(AVISO: Contém SPOILERS de Dororo)

Dororo, última reencarnação do clássico de Osamu Tezuka, sem dúvida deu o que falar. Não só pela produção de primeira, nem pela legião de fãs que deixou em seu rastro.

Por trás dos monstros e cenário de época, sua história de um guerreiro amaldiçoado lutando para recuperar seu corpo é uma parábola sobre a vingança, a justiça – e a misericórdia.

Ou, ao menos, essa parece ter sido a intenção.

Se a internet é uma referência, nem todos ficaram convencidos com a bagagem moral do anime. Andy Pfeiffer do ANN achou sua mensagem central pouco convincente, apoiada por “argumentos ambíguos que não consegue suportar”.

Tom e Linny do All Your Anime acharam sua moral “confusa e questionável”, resultado de uma série que não soube escolher entre ser “uma jornada divertida ou que pena com uma mensagem tocante e difícil”.

A ideia de que Hyakkimaru pudesse estar errado em lutar para reaver seu corpo parece ter atraído o grosso das críticas. De fato, se Dororo começa num familiar monstro-da-semana, não demora para que as coisas se compliquem.

Ao longo do anime, descobrimos que certos demônios parecem menos ruins que outros. Certos humanos parecem piores que demônios – e Hyakkimaru, dominado pelo ódio, nem sempre consegue separar o joio do trigo.

Não fosse o bastante, os demônios que levaram seu corpo trouxeram benefício para pessoas –pelo menos, para algumas delas. Kaga, o domínio de sua família, prosperou desde que seu pai, Daigo, fez seu pacto diabólico.

Seria justo que Hyakkimaru tomasse de volta o que é seu, se com isso fizesse mais pessoas sofrerem?

E se realmente o for, não teria sido errado de sua parte não ter levado sua vingança às últimas consequências? Ter feito aqueles que roubaram seu corpo não apenas devolverem o que é seu, mas pagarem pelo seu pecado?

É uma feliz coincidência que o final de Dororo tenha chegado junto com o lançamento de Sobre a Misericórdia, do filósofo Malcolm Bull.  Abordando questões que soariam familiares a Hyakkimaru, o autor avança uma hipótese provocativa:

A misericórdia é mais importante que a justiça.

Justiça ou misericórdia?

Antes de surfar na polêmica, é preciso deixar claro o que Bull quis dizer com isso.

Segundo o autor, ter “misericórdia” significa tomar ações, propositais, que causem menos dano que suas alternativas.

No princípio, ele nos explica, essa era considerada uma virtude essencial para governantes. O bom rei era aquele que sabia perdoar tanto quanto punir – de onde a prática da anistia, que sobrevive até hoje nos códigos legais.

Obviamente, nem sempre é possível contar apenas com o perdão. Sobretudo quando ele vem de um inimigo com motivos de sobra para nos querer mortos.

Com o tempo, isso levou a misericórdia a perder espaço na discussão política. Para os pensadores do Iluminismo, era na razão e na imparcialidade, não em arroubos de boa-vontade, que a sociedade deveria se basear. O sistema ideal não pode depender de pessoas bem-intencionadas, e sim da justiça.

Nas palavras de Omura, de O Último Samurai, um país é defendido por suas leis, não pela espada de um guerreiro deslumbrado.

Omura, em “O Último Samurai”

O problema, segundo Bull, é que sistemas ideais só existem na nossa cabeça. No mundo real, é possível cometer as mais terríveis atrocidades sem com isso deixar de ser “justo”.

A ficção traz vários exemplos de pessoas que caem pelas frestas do sistema sem que ninguém as ajude, pois sua miséria não viola nenhuma regra. Ou de culpados por crimes pífios que tem sua vida destruída por uma aplicação rigorosa da lei.

Jean Valjean do romance Os Miseráveis, que passou 19 anos na cadeia pelo roubo de um pão. Pintura de Jean Geoffroy

Como um paladino leal e estúpido armado com uma ogiva nuclear, uma sociedade regida friamente pela justiça corre o risco de provocar uma distopia inabitável.

Em algumas circunstâncias, pode ser melhor não punir culpados, mesmo que eles mereçam. Pelo bem de nossa sociedade, se nada mais.

