Anime x Livro tem como objetivo comparar romances da literatura com suas adaptações na telinha japonesa. A proposta é sair do fla-flu e esmiuçar essas séries (e livros) em detalhe.
O Studio Colorido pode não ser um grande nome de referência na animações japonesa. Desde 2018, porém, as coisas podem ter começado a mudar.
Misturando fantasia, ficção científica e um retrato cândido do final da infância, Penguin Highway se tornou um hit da crítica e um cartão de visita a seu diretor, Hiroyasu Ishida. Com seu romance de origem finalmente lançado em águas ocidentais, temos uma oportunidade de ouro para mergulhar a fundo nos porquês desta adaptação.
Em especial porque o romance em questão veio da pena de Tomohiko Morimi, autor de algumas das histórias mais criativas a ganharem as telas nipônicas nos últimos tempos.
Seria o romance de Morimi tudo isso mesmo? E esteve Ishida à altura para reinterpretá-lo?
Vamos juntos descobrir.
Clique nos títulos para ir direto às seções. Ou então só continue abaixo, se estiver com tempo. AVISO (DESNECESSÁRIO): Contém SPOILERS para Penguin Highway)
Penguin Highway é um romance notável nem tanto pelo seu conteúdo, mas por quem o escreveu. Lançado originalmente em 2010, o livro é a primeira obra de Tomihiko Morimi a ser lançado em inglês – e, até onde sei, no Ocidente como um todo.
Se você não o reconhece de nome, talvez suas obras lhe dêem uma pista. Morimi é autor de Tatami Galaxy e Yoru wa Mijikashi Arukeyo Otome, cujas adaptações em anime, feitas pelo diretor Masaaki Yuasa, se tornaram hits entre fãs do gênero.
Penguin Highway venceu o prêmio Nihon SF Taishou – o equivalente japonês do Nebula. Rotulado de ficção científica, o romance é na verdade uma obra de fantasia, recheado com uma dose suficiente de cultura pop para parecer uma versão light de Haruki Murakami.
Sua trama acompanha Aoyama, um garoto estudioso que sonha em vencer o Nobel. Seu desejo parece próximo de realizar quando um mistério científico acontece diante de seus olhos:
Uma horda de pinguins invade sua cidade.
Ao lado de seus amigos, Ushida e Hamamoto, Aoyama se compromete a desvendar o mistério. As coisas, todavia, não são o que parecem. E quando se aproxima de solucionar o enigma, mais perto ele fica de aprender uma lição importante sobre si mesmo.
Penguin Highway, a animação, foi dirigida por Hiroyasu Ishida, mais conhecido pelo badalado (e nem tão bem avaliado) Typhoon no Noruda.
Misturando fenômenos naturais, fantasia e coming-of-age com uma pitada de romance, seu longa parece, de fato, uma elaboração de temas já ensaiados em Typhoon. Que ambos tenham sido produzidos pelo mesmo estúdio apenas reforça a impressão.
O material parece ter caído como uma luva à Ishida, e sua obra coleciona críticas positivas, além de ter faturado o Prêmio Satoshi Kon por Excelência em Animação no Fantasia Festival, Montreal, onde teve sua première.
Mérito do material de origem? Ou teria o dedo criativo de Ishida sido o responsável pela mágica?
Como diria Aoyama, vamos desvendar esse mistério.
Aoyama
Eu sou extremamente inteligente e nunca pego leve com meus estudos.
É por isso que eu serei muito importante no futuro.
As frases de abertura do livro de Morimi dizem tudo o que é preciso para entender seu protagonista. Ele é um saco.
Aoyama é aquele tipo de criança que pensa que ser mimado pelos pais é reconhecimento, e que ler a National Geographic e montar naves de LEGO o tornam um garoto prodígio. Ele ama se achar melhor que os outros, coisa que não para de repetir – literalmente – do primeiro ao último capítulo.
Filho de cientistas, o garoto age como se ele, próprio, fosse um dos candidatos ao Nobel.
Ele chama nuvens de “cumulonimbus”, é fã de xadrez e bebe café como os adultos. Carrega um caderno diferente para cada fenômeno que estuda e tem uma obsessão por seios femininos – tudo, ele garante, em nome da ciência.
