“Pós-verdade” é o nome que alguns dão a uma falta de confiança em relação ao que é verdadeiro – ou mesmo, à ideia de que uma única “verdade” existe de fato.

O termo foi eleito a palavra do ano de 2016 pelo dicionário Oxford da língua inglesa. A escolha dispensa explicações. Poucos acontecimentos de memória recente despertaram tanta atenção às fake news quanto o referendo do Brexit e a eleição de Trump (e de todos os populistas que se seguiram).

Era de se esperar que Philip Pullmann, crítico ferrenho do Brexit e autor de A Bússola Dourada, tivesse uma palavra ou duas a dizer a respeito. A “bússola” de seu universo fantástico, afinal de contas, é um dispositivo chamada aletiômetro – do grego alétheia, “verdade”- cuja função é responder a qualquer pergunta que lhe seja feita.

Há, porém, sentido num aletiômetro numa época em que ninguém se importa com a verdade? O que uma geração que vive na Caverna de Platão de grupos de whatsapp e panelas de Facebook tem a ganhar com uma história sobre o conhecimento do bem e do mal?

É o que pergunta seu último livro, The Secret Commonwealth. O mais angustiante – e, talvez, melhor – romance a nascer da série Fronteiras do Universo.

Sinopse

The Secret Commonwealth se passa sete anos depois dos eventos de A Luneta Âmbar, último livro da trilogia que introduziu daemons, Ursos de Armadura e Paraíso Perdido à imaginação de leitores mundo afora. Nossa protagonista é novamente Lyra Língua de Prata (née Belacqua), agora uma estudante de vinte anos no colégio St. Sophia em Oxford.

Àqueles habituados ao universo de Pullman o cenário do romance soará imediatamente familiar. A morte da Autoridade pouco fez para reduzir o poder do Magistério, que continua a controlar o planeta com sua terrível polícia política, o Tribunal Consistorial de Disciplina (TCD).  Em sua capital em Geneva, um brilhante articulador chamado Marcel Delamere tenta reconstruir com lábia política o que Metatron e seus anjos conquistaram com força bruta. Seu objetivo é dominar a produção de um misterioso óleo de rosas que permitiria às pessoas enxergar o Pó, manifestação do Pecado Original que o Magistério tem como missão destruir.

Lyra, porém, tem problemas mais imediatos. Desde que se separaram após sua visita ao mundo dos mortos, ela e seu daemon Pantalaimon parecem estar perdendo a sintonia. O fascínio de Lyra por autores extremistas e o estresse de uma emergência pessoal levam o daemon a abandonar sua cara-metade. Desesperada por ser ver “incompleta” – e envolvida de gaiato nas tramoias do Magistério – Lyra decide viajar à Ásia Central em busca de uma cidade aonde, dizem as lendas, daemons sem donos vão para viver.

Felizmente, Lyra tem pelo menos um aliado. Malcolm Polstead, protagonista de La Belle Sauvageé agora um historiador de Oxford e membro da Oakley Street, organização clandestina que combate a opressão do Magistério. Ao saber que sua protegida corre perigo, ele segue em seu encalço na esperança de encontrá-la antes do TCD.

Com 637 páginas, The Secret Commonwealth é um livro mais longo que sua prequel La Belle Sauvage, mas também mais ágil, em enredo tanto quanto em ideias. Escrito para aqueles que cresceram lendo As Fronteiras no Universo, The Secret Commonwealth é definitivamente um livro para adultos, não só em conteúdo – que inclui violência gráfica e uma tentativa de estupro coletivo – quanto na maturidade de sua discussão moral.

Se A Bússola Dourada e suas sequências foram uma crítica apaixonada contra a religião organizada, The Secret Commonwealth é uma reflexão cuidadosa – e temerosa – sobre as cabeças de hidra que brotam quando a fé na razão é levada longe demais.

Os órfãos da Autoridade

Em The Secret Commonwealth, essa fé é representada por dois livros que se tornam populares após os eventos de A Luneta Âmbar. É ao lê-los – e ficar obcecada com seu conteúdo – que Lyra cria o primeiro atrito que levará seu daemon a abandoná-la.