Isso não significa que Hyakkimaru errou ao matar os demônios, ou que deveria ter aceitado sua sina. Pelo contrário, pelos próprios termos de Bull o protagonista de Dororo é a personagem mais misericordiosa do anime.

E é justamente por isso que ele está certo.

Entre o fogo e a frigideira

Do ponto de vista do próprio Hyakkimaru, que sua vingança seja “justa” ou “injusta” faz pouco sentido. A reparação que busca é de outra natureza.

Bull explica a diferença citando o trabalho de outro filósofo, Bernard Williams. Segundo o autor, nem todos os conceitos éticos são iguais.

Alguns – chamados por ele de “finos” – são mais abstratos. Eles atuam no campo das ideias, dizendo se uma coisa pertence ao “bem” ou ao “mal”, mas pouco além disto.  Outros – chamados de “densos” – são mais próximos do nosso mundo. Eles dizem respeito a coisas que nos machucam, nos causam medo, provocam consequências que voltarão para nos assombrar.

A vingança de Hyakkimaru pode até ser “errada”, mas vender seu primogênito aos demônios é cruel. E a crueldade, Bull argumenta, é muito mais densa que o certo ou o errado.

Ele está vulnerável demais, encurralado demais pelo seu próprio sofrimento para sequer pensar em termos finos como o “justo”, o bem coletivo ou a salvação da sua alma.

Quando estamos na frigideira, não pensamos no fogo em que podemos cair. Tudo o que queremos é pular para fora.

No anime, seu irmão Tahomaru entende isso muito bem. “Eu não acho certo o que nosso pai fez a você” ele diz a Hyakkimaru no episódio 12. “Mas esse é o sacrifício necessário para proteger o nosso domínio. Se rompermos o acordo agora, a terra morrerá.”

Incapaz de convencer seu irmão apelando a um conceito fino (“é errado”), ele apela a um denso (“é cruel e egoísta fazer os outros sofrerem”).

É um raciocínio asqueroso durante uma cena horripilante, mas ele talvez tenha mais mérito que Hyakkimaru – e até mesmo nós – enxergamos à primeira vista.

“A paz construída no sacrifício de uma pessoa é uma coisa frágil”, diz a mãe de Hyakkimaru. Mas não seriam todas as sociedades construídas sobre este tipo de sacrifício?

Se Hyakkimaru for eximido de seu suplício, o que impede um jovem soldado, recrutado contra a vontade, de fazer o mesmo quando a guerra chegar? Ou um civil de se rebelar quando, durante uma emergência, seus bens forem confiscados pelo Estado?

Fora das nossas utopias mais lisérgicas, existe mesmo um mundo em que pessoas se sacrificam por livre e espontânea vontade? Não existe, em todo sistema, uma parcela de Hyakkimarus, sofrendo pelo conforto dos outros sem receber nada em troca?

“O Preço da Paz”, por Brian Jay

Colocado dessa forma, seria um argumento para ruminarmos. Se Daigo estivesse falando a verdade.

Poder e misericórdia

Como o pai de Hyakkimaru confessa já no primeiro episódio, seus motivos para vender o filho aos demônios estão longe de serem altruístas.

“Nós já estamos vivendo no inferno” ele diz a um monge antes de matá-lo. As pestes, secas e tragédias que ele quer imputar a Hyakkimaru já existiam antes dele nascer, trazidas não por deuses irados, mas pela sua própria incompetência.

Seu pacto com os doze demônios não foi um sacrifício por um bem maior, mas um atalho para esconder o fato de que ele não presta como governante.

Como ele mesmo admite:

Doze demônios, eu sou Daigo Kagemitsu. Senhor de Ishikawa e vassalo do governador da província de Kaga. A escassez e as epidemias recorrentes assolaram minhas terras, enfraquecendo meu povo até a morte. Desse jeito, eu nunca conquistarei o poder e o renome que desejo.

Mitigar a pobreza do seu povo foi apenas um efeito colateral de seu verdadeiro objetivo: ganhar uma promoção. Enxergando as coisas por esse ângulo, até mesmo sugerir que Hyakkimaru deva se compadecer do pai é um insulto ao jovem.

Como Bull explica, ser misericordioso implica, em primeiro lugar, ter poder sobre alguém. Mais do que isso, implica em estar disposto a abrir mão desse poder, nem que apenas temporariamente.