Que Aoyama não seja nem de longe tão adulto quando finge parecer é algo que Morimi nunca esconde. Pelo contrário, não demora para cair a ficha de que seu linguajar chupinhado do Discovery Channel é uma fantasia que veste para esconder suas criancices.
“Todos os pesquisadores sofrem de cáries” ele diz, ao ser confrontado por não escovar os dentes. “Você realmente não fica nervoso”, comenta um amigo “Não se eu penso sobre peitos” ele responde.
Nem sempre sua seriedade convence, e os momentos em que sua máscara cai trazem as maiores pérolas da prosa de Morimi:
Sempre que eu vejo um rastro de vapor eu não consigo evitar olhá-lo. Uchida e eu combinamos que nós assistiríamos a um lançamento de ônibus espacial algum dia, mas eu sinto que se eu visse algo assim tão incrível meu pescoço mais voltaria a sua posição original
Infelizmente, nem a ironia de Morimi salvam seus diálogos de sucumbirem ao peso do technobabble. E após páginas e páginas narradas por um mala-sem-alça, é difícil não sentir que nosso tempo com o livro foi desperdiçado.
Os diálogos do anime são fidelíssimos aos do romance – em muitos casos, à última sílaba. Assim, é impressionante como a magia visual de Ishida conseguiu transformá-lo em um protagonista cativante. Enquanto que no romance só dispomos da versão de Aoyama, o diretor escancara a cada cena o quão distante seu discurso furado é da realidade. Seja quando está apavorado, tentando arrancar um dente
fazendo bico ao experimentar café
ou queimando de febre.
Nada mais autêntico a uma personagem infantil do que vê-la agindo como uma criança de verdade.
A mulher do consultório
Eu deixei o apartamento e descobri que o céu sobre o morro tinha uma cor incomum. Haviam nuvens fofas cobrindo o céu e elas estavam todas pintadas de um rosa pálido. Eu nunca tinha visto um céu daqueles antes. Havia um buraco nas nuvens além das montanhas, e a luz do entardecer brilhava através dele.
Eu me virei para trás e vi a mulher acenando da sua varanda.
Ela também era rosa.
A mulher do consultório é a personagem mais importante – e, acrescento eu, intrigante dessa história. O fato de não sabermos sequer do seu nome é, em si, uma pista. Ela é um grande mistério, que o pequeno Aoyama fará sua missão desvendar.
Como nós mesmos descobrimos sem grande esforço, Penguin Highway não é apenas uma história sobre pinguins. O “experimento” que Aoyama realiza, no fundo, é apenas um: entender por que seu coração bate tão rápido quando pensa naquela mulher.
Funcionária no dentista que frequenta, a mulher conhece Aoyama durante uma consulta, quando flagra o garoto pregando uma peça no bully da escola.
Amante, ela própria, de xadrez, não demora para que ela se torne uma espécie de babá de Aoyama, passando tardes e tardes ao seu lado em uma mesa no Café à Beira Mar.
A natureza desses encontros ganha contornos diferentes no livro e no anime. Se no romance seu amor não passa de um crush por uma figura materna – vindo de um garoto que ainda tem 3888 dias para se tornar um adulto, como Aoyama mesmo nos conta – no anime de Ishida ganha contornos mais… picantes (veja abaixo, “A Descoberta da Sexualidade).
Hamamoto
Ela era como uma amante de chocolate diante de uma caixa de bombons, pairando sobre o tabuleiro como se decidindo qual peça comer primeiro.
Hamamoto é a garota com que todo menino nerd sonhou alguma vez em namorar. Inteligente, cheia de si – e, de quebra, bonita – ela é a única personagem capaz de colocar nosso protagonista em seu lugar.
Tal como Aoyama, Hamamoto é filha de um cientista – e não faz questão de escondê-lo. A garota sabe jogar xadrez, conhece a Teoria da Relatividade e passa seu tempo livre montando experimentos.
Sua versão animada não ficaria mais fiel à original se Ishida tivesse escrito o romance ele próprio. A Hamamoto das telas é uma recriação da personagem de Morimi nos seus menores detalhes.
