Com jornais mundo afora reduzidos à mesma notícia, não é de se espantar que muitas pessoas estejam buscando na ficção uma resposta às questões do momento. Livros, filmes, séries e jogos sobre contágios nunca pareceram tão urgentes – ou, para alguns, tão perigosos.
No mundo dos games, um dos destaques é A Plague Tale: Innocence. Lançado ano passado, o jogo foi aclamado por público e crítica, a ponto de ter sido considerado “a mais poderosa representação da Peste Negra na mídia”.
Uma publicação elogiou seu retrato da França na Idade Média como “muito crível” e “autêntica”. O portal francês Millenium foi ainda mais longe, declarando-o “uma perfeita encarnação do nosso passado”.
O fascinante nesses comentários não é sua babação de ovo – o game faz por merecê-la – mas o fato de que A Plague Tale nunca se propôs a ser um game fidedigno. História de Amicia e Hugo, irmãos que buscam sobreviver à epidemia de 1348, e acabam na mira da Inquisição, o game inclui detalhes históricos ao lado de liberdades poéticas como profecias e conspirações de alquimistas.
Mesmo seu desastre-tema – a peste – não funciona como uma doença de verdade. Na vida real, a Peste Negra foi causada por uma bactéria transmitida por pulgas de ratos. No jogo, são os próprios ratos que devoram as pessoas, guiados pelos poderes telepáticos de um Flautista de Hamelin.
Produto de uma era pré-coronavírus, A Plague Tale parece duvidar de que um inimigo invisível possa ser apavorante.
“[Ser fiél à História] não é realmente nosso objetivo” disse em entrevista o diretor do jogo, que declarou ter se inspirado em fontes tão não-medievais quanto a peça Macbeth, pintores do séculos XVII e XVIII e até mesmo O Túmulo dos Vagalumes de Isao Takahata.
Tudo isso são ingredientes para um grande jogo. Mas seriam eles suficientes para fazer jus à Peste Negra?
Até que ponto a ficção histórica – para não dizer a fantasia – são capazes de dar conta de um dos momentos mais terríveis da história da humanidade?
Ser fiel versus parecer fiel
Essa é uma pergunta que historiadores estão cansados de ouvir. Nem por isso sua resposta é simples.
Entre aqueles que discutem se games “acertam” ou não suas representações do passado, há algumas palavras que ouvimos com frequência: acurácia e autenticidade.
Acurácia diz respeito ao quanto daquela obra é fiel ao que sabemos da história. As datas estão corretas? Esse modelo de armadura existiu? Os valores das personagens estão de acordo com sua época ou parecem vaiajantes do tempo jogados de gaiato em outra era?
Autenticidade, por outro lado, é aquela sensação de que estamos diante de uma janela para o passado. É o que sentimos quando uma obra histórica parece “certa”, ainda que não possamos apontar o dedo e dizer por quê. É aquele frio na barriga de quando visitamos um lugar antigo e pensamos: “setecentos anos atrás, outras pessoas estiveram onde eu estou hoje”.
Mesmo que o lugar em questão tenha sido destruído e reconstruído trocentas vezes e sequer fique no lugar original.
À princípio, pode parecer que acurária e autenticidade são apenas nomes diferentes para a mesma coisa. Afinal, para passar uma sensação crível do passado é necessário acertar nos detalhes. Correto?
Não necessariamente.
A ideia que nós, pessoas do presente, temos da Idade Média – ou de qualquer outra época – nem sempre tem a ver com o que esse período de fato foi. E como psicólogos estão cansados de nos lembrar, nós somos seres emocionais que julgamos o mundo à luz das nossas experiências. Em especial, temos o hábito de achar que a primeira impressão é a mais verdadeira, só porque veio antes das outras.
Se nós aprendemos que a história foi de um jeito (e gostarmos de acreditar naquilo) é muito difícil mudar de opinião. Mesmo que ela esteja 100% errada.
Um dos exemplos mais chocantes são as estátuas gregas e romanas. De tão acostumados que somos em vê-las como são hoje, com seu mármore exposto, parece errado pensar que um dia elas foram pintadas. Porém, é exatamente isto que dizem os arqueólogos.
Coisa parecida acontece com a Idade Média. Pense em um castelo, e é provável que a primeira imagem que lhe venha à mente seja a de um prédio cinzento, esburacado, cercado de corvos.
Esse, afinal, é o estado em que a maioria dessas fortalezas se encontra no dia de hoje. Não na Idade Média, em que tais prédios passavam por manutenção de rotina e eram decorados com tapeçarias e afrescos. A “Era das Trevas” era muito mais colorida do que imaginamos à primeira vista.