O primeiro é Os Hipercorásmios, romance best-seller sobre um jovem que desejava matar Deus:

 “Como tantas outras pessoas, Lyra fora enfeitiçada, hipnotizada pela força da história e sentiu a cabeça zunir com as marteladas da denúncia do protagonista contra tudo e todos que ficavam no caminho da razão pura. Até mesmo sua missão para encontrar Deus e matá-lo era expressada em termos da mais feroz racionalidade: era irracional que tal ser pudesse existir, e racional eliminá-lo. De linguagem figurativa, de metáfora ou comparação não havia qualquer traço. No final do romance, enquanto o herói olhava das montanhas o nascer do sol, que nas mãos de outro escritor poderiam representar a aurora de uma nova era das luzes, livre de superstição e escuridão, o narrador desviava de simbolismos daquela espécie com repulsa. A última frase dizia “Não era nada mais do que era”.

Aquela frase era uma espécie de pedra angular do pensamento progressista entre os pares de Lyra. Ela havia se tornado o termo da moda para ridicularizar qualquer reação emocional excessiva ou qualquer tentativa de encontrar sentido em alguma coisa que acontecera ou qualquer argumento que não podia ser justificado com a razão.

Com mais de 900 páginas e “uma rigidez intransigente de estilo”, Os Hipercorásmios é uma referência óbvia a A Revolta de Atlas, obra mais conhecida da escritora Ayn Rand. Criadora de uma filosofia conhecida como objetivismo, Rand foi uma defensora apaixonada das liberdades individuais, da busca pelo interesse próprio e da rejeição de tudo o que fosse emocional ou subjetivo.

Na política, seu pensamento inspirou ideologias favoráveis à meritocracia e ao minarquismo, e contrárias à caridade e à assistência social.

“É uma história engajante que encoraja pessoas a não se sentirem mal por serem egoístas” diz Malcolm Polstead, em uma descrição que poderia estampar a orelha de A Revolta de Atlas. Não é uma coincidência que o autor de Os Hopercorásmios se chame Gottfried Brande, referência tanto à Rand quanto ao seu principal discípulo (e eventual amante), Nathaniel Branden.

Ayn Rand (primeira à direita) e Nathaniel Branden (segundo à direita) em 1953. Fonte: New York Times

O oponente intelectual de Brande é Simon Talbot, um pensador que acredita que a realidade objetiva é uma ilusão:

Simon Talbot era um filósofo de Oxford cujo livro mais recente era muito discutido na universidade. Enquanto que Os Hipercorásmios era um sucesso popular desmerecido como tolice por críticos e lido sobretudo pelos mais jovens, O Enganador Constante era um favorito entre experts literários, que elogiavam a elegância de estilo e a perspicácia jocosa. Talbot era um cético radical, a quem verdade e até a realidade eram, como o arco-íris, epifenômenos sem nenhum sentido ulterior. No charme prateado de sua prosa, tudo o que era sólido fluía e corria e arrebentava como mercúrio derramando de um barômetro.

Se Brande é uma referência a Rand, Talbot é uma caricatura do pós-modernismo, nome genérico para uma série de correntes que ganharam popularidade a partir dos anos 1960. O que têm em comum é a crença de que o mundo exterior está fora do nosso alcance, pois ele é filtrado pelos nossos sentimentos, que são parciais e falíveis.

Todos nós temos preferências, valores e preconceitos que afetam como enxergamos o mundo. Mais do que isso, todos nós dependemos da linguagem para nos expressar e comunicar com os outros, e a linguagem varia de povo para povo, quando não de pessoa para pessoa. A “verdade” de um cientista alemão do século XXI não é a mesma “verdade” de um pastor de ovelhas na Mongólia do XIX. E todas são igualmente válidas.

Se Rand e seus sucessores deram lenha ao realismo mais bruto, o pós-modernismo, na política, inspirou ideologias focadas na crítica às construções sociais, na hostilidade a noções como “essência” ou “natureza” humana e no controle da linguagem para fins políticos.

Como Lyra eventualmente descobre, essas duas correntes partem de pontos diferentes, mas chegam ao mesmíssimo lugar: um ceticismo que reduz tudo o que pode à razão e nega aquilo que não é capaz de reduzir. Mesmo que estas coisaa sejam o próprio Pantalaimon, sem o qual ela não é capaz de viver.

Lyra se flagrou continuando a ler, embora sua vontade fosse negar cada palavra. Talbot tinha uma explicação para tudo. O fato de que os daemons das crianças pareciam mudar de forma, por exemplo, era não mais que uma representação da grande maleabilidade da mente infantil e juvenil. Que eles eram geralmente, mas nem sempre, opostos em sexo a sua pessoa era meramente uma projeção inconsciente do senso de incompletude sentido pelo sujeito humano: ansiando pelo seu inverso, a mente encarnava o papel complementar de gênero em uma criatura sexualmente não ameaçadora, que poderia cumprir tal papel sem evocar desejo sexual ou inveja. A inabilidade do daemon de se afastar da pessoa era simplesmente a expressão psicológica de um sentimento de unidade e integridade. E daí por diante.