Ao contrário de Aoyama, que passa seu tempo construindo naves e estações espaciais de LEGO, Hamamoto tem o tique de empilhar pedras em muros. Ishida não destaca este detalhe da mesma forma que Morimi, mas ele pode ser visto nas tomadas em que aparece brincando.
No livro, Hamamoto é descrita como uma garota de pele clara e cabelos castanhos, que “parecia que tinha se mudado para cá de algum lugar na Europa”. O visual caucasiano é sabidamente difícil de reproduzir em animes, em que todas as personagens possuem pele clara e cabelos coloridos.
Ishida, porém, esteve à altura do desafio. Não só ela parece ligeiramente mais pálida que seus colegas, como ganhou olhos azuis e roupas retrô, no melhor estilo Marnie.
Uchida
Uchida era do tipo silencioso, mas aquele era um silêncio muito mais significativo que o habitual
Para um parceiro tão recorrente em suas aventuras, Aoyama tem muito pouco a dizer sobre Uchida. Não por acaso. No romance de Morimi, o garoto é o Pink para o Cérebro de Aoyama, uma imagem inversa do protagonista que parece só existir para nos lembrar de quão excepcional nosso herói é.
Se Aoyama é corajoso, Uchida é um chorão. Se Aoyama é analítico, Uchida é emotivo. Se Aoyama é cego para os sentimentos mais óbvios daqueles ao seu redor – e, até mesmo para os seus – Uchida parece entender tudo, embora nem sempre o ponha em palavras.
Personagem-tipo, nunca escrito para ser mais do que um pedestal ao protagonista, Uchida era uma tela em braco para Ishida pintar seu próprio retrato de um garoto comum na pré-adolescência. E um bom retrato ele pintou, com todo o esmero de que a animação é capaz.
A diferença não está no conteúdo, mas nos detalhes. Com uma sensibilidade digna de Memórias de Ontem, o diretor transforma a personagem na porta-voz daquele lado ridículo, embaraçoso da infância que a maturidade fake de Aoyama tenta a todo custo esconder.
Descrever um menino chorando, apanhando de bullies, fugindo de medo é uma coisa. Ver Uchida titubeando de volta para casa, sujo de ranho e lama após ter caído enquanto brincava, é de uma honestidade tão brutal que traz flashbacks dos nossos próprios traumas de infância.
O “Império Suzuki”
Suzuki tinha a voz mais alta na nossa classe e era muito forte. Os meninos sob seu comando o obedeciam sem questioná-lo. Aquela estrutura era fascinante, e eu a estava estudando, fazendo anotações que eu batizei de Observações sobre o Império Suzuki.
A descrição de Aoyama dos bullies de sua escola é uma das mais brilhantes do romance de Morimi. E Suzuki, junto a Kobayashi e Nagasaki, seus fiéis escudeiros, um trio de cretinos de que todo nerd estudioso se lembrará muito bem.
O “Imperador Suzuki I”, como Aoyama o chama, é o antagonista da primeira parte de Penguin Highway. Ao descobrir que os garotos estão fazendo um “experimento”, Suzuki e seu império fazem de tudo para atrapalhá-los. O ponto baixo de sua crueldade vem em uma cena envolvendo uma vending machine – e mais fluidos corporais que esperaríamos encontrar em um anime infantil.
Como tantos outros valentões da ficção – e também da vida real – não demora para que Suzuki se mostre mais inseguro que covarde, menos violento que solitário.
Desde a primeira cena, fica claro que odeia Aoyama por ser o garoto dos olhos de Hamamoto, por quem ele próprio tem uma queda. Embora Ishida nunca chegue a ter pena do sujeito, seu filme deixa claro que muito de sua dor – e, consequentemente, sua crueldade – vem do sofrimento de achar-se burro.
O subtexto é menos forte no romance de Morimi, em que Suzuki e seu comparsas tentam impressionar Hatamoto vencendo Aoyama em seu próprio jogo. O “Império” se torna uma equipe rival de exploradores, tentando solucionar um mistério ainda maior para conquistar os olhos de Hatamoto.
Felizmente, essa trama bisonha foi eliminada quase por completo do anime de Ishida. Suzuki ainda nutre uma rixa por Aoyama, e suas tentativas de sabotar seus experimentos continuam um ponto-chave no enredo. Mas o garoto e seu “império” nunca deixam de ser o que aparentam à primeira vista: três bullies não muito espertos, intimidados pela sua inteligência.