E estátuas e paredes são apenas a ponta do iceberg. Um game que tente recriar pessoas do passado com seus valores e ideias originais terá personagens com que ninguém conseguirá se identificar. Em tempos de diversity casting e produtores que se esforçam para não alienar consumidores, uma obra destas sequer sairia do papel.
Não é só que esse passado reconstituído parecerá chato ou repugnante. De tão acostumados que somos com o mundo como funciona hoje, é provável que ele nos soe falso.
O passado, como disse um escritor britânico é um país estrangeiro. E quanto mais retrocedemos, mais esquisito ele fica.
Usando a fantasia para explicar a realidade
Uma maneira de contornar esse problema é mentindo de propósito.
Pode parecer um absurdo, mas a aposta faz sentido. Esta “mentira”, se bem feita, serve para dar aos jogadores uma referência familiar, diminuindo o choque cultural. A ideia é inserir elementos que o criador (e, idealmente, o gamer) sabe que não são existiram, mas que são capazes de provocar uma resposta emocional.
É o que faz a série Assassin’s Creed com seus enredos conspiratórios dignos de livros de Dan Brown. Gamers dificilmente sairão do jogo achando que rixas milenares entre assassinos e templários são reais. Porém, essa trama hollywoodiana lhes permite visitar cidades do passado sem ter de lidar com as regras arbitrárias, costumes incompreensíveis e pessoas asquerosas de outras épocas. Goste ou não dos jogos, é inegável que suas reconstruções são incrivelmente acuradas, ao ponto de ter ganhado funções educacionais.
Crusader Kings 2, o celebrado game de estratégia da Paradox, fez a mesma coisa. Embora pareça uma simulação tenebrosamente complexa, o jogo torna sua bagagem história digerível com mecânicas que o transformam quase num spin-off de The Sims. Por meio de seus muitos patches e expansões, podemos criar nossas famílias, montar nossos castelos, viver grandes amores e até fazer pactos com o diabo.
O resultado fala por si só. Segundo o designer Henrik Fahraeus, o sucesso dessas mecânicas foi tamanho que ele se arrepende de ter gastado tanto tempo com os outros sistemas do jogo.
Se A Plague Tale pareceu tão autêntico é porque, como esses games, usou a fantasia histórica para grande efeito. Nas palavras de seu criador,
[P]ara nós, não há nada de sobrenatural em primeiro lugar. Ele pode ser interpretado como a visão de uma doença intangível vista pelos olhos de crianças. Elas criam uma fantasia porque estão apavoradas, perdidas, em choque. E, em meados do século XIV, ciência e crenças não eram as mesmas de hoje.
É um argumento difícil de rebater – sobretudo nos dias de hoje, quando certas pessoas, novamente assustadas por uma pandemia, apelam à crendices, teorias da conspiração e acusações sem sentido em vez de encarar os fatos diante de seus olhos.
Sacrifricando acurácia na medida certa, A Plague Tale passa uma autenticidade que nossos dias de isolamento social só torna mais poderosa.
As ruas desertas de suas fases, povoadas por soldados impondo toques de recolher, passa a lição importante de que o momento que vivemos, por mais traumático que seja, está longe de ser único.
Quarentenas, epidemias e mortes em massa de vulneráveis foram a ordem do dia para gerações inteiras de pessoas. E se hoje é tão difícil absorver o terror do Covid-19 é prova do quanto a humanidade progrediu no espaço de apenas poucos séculos.
Surpreendentemente para um jogo sobre a Peste Negra, A Plague Tale consegue falar de tudo isso sem cair no clichê de que a Idade Média teria sido uma “era das trevas”.
O período medieval que o estúdio Asobo nos apresenta é de fato sombrio, mas é também uma época de profundas mudanças, indústria e inventividade humana. Ambientados no início da Guerra dos Cem Anos, seus cenários trazem não só campos de batalha, mas também oficinas, forjas, enormes guindastes construindo balistas e catapultas. As catedrais que exploramos no curso do jogo são amedrontadoras, mas também obras-primas da arquitetura.
Mesmo o Grão Inquisidor, principal antagonista do jogo, está mais para um cientista maluco que um fanático religioso. Na sua sanha de controlar os ratos que transmitem a peste, ele recruta um exército de monges para auxiliá-los em sua pesquisa. Foi pela ação de religiosos como estes que, historicamente, nasceram as primeiras universidades.
A Plague Tale não é o mais fiel jogo sobre a Idade Média que existe. Ainda assim, na sua mistura singela de fantasia com verdade ele traz uma virtude que os Kingdom Come: Deliverances da vida, obcecados por “realismo”, passam longe de entregar: uma mensagem relevante para o presente.
Nada mal para um jogo que sequer se propôs a ser histórico.
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