“Populismo” é uma palavra quente do momento. Em vários países, pelas mais variadas razões, pessoas têm tomado as ruas, as urnas e (em alguns casos) as armas contra as injustiças do status quo.

Até agora, o resultado foram políticos ineptos ou demagogos afastados do mainstream eleitoral. E a sensação desconfortável de que algo deu errado.

Se em 2013 ações de massa eram vistas com olhos otimistas, hoje em dia não são poucos os que encaram multidões com receio. A ideia de que pessoas unidas são capazes de muito – inclusive, de muita besteira – nunca despertou tanta desconfiança.

Não é de se espantar, portanto, que esses medos fossem chegar aos games.

We. The Revolution, da polonesa Polyslash, não é o primeiro game a refletir sobre os perigos de uma turba irada. Nem de situá-los em um episódio histórico. No caso, a Revolução Francesa.

Ele é, no entanto, um dos retratos mais contundes de um país à mercê de seu povo.

O game nos coloca nos pés de Alexis Fidèle, um juiz do tribunal revolucionário. No início, agimos como meros funcionários da lei, enviando bandidos comuns à cadeia. Com o tempo, percebemos que algo sinistro nos espera das sombras.

Na medida em que o Terror pinta Paris de vermelho, Fidèle se verá jogado no olho do furacão. Por meio de suas mãos, protagonizaremos os maiores eventos da Revolução Francesa, do julgamento de Luís XVI à batalha do 13 Vendemiário, que lançou Napoleão Bonaparte à vida política.

Mais do que uma aula de história, o jogo é uma verdadeira lição sobre as causas – e consequências- do populismo.

1) A ação humana é limitada. Suas consequências não

 

Um dos maiores apelos do populismo é o sentimento de que quase tudo é possível. Os problemas do mundo existem não por serem complicados, mas única e exclusivamente por má vontade. As soluções estão escondidas em uma pasta, debaixo do traseiro de políticos incompetentes. Cabe ao povo trazê-las à luz do dia.

Em We. The Revolution, é fácil pensar que nós, também, desfrutamos desse poder. Em especial quando, com a força de guilhotina, conseguimos implementar mudanças que nem os próprios revolucionários foram capazes de fazer.

Essa impressão, infelizmente, logo se dissipa.

Por um lado, We the Revolution coloca em nossas mãos um poder que burocrata nenhum seria capaz de exercer. De juiz arbitrando casos pequenos logo nos transformamos em um carrasco, padrinho político, mestre do submundo e até general.

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Ao mesmo tempo, nossa agência – nossa capacidade, efetiva, de escrever nossa própria história– diminui a cada turno.

Cada veredito que assinamos provoca uma reação nos revolucionários, nos monarquistas e nas pessoas comuns. Se qualquer um destes grupos se sentir incomodado, o resultado pode ser uma facada das costas.

Não que temos tempo para pesar nossas decisões. Tão cedo nos familiarizamos com suas mecânicas o jogo introduz um relógio. Cada pergunta que fazemos torna o povo mais irrequieto. Se a insatisfação passar dos limites, recebemos uma penalidade severa à nossa reputação.

Mesmo que você tente jogar como um funcionário “justo” da Revolução, cedo ou tarde parará de preocupar com o “certo” e o “errado”. Afagar as facções, decapitando bodes expiatórios e inocentando aliados, se torna nossa única prioridade. Não respeitá-la é arriscar o game over.

Aqueles que criticaram o jogo por “railroading” não entenderam o tipo de obra com que estão lidando. Nem, talvez, a mensagem que quis passar.

We. The Revolution é um game em que parecemos fazer muito, mas que nos constrange mais e mais a cada mecânica que introduz. Uma sensação não muito diferente daquela sentida por revolucionários da vida real, à mercê de um movimento que eles podem ter criado, mas nem por isso sabem controlar.