Uma caracterização menos original que a do romance, mas ainda assim mais verossímil.
Aoyama começa o romance ao lado de seu fiel escudeiro Uchida, buscando mapear o trajeto de um córrego local. Eles chamam sua empreitada de “Projeto Amazonas”, uma referência aos exploradores que desbravaram os confins do rio brasileiro no passado.
Sua busca é colocada em hiato quando sua cidade é invadida por uma horda de pinguins. Não pinguins normais, mas criaturas que surgem do nada, sobrevivem a atropelamentos e desaparecem quando transportados para longe.
O mistério começa a se complicar quando ele descobre que a mulher do consultório é a responsável pelos bichinhos. Em dado momento, ele a flagra transformando uma lata de Coca-Cola em um pinguim.
O poder, contudo, não parece ser voluntário. E mudanças no seu estado de espírito tem consequências assustadoras. Em dada cena, seu dom dá lugar a uma revoada de morcegos.
Ao saber dos experimentos de Aoyama, sua colega Hamamoto lhe conta que ela, também, está pesquisando uma coisa. Uma aparição misteriosa no meio das florestas da cidade, conhecida como “a lua de prata”.
Não demora para que o garoto perceba que a lua, os pinguins e sua dentista misteriosa são partes do mesmo enigma. E que toda aquela confusão, cedo ou tarde, explodiria diante de seus olhos.
O pior acontece quando a mulher do consultório, em vez de um pinguins, começa a produzir monstros. Quando o valentão Suzuki resolve capturar um espécime, as autoridades intervém. E a pacata cidade de Aoyama e seus amigos viram o palco de um episódio de Stranger Things.
Cabe ao garoto e à mulher do consultório salvarem o dia. Surfando uma estrada (literal) de pinguins, em um clímax tão surreal que daria inveja a Satoshi Kon.
Como as imagens deixam claro, Penguin Highway, o filme, é a adaptação que todo autor que vende os direitos da sua obra amaria receber. O anime de Ishida acompanha praticamente à letra o enredo do livro. A mudança não está no quê acontece, mas em como a história é contada.
Ou, melhor dizendo, em onde Ishida e seu roteirista, Makoto Ueda, decidiram mirar sua lente.
A “perfumaria”
O texto de Morimi segue uma estrutura quase episódica, em que a trama principal se perde em digressões e episódios avulsos.
São cenas de Aoyama peitando seus bullies, de Hamamoto jogando xadrez, de conversas quase idênticas no Café à Beira Mar, onde Aoyama e a mulher do consultório se encontram. Ou simplesmente listas tediosas dos achados do garoto, como se Morimi quisesse fazer o resumo de seu livro antes mesmo de terminar de escrever.
Eu registrei essa descoberta significativa no meu caderno.
> Quando o Mar aumenta, a mulher do consultório fica melhor
> Quando o Mar diminui, a mulher do consultório fica pior
Em termos práticos, isso acaba por diluir a clássica estrutura em três atos da ficção, dando a impressão, em alguns momentos, que a história não caminha a lugar nenhum.
Isso não é um problema para romances slice of life, mais interessados em acompanhar a vida de suas personagens que em expor enredos complicados. Porém, as cenas descritas por Morimi nem sempre são interessantes – e o linguajar pseudo-acadêmico de Aoyama é, simplesmente, um saco.
O filme de Ishida se livrou dessa “gordura” narrativa condensando-a em uma belíssima montagem musicada. Ao longe de apenas 2 minutos, o clipe nos traz alguns dos quadros mais belos de todo o longa. E, junto a eles, referências a cenas que Morimi desenvolve em detalhe em seu romance.
O palavrório científico de Aoyama, por sua vez, é representado por imagens de seus cadernos, pinceladas aqui e ali ao longo do filme. O recurso liberta Ishida da chatice crônica do protagonista, permitindo-o fazer o que conhece melhor: uma boa e honesta história sobre crianças.
Esses ajustes podem parecer coisa pequena, mas são mudanças que fazem toda a diferença. Não apenas na fluidez do roteiro, mas nos próprios temas que abordam.
