Pense em algum jogo que tenha te emocionado, e é provável que não é apenas do gameplay que você se lembrará. Jogos têm muitos atrativos. Alguns deles só ganham vida com a batuta de um maestro.
Às vezes, são músicas que fazem parte da mecânica, como as melodias de Zelda: Ocarina do Tempo. Às vezes, são trilhas bombásticas como as da série Final Fantasy ou Nier: Automata. Em outras, são “palhinhas” das próprias personagens, como a canção de Leliana em Dragon Age: Origins ou o dueto de Booker e Elizabeth em Bioshock: Infinite.
Seja qual for a melodia que nos faça arrepiar, é inegável que os games não seriam os mesmos sem elas. O que muitos fãs não imaginam é que existe toda uma ciência – quando não feitiçaria – por trás das trilhas que tanto amamos. Que afeta não apenas o que ouvimos, mas também o que vemos, sentimos – e até pensamos.
Quem conta é Winnifred Phillips, compositora das trilhas para franquias como God of War, Assassin’s Creed e Little Big Planet, que coleciona prêmios por suas músicas e escritos. No livro A Composer’s Guide to Game Music, ela destrincha o que faz de instrumentos e joysticks parceiros tão perfeitos um para o outro:
1) A música pode fazer o tempo “passar” mais rápido… ou mais devagar
Você já teve a impressão de gastar horas em uma jogatina para descobrir que apenas 20 minutos haviam se passado? Ou, pelo contrário, ligar o console para completar algumas side-quests e descobrir, alguns níveis depois, que a noite já caiu?
Para a surpresa de ninguém que já sentiu as horas voarem durante um show, a música afeta nossa percepção de tempo.
Segundo um estudo, músicas escritas em tons maiores fazem ouvintes perceberem a passagem do tempo de forma mais lenta, enquanto que as escritas em tons menores dão a impressão de que os minutos passam mais rápido. Outros estudos encontraram efeitos parecidos relacionados ao volume, andamento e complexidade das músicas. `
Essa propriedade é fundamental para um game como Sayonara Wild Hearts, “álbum interativo” lançado para consoles que coleciona elogios desde o seu lançamento em outubro.
Com apenas 1h de duração, o game precisa convencer as pessoas de que vale a pena comprá-lo em vez de um jogo mais longo. Para alguns críticos, pelo menos, seu híbrido de música e gameplay foi tão efetivo que transformou essa hora em uma das melhores de suas vidas.
Opinião similar têm os fãs de GRIS, game singelo com pouco mais de 3h de duração, que compensa a simplicidade de seus quebra-cabeças com uma trilha de arrancar lágrimas.
O inverso vale para jogos muito longos, que podem afugentar quem tem pouca paciência para atividades repetidas. Ter de revirar cada pedra em uma sandbox da Ubisoft, ou morrer trocentas vezes diante de um chefão num roguelite não é o programa de fim de semana mais agradável para quem é adulto e tem horas limitadas de tempo livre. Uma trilha sonora eficiente, porém, nos faz mergulhar nas tarefas mais meniais sem que percebamos o tempo passar.
Quem já perdeu dezenas de horas mineirando irídio em Mass Effect 2 pelo puro prazer de escutar a música do Galaxy Map sabe bem do que estou falando.
2) A música afeta a forma como enxergamos
Que a música mude nossa percepção do tempo é fácil de entender. Música, afinal, nada mais é que notas e pausas espalhadas pelo tempo.
Menos óbvio é saber que ela muda também o que nossos olhos são capazes de ver.
Um estudo da Universidade de Groningen, citado por Phillips, colocou pessoas diante de imagens de rostos escondidas por ruído e pediu a elas que identificassem o que viam. Parte das pessoas cumpriu a tarefa ouvindo música triste; a outra metade, música alegre.
Os pesquisadores descobriram que aqueles que escutavam música triste identificaram rostos tristes com mais facilidade. Música alegre, por outro lado, tinha um efeito parecido com rostos felizes. Alguns dos participantes foram tocados de tal forma pela música que disseram ver rostos felizes ou tristes mesmo onde não existiam rostos!
Nier: Automata, possuidor de uma das trilhas mais marcantes dos últimos tempos, é um exemplo do que games são capazes quando colocam isso em prática.
Logo de início, o jogo nos lança em uma cidade em ruínas, sem uma alma sapiente exceto inimigos que querem nos matar. É nosso primeiro contato com o que restou da Terra no futuro apocalíptico do jogo. Fiel à imagem de desolação, a trilha que nos embala é melancólica e sutil. Contudo, assim que descobrimos o acampamento da Anemone – nossos primeiros aliados vivos no planeta – a música se torna mais vigorosa e bombástica, até explodir em um vocal esperançoso.
O que era o esqueleto de uma cidade morta se torna o primeiro estágio de uma jornada épica.
