17 de março. Dia de São Patrício. Em circunstâncias normais, essa seria a semana para sair a rua vestido de verde, celebrando o santo matador de serpentes que se tornou símbolo da Irlanda e da cultura de seu povo.
Infelizmente, os dias que vivemos estão longe de serem normais. A recente pandemia de covid-19 esvaziou pubs, desfiles e celebrações públicas. Na Irlanda, onde o 17 de Março era um feriado de proporções carnavalescas, moradores e turistas acordaram para ruas esvaziadas pela quarentena.
Gamers têm a oportunidade de celebrar o padroeiro da Irlanda de uma forma menos ortodoxa. Desenvolvido por irlandeses, Fadó é um RPG indie que mergulha nas lendas mais famosas da Ilha Esmeralda. Incluindo a história do santo favorito dos amantes de cerveja Guinness.
Paradoxalmente, é também uma amostra do que há de mais errado na forma como games abordam mitologia. E uma lição sobre o que podemos fazer diferente para reinventar contos antigos à era contemporânea.
Muito tempo atrás
Fadó, em irlandês, significa “muito tempo atrás”, embora seja usado com o sentido de “Era uma Vez” (“Fadó fadó” é um começo popular para contos de fada). Fiel ao título, o game de Fionn Keeley nos coloca nos pés de quatro dos mais famosos personagens da mitologia irlandesa.
Eles são Cú Chullain, guerreiro que defendeu o reino de Ulster das hordas da Rainha Medb; Finn Mac Cumhaill, líder do bando de guerreiros conhecidos como fenianos; Bríd, deusa que entrou para a tradição católica como Santa Brígida de Kildare, e, é claro, o missionário São Patrício na sua missão de catequizar a Irlanda.
Desenvolvido quase que artesanalmente por Fionn Keeley, o game é um exemplo do que há de mais precioso na cena indie contemporânea. Pouco tempo atrás, produzir jogos era um privilégio de poucos. Hoje, graças a softwares acessíveis (como o RPG Maker, com que Fadó foi criado), autores de países sem tradição em games adquiriram o poder de compartilhar com o mundo folclores até então desconhecidos.
Infelizmente, ele também é um fracasso – pelo menos, na tarefa de fazer essas lendas antigas parecerem interessantes aos dias de hoje.
A culpa, obviamente, não é da mitologia. Há bastante coisa nas lendas de Fadó que soam intrigantes mesmo hoje, séculos após terem sido escritas. Cú Chullain, quando nervoso, tem a habilidade de se transformar em um monstro como o Hulk. Finn Mac Cumhaill acidentalmente adquire a onisciência ao comer um peixe místico chamado o Salmão do Conhecimento. Bríd possuía uma capa mágica capaz de se estender por quilômetros a fio.
Jogos inteiros poderiam ser feitos em torno de cada um desses poderes. No game de Keeley, contudo, eles aparecem como meras cutscenes, fillers para combates formulaicos no melhor estilo JRPG.
Embora Keeley tenha elogiado a capacidade de lendas de se reinventarem em uma entrevista ao site RTÉ, Fadó é uma experiência linear e inofensiva, em que coisas acontecem porque hão de acontecer. Em alguns momentos, a jornada parece um jogo educacional, destinado a ensinar trívias sobre lendas irlandesas mais do que nos cativar com seu conteúdo.
A impressão que passa é que assina embaixo da resenha feito pelo site GeekIreland. “Como o jogo é baseado em lendas milenares” diz o portal “há pouco espaço para twists e reinvenções no seu enredo”.
Essa afirmação é absurda, mas reflete a maneira como alguns autores contemporâneos – entre eles, desenvolvedores de games – encaram mitos antigos. Fadó parece nos contar histórias sem parar para pensar em por que é importante que elas continuem a ser contadas.
Afinal, quem precisa de mitos no século XXI?
Não é como se na própria Irlanda os mitos que Fadó reconta não tivessem sido reimaginado incontáveis vezes.
No século XIX, por exemplo, os fenianos de Finn Mac Cumhall viraram um apelido do IRA na sua luta contra o governo britânico. Ao longo do século XX, “feniano” se tornou uma gíria para terrorista – e, por tabela, um termo pejorativo contra católicos irlandeses. É nesse sentido que a palavra aparece no canto dos Billy Boys, gangue proto-fascista enfrentada por Thomas Shelby na série Peaky Blinders.
Cú Chullain passou por um processo inverso. Com a separação entre República da Irlanda e Irlanda do Norte em 1921, Cú Chullain foi reinterpretado com um ícone protestante, defendendo Ulster do terrorismo católico.
As Troubles, conflito terrorista que afligiu a Irlanda entre os anos 1960 e 1990, não foi apenas um choque entre diferentes visões de mundo. Ele arregimentou até mesmo heróis da mitologia, batalhando em trincheiras opostas.
Nenhum desses conflitos aparece no jogo. Pelo contrário, é difícil encontrar qualquer conflito na mitologia de Fadó.
“Eu não tenho interesse algum em seu poder”, diz Patrício a Lóegaire, rei pagão da Irlanda, muito embora o cristianismo que estava prestes a introduzir na Irlanda mudaria para sempre a história da ilha.
“Nós já curtimos nosso lugar ao sol” diz o deus do mar, Mannanan Mac Lir, diante da notícia de que uma nova religião está por chegar “É apenas correto que saiamos do caminho”. O medo dos deuses de serem esquecidos por seus seguidores – que, nas mãos de Neil Gaiman, ganhou um livro inteiro – não tem espaço em Fadó.
A ideia de que esta mudança de paradigma possa ser reflexo de uma mudança maior na sociedade que conta estas histórias sequer é mencionada. Os quatro contos de Fadó (Cú Chullain, Finn, Bríd e Patrício) podem ser jogados simultaneamente, e é inclusive possível saltar de um herói para o outro a meia jogatina. A mitologia, para o game, existe fora do tempo.
O problema é que nós, humanos de carne e osso, existimos obrigatoriamente dentro de nossas próprias épocas. Histórias que não levam isto em consideração estão fadadas a ser apenas histórias: a serem escutadas com curiosidade, talvez, mas invariavelmente esquecidas.
A função mais nobre da cultura pop
Fadó é uma história cautelar àqueles que desejam criar games sobre folclores regionais. E uma dica importante àqueles que se perguntam porque a mitologia X ou Y não tem o mesmo destaque no entretenimento
Não existe, no fundo, mitologia “melhor” ou “pior” que outra – por mais que fanboys de um ou outro panteão gostem de argumentar ao contrário. O que existe são histórias que ressonam mais ou menos com as aflições, esperanças, dúvidas e traumas que cada um de nós sente. Fazer a ponte entre os estes mitos antigos e os percalços da nossa época é uma das mais funções mais nobres da cultura pop.
A valquíria da mitologia nórdica pouco diz respeito a nós; a da Marvel, uma heroína próxima dos jovens que lêem suas histórias. A Princesa Kaguya poderia ser apenas uma lenda da Era Heian. Nas mãos de Isao Takahata, tornou-se uma fábula feminista.
Séculos passam, valores mudam, civilizações inteiras surgem e retornam ao pó. Mas seres humanos continuam os mesmos, nascendo e morrendo, sofrendo – e inflingindo – o pior e melhor que nossa natureza tem a oferecer.
Enquanto a espécie humana for posta à prova por inimigos conhecidos, haverá espaço para histórias antigas. Em tempos de pandemia, uma das pragas mais clássicas que nossa civilização já enfrentou, essa é uma lição que não deveríamos esquecer.
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