Manifestação dos gilets jaunes na França. Fonte

Qualquer semelhança com populistas dos nossos tempos, que prometem mundos para depois ceder aos piores vícios do establishment, não é mera coincidência.

2) A tirania dos melhores leva à ditadura dos piores

Para o irlandês Edmund Burke, o maior crítico da Revolução Francesa, um dos principais crimes do movimento foi ter empoderado uma classe vil: os advogados e homens de lei. A mesma classe que encarnamos na pessoa de Alexis Fidèle ao longo de We. The Revolution:

Quem poderia reivindicar a si que esses homens, subitamente e, como o foram, por encantamento, retirados dos mais humildes escalões da subordinação não acabariam intoxicados por sua grandeza despreparada? Quem poderia conceber que homens que são habitualmente bisbilhoteiros, ousados, sutis, ativos, de disposições litigiosas e mentes inquietas reincidiriam facilmente na sua antiga condição de obscuro antagonismo e laboriosa, baixa e improfícua trapaça? Quem poderia duvidar que, às custas do Estado, de que eles conheciam nada, eles deveriam atender a seus interesses pessoais, de que eles conheciam demais?

Burke tinha seus próprios motivos para querer o povo comum longe do poder. Poucos dos quais, eu imagino, soam muito convincentes aos seus leitores contemporâneos. Mesmo assim, é difícil ler seu Reflexões sobre a Revolução Francesa sem pensar em Alexis Fidèle.

O jogo abre com Alexis e seu mentor, Raymond Dévoyé, chegando ao fórum após uma noite de bebedeira. Raymond vomita no chão e limpa sua boca na bandeira francesa.

Uma vez no tribunal, descobrimos que o “caso”, em questão, é uma lavagem de roupa suja entre os próprios Fidèle. Seu caçula, Fréderic, bateu em um colega que acusou seu pai de ser um bêbado.

Antes mesmo de aprendermos suas mecânicas, We the Revolution nos ensina que seu protagonista é um beberrão irresponsável, que não consegue botar ordem em sua própria casa.

Horas depois, veremos esse mesmo beberrão à frente da guilhotina, controlando o destino de milhares de parisienses.

Fidèle não é o único. Os rivais que enfrenta ao longo do jogo são pessoas terrivelmente normais, motivadas pelos interesses mais fúteis. Um bufão controlado pela esposa. Um bispo que paga de ateu para escapar da guilhotina. Um político corrupto que deseja construir uma ponte. Um militar cabeça quente que decide dispersar um protesto na bala.

Que milhares de pessoas tenham de morrer por canalhas tão comuns não seria tão notável se a própria revolução não fosse obcecada com o fim mágico de todos os vícios humanos. Um delírio de virtude personificado por seu líder, o “incorruptível” Maximilien Robespierre.

Enebriados pela própria grandeza, Fidèle e seus comparsas não entendem que eles próprios podem ser parte do problema. E que o sistema que defendem, feitos para homens perfeitos, não tem contingência para o erro humano.

Os “revolucionários”, afinal, são sempre bons, de forma que os ruins só podem ser monarquistas disfarçados. Nada diferente de tantos “-ismos” contemporâneos, que se livram de militantes problemáticos rotulando-os de apóstatas. Não sem antes usar de seu serviço sujo para levar à cabo as ambições do movimento.

E se os revolucionários são sempre bons, também a “Revolução” deve ser sempre boa. De forma que se algo está errado, deve ser culpa do que veio antes. Mesmo que este “antes” sejam as regras básicas que nos separam da anarquia.

Segundo um outro Alexis, o problema não é a hipocrisia, mas o idealismo em excesso:

Por mais divididos que eles pudessem ter estado no resto do caminho, todos eles se agarraram a esse mesmo ponto de partida: todos eles pensaram que era correto substituir os costumes complexos e tradicionais que guiavam a sociedade de seu tempo com as regras simples e elementares emprestadas da razão e da lei natural.

