Não é nenhum segredo que videogames são capazes de contar boas histórias.
Todos que já passaram algum tempo atrás de um controle são capazes de se lembrar de um momento em que vibraram rm triunfo – ou se encolheram no chão, chocados pelo destino de personagens virtuais como se fossem velhos amigos.
Mesmo assim, combinar boas histórias com games interessantes continua um desafio. Não são poucos os jogos que parecem filmes interativos, picotando cutscenes entre vinhetas de gameplay inseridos de última hora para justificar um lançamento na Steam.
De certa forma, a ideia de um “autor” responsável por contar uma história parece incompatível com a essência dos games, como playgrounds que prometem nos deixar fazer o que quisermos, na hora em que quisermos.
E quanto mais “gamístico” um game for, mais difícil fica juntar essas duas obrigações contraditórias.
Esse é o caso dos roguelites, um dos mais peculiares, desafiadores e amados gêneros da mídia. Inspirados no clássico Rogue, roguelites são caracterizados por cenários procedurais, morte permanente e, na sua maioria, mecânicas de hack n’slash ou de exploração. O gênero ganhou um boost de popularidade a partir da Era de Ouro indie, com clássicos como Spelunky, FTL e The Binding of Isaac.
O motivo? Numa cena AAA marcada por jogos seguros, “nos trilhos”, direcionada ao público mais amplo possível, esses games arriscavam ser abertos, imprevisíveis e sadicamente difíceis.
Como eu escrevi em um outro artigo, roguelites, de certa forma, são games no seu nível mais “puro”. Cutscenes e narrações são mínimas. Os cenários e inimigos que lança contra nós estão lá não pela vontade de um Autor, mas pela indiferença de um RNG.
O que essa pureza não faz muito bem é contar histórias – pelo menos, não no sentido tradicional, mais ou menos linear que viemos a esperar de games como The Witcher ou Mass Effect. Parte disso, sem dúvida, tem a ver com a necessidade de nos matar, muitas e muitas vezes. Elemento crucial – e obrigatório – de qualquer roguelite que se preze.
Não é impossível se emocionar com uma história em que somos forçados a recomeçar do zero a cada passo em falso, nas peles de um novo protagonista que, em questão de minutos, estará morto também. Mas, convenhamos, fica muito mais difícil.
Esses jogos nos emocionam porque conseguem nos convencer que as personagens na nossa tela são mais que um conjunto de pixels. São pessoas que, nas 40h que levamos para chegar aos créditos, aprendemos a entender, torcer por – e, às vezes, amar – como nossos amigos de verdade.
Esse ano, dois jogos arriscaram desafiar esse paradigma, combinando a liberdade dos roguelites com histórias tão poderosas quanto o melhor que a mídia tem a oferecer. Estes games pouco têm em comum além de dividirem o mesmo rótulo, mas conseguem, cada um a sua maneira, nos forçar a rever o que esperamos da mídia.
Crying Suns
Criado pela francesa Alt Shift, Crying Suns é um roguelite de exploração espacial que acerta as mesmas notas de FTL. A diferença está na paleta de cor. E não digo apenas literalmente.
Inspirado em Duna de Frank Herbert e na saga Fundação de Isaac Asimov, Crying Suns é uma experiência sombria e cerebral, agarrado a uma narrativa tão melancólica quanto seu universo silencioso.
Nosso protagonista é o capitão Idaho, oficial a serviço de um império que colonizou toda a galáxia. Ou, pelo menos, seu clone.
Começamos o jogo em uma estação de clonagem nos confins do espaço, despertados de um pod por um robô que nos convoca a uma missão. A tecnologia que mantinha o império funcionando misteriosamente “desligou”, levando toda a galáxia ao colapso. E caberá a nós, cópias do melhor comandante que a humanidade já teve, descobrir o que aconteceu.
É com esse gimmick que o jogo incorpore, de uma maneira elegante, o permadeath na sua narrativa. Cada vez que morremos em uma das muitas batalhas, acordamos de um novo pod: um novo clone pronto a tomar a tocha do antigo capitão Idaho.
Toda nossa tripulação, na verdade, está preservada na estação – e, com ela, suas memórias. Diferente dos redshirts de FTL, de que nos despedimos mais rápido do que levamos para decorar seus nomes, estes são soldados com que exploramos e lutamos, celebramos as vitórias e sofremos as derrotas. E que, ao final do jogo, passamos a respeitar como companheiros de uma mesma história trágica.
Nossas mortes também têm um impacto nos NPCs que encontramos ao longo de nossa jornada. Conforme batalhamos nosso caminho até a capital do império, encontramos velhos inimigos e novos rivais, que servem de chefões às fases do game. Longe de simples antagonistas, eles trazem pistas sobre o futuro do império – e o passado difícil que o próprio Idaho esconde no armário.
Ao contrário de nós, nenhuma dessas personagens possuem vidas infinitas: uma vez que as derrotemos, elas morrem para valer. Se precisarmos jogar novamente a fase por conta do permadeath, quem encontramos são outros NPCs, em alguns casos tão importantes quantos os primeiros, com coisas únicas a dizer sobre a narrativa que nos une.
É preciso morrer – e fracassar – para apreciar tudo o que o jogo tem a nos dizer.
Children of Morta
Children of Morta, do estúdio Dead Mage, é menos ousado no seu flerte com o game over. O que ele entrega de convencional, contudo, ele compensa com gameplay impecável – e uma das narrativas mais estranhamente fofas de qualquer hack n’slash.