Os Jaguadartes
Os monstros que a mulher do consultório produz não são criaturas quaisquer. Como tanto o livro quanto o filme nos deixam claro, eles têm uma origem literária.
O jaguadarte (em inglês jabberwocky) é uma criação de Lewis Carroll para o clássico Alice Através do Espelho. A arte de época mostrada no anime nada mais é que uma ilustração original de sua primeira edição.
O aparecimento dessas criaturas é uma virada importante tanto no romance quanto no anime. Nas páginas de Morimi, porém, as referências a Lewis Carroll vão muito mais longe.
No livro, os monstros aparecem logo no início da história. “Jaguadarte” entra para o vocabulário de Aoyama e seus amigos, a ponto de batizaram a floresta em sua cidade de “Bosque dos Jaguadartes”.
A relação entre os monstros e a mulher do consultório tampouco é gratuita. Em Alice Atrás do Espelho, a protagonista do País das Maravilhas retorna a um mundo fantástico, desta vez como peça em um gigantesco jogo de xadrez. Exatamente o jogo que a musa de Aoyama o convida a jogar – e que conecta o garoto às duas mulheres da sua vida.
Não à toa, a primeira tomada do filme (repetida na sua conclusão) mostra um tapete xadrez no quarto do menino.
Mais: os jaguadartes de Morimi são descritos como baleias-azuis com pernas humanas e asas de morcego. Não por acaso, já que Aoyama é obcecado por cetáceos, e suas conversas com a mulher do consultório geralmente convergem até ele. Perto do fim do livro, um sonho do garoto o coloca frente a frente com um espécime falante:
A baleia-azul estava murmurando alguma coisa.
– Jabberwock, o que você está dizendo?
– Deus às vezes comete erros – a baleia-azul disse – É apenas natural.
– Isso é inaceitável – diz a mulher.
– Todos os pinguins concordariam comigo.
– Bem, eu não sou uma pinguim.
– O mar está vindo! O mar está vindo! – a baleia-azul disse misteriosamente.
Todos esses elementos aparecem no anime. Incluindo uma estátua de baleia no Café à Beira Mar, onde Aoyama e sua amiga se encontravam para jogar xadrez.
Sem o contexto dado por Morimi, contudo, esses detalhes são pouco mais que easter eggs de seu material de origem.
A lua de prata
O surgimento dos pinguins não é o único mistério com que Aoyama tem de lidar. Logo no início do livro, o garoto escuta rumores de uma “lua de prata” que adoecia todos que olhassem para ela.
A princípio, Aoyama faz pouco caso para a lenda. É apenas quando Hamamoto chama a atenção para um fenômeno estranho escondido entre as árvores que o mito ganha traços de realidade:
Árvores cercavam a clareira. Uma terra esquecida no coração do Bosque dos Jaguadartes. Como um prato de sopa gigante esperando para ser enchido com algum tipo de líquido. Conforme eu andava por ele eu sentia que o céu era como uma tampa colocada em cima da gente. Como se a tampa da minha cabeça fosse puxada em direção ao céu.
(…).
No meio da grama, onde Hamamoto apontava, havia uma estranha esfera translúcida. De acordo com sua distância a partir de nós, o diâmetro da esfera era aproximadamente cinco metros. Ela flutuava cerca de trinta centímetros do chão. Ela não parecia usar nenhuma espécie de motor para se manter suspensa no ar. Eu sabia disto porque ela não produzia som algum.
Para o crédito de Morimi, o “mar” – como seria chamado pelas crianças – é o tipo de invenção que parece feita para uma tela de cinema.
O “mar” não é o único ringue em que o anime nocauteia seu material de origem. Ver uma motocicleta dissolvendo-se em pinguins é o tipo de magia visual que nos remete às obra-primas da animação.
A prosa de Morimi tem seus momentos de inspiração (“Nós cruzamos a rua como bolinhas de gude através de um tapete”; “A mulher assobiou […] e os pinguins se ajeitaram como cavalheiros britânicos”). É preciso, contudo, mais do que comparações criativas para vencer o dom de Ishida.
Ponto para o anime.
A iniciação amorosa
Penguin Highway não é apenas um conto de fantasia. Como toda história bem contada, é também uma fábula sobre relações humanas. No seu caso específico, com uma pitadinha de amor.