Aumentar seu poder sobre alguém, pelo contrário, é sempre uma operação tirânica, pois deixa as pessoas a sua mercê ainda mais vulneráveis. E manter alguém em uma situação vulnerável é, em si, uma forma de dano.

O inverso, porém, não é verdadeiro. Quem é oprimido por um poderoso pode – e deve – tentar virar a mesa, pois perder poder, por si só, não é um tipo de dano. Daigo poderia viver muito bem sendo “apenas” o senhor de Ishikawa. Hyakkimaru, privado dos seus sentidos mais básicos, não pode dizer o mesmo.

Mas como garantir que um Hyakkimaru não se deixe levar por sua vingança e se torne o próximo Daigo? Como garantir que os vulneráveis, de posse dos privilégios com que tanto sonharam, não façam ainda pior que seus antigos senhores?

Ou, nas palavras de Biwamaru, Jukai e todos aqueles que zelaram pela alma de Hyakkimaru, que não deixem o poder tolher sua humanidade?

Porque, por incrível que pareça, eles podem não ter escolha.

A energia que até os demônios cobiçam

Ao longo da história, muita tinta foi gasta para justificar por que certas pessoas têm direito de mandar nas outras.

Porque seu poder vem de Deus ou da vontade do povo. Porque são os mais capazes. Porque é o que dizem as regras, e as regras são boas. Porque eles mandam, pura e simplesmente, e se você reclamar irão te machucar.

Para Bull, contudo, tudo converge a uma mesma máxima: o poder é aceito quando não é exercido às últimas consequências.

Justificativas são bonitas, mas pessoas não vivem e morrem de justificativas da mesma forma que morrem se forem executadas pelos seus senhores. No final das contas, nós engolimos sapo porque acreditamos que isso nos machucará menos que as alternativas.

Quando acreditamos, em outras palavras, que nossos opressores terão misericórdia.

Como escreve Bull (grifo meu):

Há muitas coisas para que isso pode ser um alicerce instável, mas a política não é uma delas, pois, se nada mais, a política é um esquema coletivo para manter (pelo menos algumas) pessoas vivas e funcionantes quando elas poderiam de outra forma, estar mortas ou sofrendo. Os corpos dos vulneráveis são sempre sua matéria-prima. 

É por causa disso que tantas aldeias em Dororo aceitam formar pactos com monstros. Sacrificar crianças para uma mariposa gigante está bem longe de ser justo. Mas é melhor, a seus olhos, do que morrerem todos devorados.

É também por isso que outros tantos camponeses se recusam a obedecer aos samurais – que, muito mais do que monstros, tem o “direito” nominal para governar.

Yajiro, o mineiro rebelde do episódio 7, é o exemplo mais claro. Sob o jugo de um senhor que trabalha seu povo até a morte, ele opta pela incerteza da liberdade. E leva consigo todos os companheiros que consegue.

Curiosamente, é também isso que permite a Hyakkimaru ter sucesso em sua vingança. Embora nem sempre consiga controlar seus instintos, o jovem é incrivelmente seletivo na sua violência. Ao longo de sua jornada, ele evita antagonizar humanos e mesmo monstros que não lhe queiram o mal.

Muitas das suas lutas, com o duelo contra a espada possuída no episódio 4, teriam sido muito mais fáceis se ele se permitisse matar a todos, indiscriminadamente. É pouco provável, no entanto, que ele chegasse vivo até o fim se levasse à cabo esta violência sem freios.

Sim, é possível dominar os outros com o medo e a brutalidade. Mas brutalizar os outros significa tratá-los como inimigos, e ninguém pode sobreviver em luta armada contra o planeta inteiro.

“Sem misericórdia nós estamos mortos” diz Bull “porque ninguém pode se defender com sucesso de toda ameaça em todo momento.”

Se quisermos que a sociedade seja algo além de uma guerra de todos contra todos, é necessário algo além do poder nu e cru: O potencial de mudar o mundo que Biwamaru enxergou em Dororo no episódio final. E que nós observamos a cada passo de sua jornada, em cada ato de misericórdia.

Daigo não entende essa verdade, e termina sua história destituído, coberto de sangue. Hyakkimaru a entende, e é por isso que poupa sua vida na hora final.

“Nessa sua energia” o pai reconhece “Há algo que até os demônios cobiçaram”.

Não o poder de cobrar um olho por um olho, mas de plantar as sementes de um futuro sem ódio.