O jogo acompanha os Bergsons, família de aventureiros que há gerações enfrenta as bestas do Monte Morta. Um dia, uma corrupção misteriosa começa a se espalhar sobre o povoado. Caberá aos Bergson espanarem a poeira de suas armas e cumprirem seu dever como defensores da humanidade.
Roguelite em essência, Children of Morta, ao mesmo tempo, é um jogo que carrega suas credenciais narrativas na manga. Como os trailers deixam claro, ele é um jogo sobre amor.
Esqueletos, goblins e lagartos gigantes tombam perante nossa espada com o passar das fases. Estes reveses, contudo, são apenas a perfumaria de um conflito maior: o desafio de uma família de se manter unida quando tudo conspira para separá-la.
Os primos Mark e Joey nutrem uma rivalidade. Ben, o tio, amarga a lembrança de uma esposa morta e uma perna ruim que o impede de lutar. Mary, a mãe, está grávida, e teme que a proximidade à corrupção de morta leve seu filho por nascer a um lugar de onde ela não poderá salvá-lo.
As lutas dos Bergson podem ser fantásticas, mas eles refletem o espírito, senão a substância, de tantas batalhas diárias que famílias enfrentam no mundo real: dificuldades financeiras, uma gravidez inesperada, a morte de uma matriarca ou de um bêbe prematuro.
Não é de se espantar que o game tenha conquistado o interesse da publisher polonesa 11 Bit Studio, responsável por This War of Mine. Se aquele jogo deu um rosto humano à guerra – e, com isso, criticou a beligerância sádica de tantos jogos de combate – Children of Morta é o contraponto perfeito às namoradas em geladeiras que games vergonhosamente abusam sobre o pretexto de retratar “conflitos familiares”.
Entre o dado e a pena
O acesso à criação de games nunca foi tão democratizado. Se antes desenvolvimento era um talento de poucos, hoje qualquer um com um pouco de criatividade (e um tantitnho de programação) pode trazer suas próprias aventuras à vida.
Se por um lado isso culmina num mercado incrivelmente diverso, por outro fica mais difícil saber para que lado a mídia está caminhando.
Longe estão os dias em que meia dúzia de produtoras ditava o que chegaria ou não aos gamers. E certos jogos contemporâneos parecem se dirigir a caminhos tão opostos que mal parecem parte da mesma mídia. É o caso dos CRPGs ocidentais, que parecem, de um lado, ter cedido à gaiola dourada dos blockbusters AAA ; de outro, regredido à simplicidade das visual novels.
Crying Suns e Children of Morta parecem se oferecer de ponte a essas fanbases fraturadas. Eles unem o apelo emocional daqueles que jogam pela história com o masoquismo dos fãs de roguelites; ,a vibe retrô da pixel art com a alta resolução exigida pelos gamers mais moderninhos.
Nenhum dos jogos é perfeito. Crying Suns possui um número pequeno demais de encontros randômicos – o beijo da morte para roguelites, que dependem de mundos procedurais, imprevisíveis, para manter o desafio.
É provável que você decore a melhor resposta para cada desenlace muito antes das 20 e poucas horas necessárias para se chegar até o fim. Por esta e por outras, a PC Gamer o considerou um ótimo jogo de estratégia, mas um péssimo roguelike.
Children of Morta se sai um pouco melhor, mas isso porque ele “rouba”. Tal como sua “pixel art”, que usa animações complexas e efeitos de luz para atingir um visual que nenhum jogo “retrô” teria, seu gameplay é menos avant-garde do que nos faz acreditar à primeira vista.
Um santuário nas profundezas da casa dos Bergson protege a família de perigos letais. Não há “morte” no sentido roguelite-ano do termo: quando somos derrotados, um santuário nos teleporta de volta à segurança de casa. E, com ele, todo nosso progresso.
Todos os colecionáveis e quest items com que topamos aparecem na nossa casa quando retornamos do dungeon, independente do resultado da nossa missão. Encontros únicos e side quests tampouco são perdidas. A única coisa que os jogo nos tira são power up temporários – mas, até aí, estes iriam embora de qualquer forma, vitória ou derrota.
Pode ser cri-cri apontar defeitos em jogos que acertam tanto em coisas que outros games sistematicamente erram. Mas o próprio fato de estarmos fazendo tais críticas é sinal de como os jogos evoluímos – e como nós próprios, gamers, nos tornamos mzixexigentes.
Boas histórias, como bom gameplay, tem um quê de viciante. Uma vez que nos acostumamos a dias improdutivos no trabalho, pensando na trajetória de personagens que voltaremos a encarnar quando voltarmos à casa, nos contentamos com nada menos que isto.
Separados, cada uma dessas coisas – o “dado” do gameplay e a “pena” da narrativa – são capazes de muito. Juntos, talvez sejam capazes de tudo. Inclusive, de inspirar o futuro dos games.
Artigo interessante e informativo, gostei 🙂
Outro roguelite que apresenta história elaborada é Hades, da Supergiant Games (produtora que é conhecida justamente por produzir narrativas elaboradas). No jogo, controlamos Zagreus, filho de Hades, que tenta escapar do Submundo em uma aventura de ação e dungeon crawling em que cada partida há mapas e habilidades diferentes. A história se desenrola conforme vamos morrendo, e aos poucos vamos entendendo as motivações de cada personagem e do próprio Zagreus. Achei que o recurso ficou bem implementado, principalmente por causa da grande quantidade de diálogos.
Gostei (e muito) do artigo. É sempre muitíssimo bom ver roguelite/like saindo das sombras do underground-indie e vendo a luz do sol. Outro do estilo que conta muito bem suas histórias é o “Enter The Gungeon”. Inclusive muito interessante.