Ou, pelo menos, sua adaptação é.
Aoyama decidiu “investigar” a mulher do consultório porque estava apaixonado por ela. Hamamoto se convidou ao seu projeto porque, secretamente, sentia ciúmes. Suzuki o atazanava porque curtia Hamamoto e o via como um rival.
O amor é a linha mestra nos principais conflitos no anime. Obcecado por sua “ciência”, contudo, Aoyama parece incapaz até de acreditar em amor, quanto mais de enxergar seus efeitos. Quando fala sobre o assunto, é difícil não imaginar que estamos ouvindo as declarações de um robô:
– Ah. Então o Suzuki está apaixonado pela Hamamoto. Eu não fazia ideia. Se ele se sentia desse jeito, ele devia ter me contado.
– O Suzuki nunca faria isso.
– Por que não?
– Por que ele sente vergonha.
– Por que o Suzuki sentiria vergonha de estar apaixonado pela Hamamoto? Ficar apaixonado com pessoas é totalmente normal. Minha mãe e meu pai se casaram porque eles se apaixonaram. Se meu pai não tivesse se apaixonado eu nunca teria nascido.”
– Isso é verdade – Uchida disse, rindo – Mas você simplesmente não entende.
No anime, o diálogo aparece com pouquíssimas alterações. Porém, graças à linguagem visual de Ishida – e de um competente trabalho de dublagem – nós entendemos o tom professoral de Aoyama pelo que de fato é: o papo-furado de um garoto inseguro, intimidado pelos seus próprios sentimentos.
A literatura é plenamente capaz de passar essas ideias. Infelizmente, a prosa de Morimi não dá conta, e seus diálogos depenados, com poucos (e batidos) verbos de elocução, fazem o protagonista parecer um desalmado.
Que o próprio Morimi não dê a devida atenção aos sentimentos das suas personagens não ajuda. Em nenhum lugar isto fica mais claro que no festival de verão. Um episódio presente tanto no romance quanto no filme, mas que não poderiam ter sido apresentados de maneira mais diferente.
No livro, a cena se desenrola como uma série de encontros não relacionados, conforme o elenco da história explora as atrações da noite. Nenhuma destas trocas traz informações nova, e a sequência soa apenas repetitiva. Um meandro desnecessário em um romance que já sofre de uma falta de direção.
No anime, pelo contrário, as personagens são reunidas em uma emboscada digna de uma comédia romântica.
Aoyama encontra Hamamoto e seu pai, que ainda não conhecia – ao contrário do livro, em que já haviam sido apresentados. A mulher do consultório surge segundos depois, e Aoyama se vê espremido dentro do próprio triângulo amoroso.
Cada linha de diálogo – original do anime – é carregada de duplo sentido.
“Quer dizer que somos rivais” diz o pai, ao ouvir de Hamamoto que ela e o garoto brincam juntos. “Nós somos parceiros de pesquisa.” Uma Hamamoto enciumada diz à dentista. “Quer dizer que é por isso que você deixou de lado a nossa pesquisa?” ela diz a Aoyama com um olhar lânguido.
Atento ao que é de fato importante, o roteirista Ueda coloca a bola no campo do Aoyama. O triângulo amoroso Suzuki-Aoyama-Hamamoto dá um passo para trás, substituído por outro: Aoyama e suas duas musas.
Prova: enquanto que no livro Aoyama irrita Suzuki ao dizer que gosta de Hamamoto, no filme é o bully quem sugere que ele tem uma queda pela garota.
Não adianta se esconder atrás dos outros, Aoyama. Nesse filme, é você quem deve tomar uma decisão sobre seus próprios sentimentos.
E é, afinal, esse foco em sentimentos que nos leva à mudança mais significativa de todas:
A descoberta da sexualidade
Morimi jamais esconde que os pinguins de sua história são pretexto para algo maior. No fundo, o romance é uma crônica de seu amor pela mulher do consultório. E de como, igual a tantos garotos de sua idade com quedas por figuras maternas, ele aprendeu a superá-la.
