Dia 16 de junho é a data literária mais importante da Irlanda. Talvez a data mais importante da Irlanda, depois da festa de um certo santo que expulsou as cobras da ilha. E deu ao mundo inteiro uma desculpa para beber.
Esse foi o dia escolhido por James Joyce para situar sua obra-prima, Ulisses. O livro é uma releitura da Odisseia adaptada à vida de um irlandês chamado Leopold Bloom. Enquanto que o herói de Homero passa anos em alto-mar enfrentando monstros, sereias e oráculos do submundo, Bloom é um homem terrivelmente normal com uma rotina sem nada de especial.
Com cada capítulo inspirado em um canto da Odisseia, sua “epopeia” o acompanha durante um único dia de sua vida, da “sentada no trono” após o café da manhã a uma noitada no bordel nas altas horas da madrugada.
O resultado foi um dos livros mais criativos, bem-humorados – e desafiadores – da história da literatura. Que, apesar da dificuldade, inspirou centenas de romances, filmes e todo o tipo de histórias desde sua publicação em 1922.
Com o passar dos anos, não faltaram fãs e curiosos para tentar replicar a epopeia de seu herói, traçando os passos do “grande” Leopold Bloom pelas ruas mágicas de Dublin. De preferência, vestidos a caráter, com roupas de 1904, ano em que a história se passa.
Nascia o Bloomsday.
Embora sempre tenhamos sido fãs de Joyce, nem eu nem Vivian, a minha esposa, tínhamos participado de um Bloomsday na capital irlandesa. Para retificar esse erro, vestimos nossos chapéus coco, coletes e xales e decidimos nos aventurar por essa Odisseia irlandesa.
O resultado você confere abaixo.
Telêmaco, Nestor
A Odisseia de Homero pode ser a história de Odisseu, mas seu protagonista não aparece logo de início. Como leitores de Homero sabem, nosso herói começa a história desaparecido enquanto que seu filho, Telêmaco, tenta proteger sua Ítaca natal de um exército de pretendentes.
Joyce segue o mesmo caminho em Ulisses, e abre a narrativa apresentando um jovem que virá a se tornar espécie de filho adotivo de Mr. Bloom. Ele é ninguém menos que Stephen Dedalus, protagonista de seu romance anterior, Um Retrato do Artista Quando Jovem.
No livro, Stephen mora com um amigo na Martello Tower, uma velha torre das Guerras Napoleônicas na praia de Sandycove, sul de Dublin. A pequena fortaleza foi a casa do próprio Joyce na sua juventude, e hoje hospeda um museu dedicado ao autor.
A menos de 10 minutos da estação Sandycove & Glasthule do trem DART, o museu é uma parada obrigatória para fãs do escritor. Se o clima colaborar (coisa rara na Irlanda, mesmo no verão), você pode também curtir um passeio por Dún Laoghaire, uma charmosa cidade de praia à vista da torre.
Em Ulisses, Stephen trabalha como professor de história em uma escola na cidade de Dalkey. Sua rotina de docente ocupa o segundo capítulo, Nestor. Origem, na minha modesta opinião, de alguns dos trechos de mais bela prosa em todo o romance:
Across the page the symbols moved in grave morrice, in the mummery of their letters, wearing quaint caps of squares and cubes. Give hands, traverse, bow to partner: so: imps of fancy of the Moors. Gone too from the world, Averroes and Moses Maimonides, dark men in mien and movement, flashing in their mocking mirrors the obscure soul of the world, a darkness shining in brightness which brightness could not comprehend.
Joyce, James. Ulysses (Penguin Modern Classics) (p. 13). Edição do Kindle.
A escola em questão, Summerfield House, hoje é uma casa particular, mas Vivian e eu decidimos conhecê-la mesmo assim.
Dalkey fica a vinte minutos de caminhada de Sandycove, mas é um vilarejo bucólico que valeu cada minuto de esforço. Seu centro histórico preserva vários castelos da época em que era uma cidadela murada, e também fervilhava com um festival local, paralelo ao Bloomsday.
Se o passeio parece puxado, não desanime. Há uma estação do DART também em Dalkey, de maneira que não precisamos voltar a pé a Sandycove.