Pullman reconhece que o realismo sem freios e o relativismo absoluto, por mais que seus dogmas sejam opostos – e as ideologias que inspiraram, inimigas – são frutos de uma mesma árvore envenenada.

Um acredita que não existem vieses, então propaga preconceitos que toma por verdades absolutas. Outro, que tudo são vieses e, justamente por isso, não devemos nos preocupar em separar a verdade do preconceito.

Um nutre um fascínio autoritário com pessoas excepcionais que estão, segundo eles, destinados a reger o mundo. Outro tenta colocá-lo em prática com sectarismo acadêmico, jargão incompreensível e uma cultura de cancelamento contra todos que os ameacem.

Um “pensa que pode fazer a verdade desaparecer chacoalhando seus paradoxos por aí”, diz Pantalaimon a Lyra durante sua briga. Outro “pensa que pode fazer [o mesmo]  com uma negação obstinada”:

Ela colocou O Enganador Constante de lado e pensou no outro livro que havia deixado Pan nervoso, o romance Os Hipercorásmios de Gottfried Brande. Pela primeira vez ela se deu conta que os dois escritores tinham mais em comum do que ela imaginara. A famosa frase que terminava Os Hipercorásmios – “Não era nada mais do que era” – era construída exatamente como uma frase de Talbot. Por que ela não percebera isto antes?

No mundo de The Secret Commonwealth, o sucesso desses dois pensadores não é apenas um fenômeno editorial. Tudo se trata de um plano do Magistério para eliminar sua oposição, destruindo aquilo que ela tem de mais poderoso: o discernimento.

Nas palavras de Marcel Delamare, aspirante a papa (e ditador do mundo):

Revelar a verdade da forma como eu descrevi não funcionaria. Existiam muitos hábitos, modos de pensar, instituições comprometidos com a maneira como as coisas sempre foram. A verdade seria varrida de imediato. Em vez disso, nós deveríamos delicada e sutilmente minar a idea de que verdade e fatos são possíveis em primeiro lugar. Uma vez que as pessoas se tornarem incrédulas da verdade de qualquer coisa, todos os tipos de coisas se abrirão para nós.

Nosso mundo, felizmente, não possui um Magistério. Mas nós, também, vivemos em uma época de pequenos Delamares, em que relativismos e dogmatismos se alimentam mutuamente. Muitas vezes, como no caso de Lyra, sem que percebamos até ser tarde demais.

De onde alguns de meus colegas de profissão, historiadores, defenderem que “não há hierarquia de conhecimento” e depois se surpreenderem quando negadores do Holocausto ou dos crimes da Ditadura saem de suas frestas nos confins da web. Como se não fosse óbvio que ao abrir mão dos critérios que diferenciam a boa informação da ruim faríamos proliferar absurdos odiosos.

De onde, também, os radicais que nos consideram “pouco objetivos” por conta dos nossos “vieses ideológicos” defenderem, no mesmo fôlego, o aparelhamento do ensino mediante dogmas religiosos.

E de onde, fechando o círculo, acadêmicos que respondem a essas críticas dizendo que “ninguém é objetivo de verdade, pois ‘objetividade’ não existe” Como se lançar um julgamento destes a militantes que equiparam o Criacionismo ao Darwinismo não fosse o mesmo que derramar gasolina sobre um prédio que já queima.

Se nada existe de verdade, a “verdade” em si é reduzida à política, no seu sentido mais cru. Ela se torna apenas uma ideia qualquer que conseguiu se impor sobre as outras. E que pode, com a ajuda de uma força ainda maior, ser rebaixada a uma mentira.

Num cenário como esse, ganham apenas os tiranos.

Tropas do Magistério na série “His Dark Materials” da BBC

“Delamare sabia que a filosofia de Talbot mantinha que nada era qualquer coisa, fundamentalmente, mas ele não questionava o que o homem de Oxford dizia” escreve Pullman. “Se a frase ‘idiota útil’ existisse no mundo deles, teria expressado precisamente sua opinião de Talbot.”

“Idiota útil” ele pode ser, mas é possível fazer diferente? Se tanto o objetivismo quanto o relativismo extremo nos levam à pós-verdade, para onde devemos nos voltar?