Independente da emoção que um jogo quer despertar, a música também afeta o quanto do jogo nós somos capazes de ver ao mesmo tempo.
Outro estudo citado por Phillips revelou que estar de bom humor aumenta o campo de visão de uma pessoa, enquanto que emoções negativas tornam nossa vista mais restrita.
É uma estratégia usada com frequência em jogos de terror. Ao nos bombardear com música tensa, estes games nos deixam estressados, o que reduz nossa visão periférica. E nos deixa mais vulneráveis a todo tipo de monstro, zumbi ou cachorro assassino prestes a nos emboscar.
A infame cena dos cachorros do primeiro Resident Evil, um dos jumpscares mais famosos da história dos games, é a prova viva de que essa ideia funciona.
3) A música afeta que mensagem tiramos das histórias
De todas as coisas que a música poderia influenciar, histórias contadas não parecem estar muito altas na lista. Livros, afinal de contas, não precisam de trilha sonora. Romeu e Julieta não se torna menos trágico se o lermos escutando Kpop (possivelmente, torna-se ainda mais trágico, se bem que não pelos mesmos motivos).
Phillips discorda. E traz argumentos para provar seu ponto.
A compositora cita um estudo da Universidade Hildesheim, na Alemanha que sugere que a música muda a forma como interpretamos o enredo de uma obra.
Os pesquisadores gravaram um curta que acabava em um cliffhanger e o combinaram com cinco trilhas sonoras de estilos e humores diferentes. Cada participante teve de assistir apenas a uma das versões e dar sua opinião sobre a motivação das personagens e o que aconteceria depois.
Ao compararem as respostas dos diferentes grupos, os pesquisadores descobrirem que elas eram “batiam” com o humor da música. Ouvir um ou outro tipo de trilha sonora fez com que as pessoas avaliassem as motivações das personagens de forma distinta. Não só isto, a música também afetou suas previsões sobre o provável final do filme.
Até que ponto a trilha de um determinado jogo não nos faz entender a história de uma forma ou de outra? Nos faz tomar essa personagem como heroína ou aquela outra como vilã? É difícil responder a essa questão, pois raramente temos a oportunidade de jogar uma mesma cena com várias trilhas diferentes.
Philips, porém, dá alguns exemplos de como essa “manipulação musical” geralmente acontece. O mais comum é dar temas específicos a personagens ou lugares e repeti-los ao longo dos jogo. Isto permite que sua atenção seja “guiada” ao que os autores querem dizer.
Em Mass Effect 3, por exemplo, o reencontro de Shepard e sua ex-companheira, Miranda Lawson, é embalado pela faixa Reflections, trilha da cena de romance de Mass Effect 2. Associar a personagem a esta música tem o efeito de provocar uma sensação de carinho e nostalgia, independente do jogador ter ou não feito perseguido um romance com Miranda no jogo anterior – ou mesmo gostar dela para início de conversa.
Witcher 3 faz algo similar com o tema Kaer Morhen, ouvido pela primeira vez no tutorial, ambientado na fortaleza ancestral dos witchers. Esta fortaleza reaparece mais à frente, não mais como um castelo imponente, mas uma triste ruína. O tema também retorna em uma versão alternativa, tão dilapidada quanto as paredes de Kaer Morhen.
Se rever a casa de Geralt neste estado já seria triste por si só, a música faz da visita uma experiência devastadora, preparando-nos para um episódio trágico que, logo descobrimos, terá na fortaleza o seu palco.
4) Músicas despertam empatia como se fossem pessoas de verdade.
Quase todos nós temos uma música do peito. Nem por isso diríamos que gostamos dela da mesma forma como gostamos do nosso namorado ou de nossa mãe. Coisas inanimadas são uma coisa; pessoas são outra, completamente diferente.
Para Phillips, contudo, a diferença pode ser mais sutil do que imaginamos.
Um estudo publicado na revista Music Perception descobriu que a música emociona mesmo pessoas que têm dificuldade em expressar ou reconhecer sentimentos, como os que fazem parte do espectro autista. A hipótese dos autores é que, ao ouvir uma música, nós subconscientemente a imaginamos como uma “persona” por quem sentimentos empatia, como se fosse outro ser humano.
Isso é importante para games porque empatia, junto com atmosfera, é um dos requisitos para se chegar à presença virtual, um estado de completa imersão em que o mundo exterior parece sumir, e sentimos-nos, literalmente, transportados ao jogo.
Se você já chegou nesse estágio na sua experiência com algum game, é muito provável que tenha sido embalado por alguma música. Sejam os temas icônicos de Chrono Trigger ou a canção de Mordin em Mass Effect 3, prestes a dar a vida para destruir o genophage.
E talvez os gráficos, nomes e mesmo tramas por trás desses momentos um dia sumam de nossa memória. Mas a música, provavelmente, continuará. E nós trará calafrios cada vez que a escutarmos por acidente.
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