Proteu, Nausicaa
Findo seus compromissos docentes, Stephen volta a Dublin após um breve passeio na praia. Proteu, como o segmento se chama, é um dos capítulos mais difíceis de Ulisses. Para alguns, o último, já que seu famoso fluxo de consciência é suficiente para fazer muita gente desistir da leitura:
He took the hilt of his ashplant, lunging with it softly, dallying still. Yes, evening will find itself in me, without me. All days make their end. By the way next when is it? Tuesday will be the longest day. Of all the glad new year, mother, the rum tum tiddledy tum. Lawn Tennyson, gentleman poet. Già. For the old hag with the yellow teeth. And Monsieur Drumont, gentleman journalist. Già. My teeth are very bad. Why, I wonder? Feel. That one is going too. Shells. Ought I go to a dentist, I wonder, with that money? That one. Toothless Kinch, the superman. Why is that, I wonder, or does it mean something perhaps? My handkerchief. He threw it. I remember. Did I not take it up?
Joyce, James. Ulysses (Penguin Modern Classics) (p. 23). Edição do Kindle.
Que ironia, portanto, que o lugar em que se passa, a praia de Sandymount, seja um dos cenários mais agradáveis de todo o livro:
Joyce parece concordar, pois a transformou no palco de não uma, mas duas cenas de Ulisses. Mais para frente, Sandymount será também visitada por Leopold Bloom no capítulo Nausicaa.
Como já conhecíamos o lugar e já havíamos andado bastante em Sandycove, decidimos pular a caminhada e voltar direto para Dublin. Se você é novo na cidade de Joyce, porém, faça questão de apanhar sua bengala e traçar os passos de Stephen.
Calipso, Ítaca, Penélope
Como na Odisseia de Homero, o quarto capítulo de Ulisses deixa seu Telêmaco de lado e nos introduz finalmente ao nosso protagonista, Leopold Bloom, na sua casa na Eccles Street, No. 7.
Na Odisseia, Ulisses é prisioneiro da ninfa Calypso, que o impede de sair de sua ilha. No romance de Joyce, o prédio de três andares no norte de Dublin representa tanto seu cativeiro quanto a morada para onde retorna.
Num de seus muitos lances de sarcasmo, Joyce faz de Calypso, a ninfa que o aprisiona, e Penélope, a esposa que deseja rever, a mesma pessoa: sua mulher Molly.
Para a infelicidade de nós, joyceanos, o número 7 da Eccles Street não existe mais. O prédio original se transformou em um cortiço nos anos 1930 e foi demolido em 1967, após décadas de negligência. Hoje, o endereço abriga o Hospital Mater Misericordiae, vinculado ao University College Dublin, onde o próprio Joyce estudou.
Contudo, outras casas da mesma rua tiveram sorte diferente. Com as fachadas preservadas, elas ainda esbanjam a vibe do início do século. Com um pequeno esforço de imaginação, é possível ver Mr. Bloom saindo de uma das portinhas naquele fatídico 16 de Junho.
Lotófagos
Mr Bloom começa o seu dia comprando um sabonete para tomar banho, de forma a se preparar para um funeral. A preguiça que sente ao entrar na banheira é comparada por Joyce aos lotófagos de Homero, povo mitológico que vive confinado em uma ilha, dopados pelas flores de lótus que consomem.
A loja que visita ainda existe, com os mesmíssimos móveis e fachada, e tornou-se um dos destinos de peregrinação mais populares entre fãs do escritor.
A Sweny’s Pharmacy, como é conhecida, não trabalha mais com cosméticos. Hoje, é um verdadeiro santuário dedicado a Ulisses, onde exemplares do livro dividem espaço com artigos de época. Frascos, fotos e anúncios antigos com que Bloom e seus contemporâneos achariam bastante familiar.
Ao atravessarmos o batente, Vivian e eu fomos logo convidados para uma roda de leitura do romance. Uma de tantas atividades que o endereço realiza periodicamente.
A loja conta ainda com uma seleção de souvenires temáticos, incluindo barras de sabonete de limão. A mesma fragrância – e embalagem! – que Mr. Bloom compra na sua visita em 1904.
Para o banho em questão, o protagonista escolhe um balneário turco em Lincoln Place, ao lado do Trinity College Dublin. Nos seus anos de glória, o estabelecimento era um pastiche de mesquita digno de um cassino de Las Vegas:
Não demorou para que o estilo fosse considerado brega, e a casa de banhos fechou logo depois. Hoje, ela se tornou o pub favorito dos medievalistas do Trinity College, onde vamos toda semana para nosso happy hour.
Estranho pensar que Mr. Bloom admirava suas partes íntimas no mesmo lugar onde hoje bebemos cerveja…
Hades
O próximo passo na odisseia de Bloom é o Cemitério de Glasnevin, onde participa do funeral de seu amigo, Paddy Dignam. O capítulo é uma das partes mais conhecidas (e divertidas) de Ulisses.
