nos proteger de Ruto, o senhor da doença. Mas com sorte, como os mitos gaélicos de The Butchers, podem ser a bicada que nos empurrará para fora do ninho.
Com sorte, em direção a um futuro melhor.
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