The Secret Commonwealth é apenas o segundo volume de sua trilogia, e suas conclusões, tal como seu enredo, terminam em um cliffhanger. Mesmo assim, ele parece apontar para um solução.

Uma solução mais antiga – e arcana – do que poderíamos imaginar a princípio.

O mundo das fadas

A Briga de Oberon e Titania, de Joseph Noel Paton (1846)

A resposta vem da boca de “Farder” Coram van Texel, personagem de Pullman que acompanha a jovem Lyra desde os eventos de A Bússola Dourada:

 Você tem de pensar sobre isso do mesmo jeito como se você quisesse ver. Você tem de olhar pra isso de lado. Do canto do seu olho. Então você tem de pensar sobre isso com o canto da sua mente. Está lá e num tá, os dois ao mesmo tempo. Se você quiser de ver os jacky lanterns, o pior jeito de todos é ir no pântano com uma lanterna. Você vem com uma maldita luz forte, e todos os  will o’ the wykeses e os pequeninos brilhantes, eles vão pra debaixo d’água. E se você quiser de pensar neles, num faz bem nenhum de fazer lista e classificar e analisar. Você só vai coletar um monte de besteira morta e que não significa nada. O jeito de pensar sobre a Commonwealth Secreta é com histórias. Só histórias funcionam.

“A Commonwealth Secreta” de que fala Coram  é um apelido ao mundo das fadas. O nome vem de um tratado escrito por Robert Kirk entre 1691 e 1692, baseado no folclore das highlands escocesas.

O fato de ter sido escolhido como título do romance, contudo, deixa claro que é muito mais que isso.

A Commonwealth de Pullman não é apenas o conjunto de elfos, faunos e fadas, mas também a curiosidade e a criatividade que nos faz querer imaginá-los em primeiro lugar. A humildade de saber que nem tudo pode – ou precisa – ser explicado.  A sabedoria em admitir, como o sociólogo Andrew Abbott, que “a ciência é uma conversa entre o rigor e a imaginação”.

Ou, como coloca Lyra:

A razão já criou um poema, ou uma sinfonia ou uma pintura? Se a racionalidade não conseguia ver coisas como a Commonwealth Secreta era porque a visão da racionalidade era limitada. A Commonwealth Secreta está lá. Nós não podemos ver com a racionalidade mais do que podemos pesar alguma coisa com um microscópio: é o tipo diferente de instrumento. Nós precisamos imaginar tanto quanto medir.

Racionalista tão fervoroso quanto é um amante do folclore, Pullman não acredita que essas duas tarefas – a imaginação e a medida – sejam incompatíveis. Como ele explica em um artigo (republicado na coletânea Daemon Voices):

Diferentes tipos de história esperam diferentes tipos de público e certos tipos de atitude daquele público. Eu não quero dizer uma relação de gosto ou respeito, embora todo contador de histórias goste destas; o que eu quero dizer é que há alguma coisa na circunstância do contar que diz “Esta história deve ser tomada literalmente” ou “Isto é uma metáfora. Uma coisa significa outra coisa.”

(…)

[John] Milton[, em Paraíso Perdido,] retrata o anjo Rafael falando com Adão e Eva e contando-lhes o que aconteceu antes deles próprios terem sido criados e o faz em palavras que celebram a sensual beleza física do mundo tão vividamente que é impossível, para esse ateu, pelo menos, segurar um surto de empatia imaginativa. Eu sei que não é literalmente verdade e ainda assim eu consigo apreciar a cena por completo. A maioria de nós é capaz desta espécie de dupla visão mental, e esta capacidade não deve ter evoluído apenas na semana passada. Eu acho que é tão antiga quanto a linguagem e a própria humanidade.

Brande e seus racionalistas, tal como Talbot e seus relativistas, não possuem essa “dupla visão”. Os primeiros não vêem valor nesta metáforas, que rejeitam como baboseiras supersticiosas. Os segundos as lêem literalmente, chegando à conclusão de que a ciência e a superstição estão no mesmo patamar.

“Você está vivendo em um mundo cheio de cor e você quer enxergá-lo em preto e branco” resume Pantalaimon. Fazer diferente, enxergar tais metáforas com o canto dos olhos, como aconselha Farder Coram, talvez não nos salve do estrago que seus textos – e seus equivalentes, no mundo real – provocaram no discurso público.

Mas pode, com sorte, trazer um pouco de cor às sombras que nos rodeiam.