É, também uma das que mais literalmente respeita suas origens nos versos de Homero. No caso, o episódio de Hades, em que Odisseu e seus marinheiros descem ao submundo para pedir a ajuda do oráculo Tirésias.
Durante o Bloomsday, o cemitério de Glasnevin se transforma num verdadeiro paraíso literário, com atividades que vão de leituras coletivas a encenações da procissão funerária do livro. Em nenhum lugar de Dublin é mais fácil encontrar cosplayers de personagens de Joyce. Ou do criador em pessoa, com os óculos e barbicha que o fizeram famoso.
Para além da bagagem joyceana, o cemitério é um passeio imperdível para qualquer interessado em história irlandesa. Nele, estão sepultados alguns dos figurões mais famosos do país, como os revolucionários Michael Collins e Eamonn DeValera, a musa de Yeats, Maud Gonne, e o pintor e escritor Christy Brown, imortalizado no filme Meu Pé Esquerdo.
Éolo, Lestrigões
Com Paddy Dignam morto e enterrado, Leopold Bloom se dirige aos escritórios do Freeman’s Journal, periódico onde tenta vender um anúncio.
Em 1904, o Freeman era um dos jornais mais conhecidos de toda a Irlanda. Infelizmente, sua gráfica foi destruída em 1916 durante o Levante da Páscoa. A primeira grande batalha do que se tornaria a Guerra de Independência Irlandesa.
Sem um prédio para visitarmos, decidimos ir direto ao capítulo 8, “Lestrigões.”
Na Odisseia, esse é o nome de uma raça de gigantes canibais que Ulisses e seus homens encontram em sua jornada. No romance de Joyce, eles são – adivinhem! – uma metáfora para a fome de Bloom, em busca de um almoço.
O lugar escolhido foi o pub do Davy Byrne, onde come um sanduíche de gorgonzola com uma taça de Borgonha. Para a alegria dos joyceanos, o restaurante ainda existe – e ainda serve o lanche que o imortalizou na literatura.
Caso uma fatia de queijo não satisfaça sua fome, não há razão para se preocupar. O restaurante conta com um menu completo, bastante saboroso. Não à toa, já que suas mesas, entre as centrais Dawson e Grafton Streets, estão sempre cheias.
Se repetir o almoço de Mr. Bloom lhe der um apetite de outra natureza, você pode aproveitar e visitar Ulysses, uma loja de livros raros em frente à lanchonete. Entre sua coleção estão várias primeiras edições de autores consagrados da literatura irlandesa.
Só esteja avisado: os exemplares da loja podem ser muito caros. Por questões de segurança (inclusive financeira) é melhor não passar da vitrine…
Cila e Caribde, As Rochas Ondulantes
O próximo passo da saga de Bloom acontece a algumas ruas de distância, na Biblioteca Nacional da Irlanda. Como historiador, o prédio já me era bastante conhecido. Não poucas vezes precisei consultar seu acervo para minha pesquisa.
Mesmo assim, fizemos questão de visitá-lo durante a caminhada. A biblioteca é um dos edifícios mais bonitos de Dublin e vale uma caminhada nem que apenas a caminho do Museu Nacional, logo a sua frente.
De lá, porém, entramos em um dos capítulos mais confusos de Ulisses – pelo menos, de um ponto de vista geográfico. Em Rochas Ondulantes, Joyce divide seu foco em uma série de pequenas vinhetas, ambientadas, simultaneamente, em lugares diferentes da cidade.
Nem todos ainda existem hoje em dia, mas os que sobrevivem valem uma visita. Entre elas, estão o Merchants Arch, no Temple Bar,
E a Crampton Court, descrita por Joyce como um “tiny square”; hoje uma pequena quadra espremida entre restaurantes.
O mais importante, porém, talvez seja o palco de um diálogo entre as personagens Buck Mulligan e Haines em uma lanchonete na Dame Street. Sua conversa entrou para a história da literatura – e o lugar onde se encontraram, para os mapas de Dublin. Hoje, um pub no mesmo endereço carrega o nome dos dois:
Sereias, Ciclope, Gado do Sol, Circe
Se os cenários de Ulisses na parte sul de Dublin se tornaram destinos populares sorte parecida não tiveram os na parte norte. Menos turística que o centro histórico, a margem oposta do Rio Liffey sofreu modificações radicais nos mais de cem anos que nos separam de Leopold Bloom. Com a exceção do cemitério de Glasnevin e alguns points de Rochas Ondulantes, tudo o que temos são lembranças.