Penguin Highway é uma indireta, criativa e psicodélica fábula sobre o primeiro amor. Esse detalhe traz aquela lufada de frescor no texto de Morimi e o previne – assim como o anime que o inspirou – de se tornar apenas mais uma fantasia escolar.
Se no livro esse sentimento pode se passar por um amor idealizado, contudo, o filme deixa claro que estamos falando de algo um tanto mais concreto: o despertar da sexualidade.
A diferença de ênfase fica mais clara quando Aoyama é convidado a passar a noite no apartamento de sua musa. No livro, a passagem é a seguinte:
Tudo o que eu podia ouvir era a chuva caindo fora da varanda e o som da mulher respirando.
Seus olhos e lábios estavam fechados, e ela dormia profundamente. Ela não falava durante o sono como minha irmã fazia.
Enquanto eu observava seu rosto, eu me flagrei me perguntando como que ele tinha adquirido aquela forma, quem decidia esse tipo de coisa. Claro, eu sabia que são os genes que decidem como seu rosto se parece. Mas não era isto que eu queria saber. Por que eu comecei a gostar tanto de olhar seu rosto? E como que os genes tinham conseguido fazer o rosto de que eu tanto gostava tão completamente perfeito? Era isto que eu queria saber.
Eu tentei escrever sobre esse mistério no meu caderno, mas eu nunca tinha escrito nada daquele tipo nas minhas anotações, então eu não soube encontrar as palavras para isso. Eu terminei apenas escrevendo O rosto da mulher, felicidade, genes, perfeição. Então eu escrevi sobre os ingredientes no espaguete da mulher e como extremamente gostoso ele tinha sido. Então eu escrevi sobre como nós tínhamos feito a salada como dois profissionais, começando com o molho, então misturando os vegetais.
Quando eu terminei de escrever, a mulher já estava dormindo.
Ocorreu-me que se ela ficasse com frio, ela podia pegar um resfriado, então eu peguei uma toalha na sua cama e e coloquei sobre ela.
No anime, não é apenas sobre a salada que Aoyama rabisca em seu caderno:
E, antes de cobri-la, seus olhos caem num ponto bem específico de seu corpo:
Essa conotação já existe no romance de Morimi. O próprio autor a coloca nos lábios de Aoyama:
Mulheres adultas não deixam homens adultos entrarem em seus apartamentos com frequência. E elas nunca dormem na frente deles. Isto só acontece se eles forem um casal. Mas a mulher do consultório me deixou entrar no seu apartamento e dormiu na minha frente. Isto porque eu era só uma criança.
Entretanto, é uma observação que não leva a nada. No parágrafo seguinte, o garoto volta a falar sobre as origens do sono e a NASA e seus planos para ganhar o Nobel. No filme, por outro lado, somos deixados com a lembrança daquela barriga descoberta. E o sentimento que algo mudou dentro de Aoyama.
Não é possível dizer que Ishida modificou seu material de origem. As duas sequências, afinal, são idênticas. Mesmo assim, o mero apelo à linguagem visual é suficiente para trazer uma bagagem que parece peitar os confins da prosa.
Penguin Highway é um romance medíocre com uma linda metáfora sobre o amadurecimento, soterrada debaixo de uma prosa insípida, um enredo recalcitrante e um protagonista antipático. Que Hiroyasu Ishida tenha construído a partir dele um filme desse calibre é praticamente um milagre – e prova de que o diretor é um dos novos talentos do anime contemporâneo.
Como um escultor respeitando os veios da madeira, Ishida enxugou Penguin Highway aos seus elementos fundamentais, libertando os temas-chave da fábula de Morimi da encheção de linguiça que os tornava difíceis de ver.
Filmes que superam os livros em que são baseados são coisa rara. Penguin Highway, porém, entra para o seleto clube dos que violam a regra. E o faz nos ensinando uma lição que muitos roteiristas – e não poucos fãs – deveriam ter em mente:
Mais conteúdo nem sempre é o melhor. E o bom criador trabalha não só com a caneta, mas também com a tesoura.
Um único quadro expressivo, encaixado em um filme sem um grama de gordura, pode nos tocar muito mais fundo que parágrafos e parágrafos de devaneios.
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Woooah!
Que texto!
Não é que uma propaganda pode trazer benefícios? KKK
Belo texto!