É o caso do Hotel Ormond, onde se passa o episódio Sereias. Situado à beira do rio, o estabelecimento foi gradualmente dilapidado ao longo dos anos até que, nos anos 1930, já não restasse nada da sua estrutura original. O prédio foi abandonado, condenado à demolição e hoje está perdido em um limbo judicial.
Destino similar teve o pub de Barney Kiernan, palco do capítulo Ciclope, onde Mr. Bloom, um judeu, discute com um feniano antissemita. Na releitura de Joyce, o olho único do Cíclope é equiparado à cegueira do preconceito, um das muitas sacadas inspiradas de sua obra-prima.
Desaparecido também está o cenário daquele que é talvez meu episódio favorito: Monto ou Nighttown. A versão dublinense da Baixo Augusta paulistana. No romance, palco de uma caminhada lisérgica pelo “submundo” urbano de Dublin, narrada na forma de um script teatral.
Na época de Joyce, o bairro era a zona da luz vermelha de Dublin. Como todo distrito de prostituição, “Nighttown” fazia jus ao seu nome, com prédios decadentes, becos escuros e toda espécie de esconderijo para foras-da-lei. Em Ulisses, esse é o lugar aonde Bloom e Stephen se dirigem no episódio Circe. Se na Odisseia a Circe em questão é uma poderosa feiticeira, nas páginas de Joyce é ninguém menos que Bella Cohen, dona de um bordel em que nossos protagonistas terminam sua noite.
A maioria dos bordéis fechou nos anos 1920, e o bairro de hoje (para o bem de Dublin!) não tem nada em comum com as vielas perigosas da época de Joyce. Sem nada para ver, permanecemos na margem sul e traçamos caminho para a Maternidade de Holles Street, onde Bloom e Stephen se encontram pela primeira vez, no episódio Gado do Sol.
Perto do Merrion Square, na região central de Dublin, o hospital fica a alguns minutos casa de Oscar Wilde, outro celebrado escritor irlandês. Embora o prédio não seja aberto ao público, você pode tirar uma foto com sua estátua – uma das mais populares de Dublin.
Eumeu
Stephen e Bloom terminam sua jornada no episódio Eumeu, cambaleando até um ponto de táxis, de onde pegam uma condução até sua casa, na Eccles Street número 7. Na Dublin de 1904, porém, “táxis” não eram automóveis, e sim carruagens. Por incrível que pareça, esse tipo de transporte continuou em uso muito depois da introdução dos carros – não apenas para transportar turistas.
O “ponto” de carruagens não existe mais. Mas Butt Bridge, onde ele ficava, ainda existe, e constitui uma das principais artérias de Dublin. Cansados após um dia e meio de uma caminhada pesada (Vivian e eu dividimos o itinerário em dois), chegar na ponte nos trouxe um alívio que não vamos esquecer tão cedo.
Outras atividades
Se você não é do tipo atlético, não deixe o texto acima murchar seu entusiasmo. Nem só de caminhadas é feito o Bloomsday. Pelo contrário, o 16 de junho é a data de toda sorte de atividades, de peças de teatro a baladas inspiradas nas orgias de Nighttown.
Muitos dos eventos são oferecidos pelo James Joyce Centre, localizado perto do Belvedere College, onde o próprio Joyce fez seu ensino médio. Dentre as muitas atividades, Vivian e eu participamos de um chá da tarde embalados por músicas mencionadas em Ulisses e leituras de trechos do romance.
Uma performance realizada por duas atrizes a caráter, encarnando Molly Bloom e a própria esposa de Joyce, Nora Barnacle.
Conclusão
Leopold Bloom está de parabéns. Seguir os passos de sua odisseia dublinense foi uma das atividades mais exaustivas que já fiz num fim-de-semana. Cada dor no corpo, porém, foi mais que bem-vinda.
Em uma época em que não poucos declaram que o “livro está morto”, ver uma cidade inteira se dobrar em homenagem a um dos romances mais difíceis já escritos é uma visão de emocionar.
Com ou sem meu colete e chapéu-coco, espero participar de muitos outros Bloomsdays. Mais do que uma feira literária, é uma prova viva de que a literatura – mesmo na sua forma mais culta e inescrutável – é capaz de tocar pessoas comuns. E evidência de que aquela velha frase de Oscar Wilde ainda não perdeu sua relevância:
Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão olhando para as estrelas.
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