Impedidos de participar da política, as pessoas da época cultivaram ideias infantis sobre como se rege uma sociedade.

As pessoas de hoje não têm a mesma desculpa. Mesmo assim, elas ainda invocam delírios parecidos, acreditando que qualquer problema pode ser resolvido se eles tiverem carta branca para apagar as regras que não entendem.

Mal sabem eles que a borracha será brandida não por eles próprios, mas pelos Alexis Fidèles da vida. E que, sem as normas retrógradas para proteger seus direitos fundamentais, apenas a boa-vontade dos carrascos os salvará da guilhotina.

3) O pessoal é político. O inverso… não necessariamente.

As víboras da revolução e a voz da turba não são as únicas pressões com que Fidèle precisa lidar. Em We. The Revolution, precisamos também cuidar de uma família que está prestes a se desintegrar.

Alexis e sua esposa Mathilde vivem um casamento complicado. Seu filho mais velho, Bernard, é um revolucionário apaixonado, enquanto que seu pai, Alaric, vê a política com receio. Alexis é seu filho mais novo. O primogênito, Bruno, teve o nome manchado na justiça e foi enviado para morrer nas guerras da revolução.

Do conflito entre essas personagens surge um drama poderoso que servirá de enredo à carreira de Fidèle.

Cada decisão que tomamos afeta sua vida pessoal de alguma forma. Alguns réus despertarão a raiva ou a simpatia de sua família. Uma sentença desfavorável pode ganhar seu favor – ou perdê-lo para sempre.

Quanto mais Fidèle paga pelos vícios da revolução, mais difícil fica conciliar as posições de de pai e juiz. Infelizmente para ele, as engrenagens da política giram independente de seus esforços.

Em dado momento, percebemos que investir em sua vida pessoal é uma causa perdida. A Revolução cobra tudo e não oferece nada em retorno. Nada, pelo menos, que sirva de alento a sua família.

Um biscoito para quem, ao vestir os sapatos de Fidèle, não se lembrou das tantas famílias reais que a última eleição desuniu. Divididas por ideólogos que pouco se preocupam com as pessoas que os apoiam, e que, nos momentos de dificuldade, jamais erguerão um dedo para consertar as relações que destruíram.

De tão preocupados que estivemos arrumando briga com nossa família, é capaz de termos esquecido que é de rixas como essas que extremistas nascem.

Sem ninguém para acolhê-los, militantes têm as duas orelhas livres para escutar as ideias mais odiosas. E rancor de sobra – contra o sistema, mas também contra seus entes queridos – para pô-las em prática.

4) O rancor é o motor da história. Ignorá-lo é ser seu cúmplice

“Nós estávamos encantados pela ideia da liberdade” diz Fidèle no início do jogo. Com o filho pequeno no pescoço, ele observa um homem ser linchado e enforcado em praça pública. Ao seu lado, uma mulher ri do espetáculo.

Não é preciso muito para adivinhar que bem mais que uma “ideia” é necessária para que as coisas cheguem a esse ponto. Ideias são bonitas, mas, para motivar as pessoas a fazer o pior, é necessário algo mais forte.

We. The Revolution, de fato, pinta a Revolução como uma batalha de rancores. Rancores do povo, manipulado por demagogos convincentes, mas também rancores pessoais, na medida em que Fidèle acumula vítimas.

Nas cutscenes do jogo, esses sentimentos são representados como uma infecção. Um vírus, um câncer rubro que se alastra do agressor ao agredido, do demagogo ao doutrinado até enlouquecer toda a sociedade.

Não são poucos os movimentos que prometem acabam com as injustiças, extinguir os privilégios, punir os culpados.  Mal sabem eles que até boas ações podem levar ao inferno. E que a melhor das intenções não impede a bala de matar um inocente, os direitos de uma pessoa de serem violados, um indivíduo a pagar por crimes que não cometeu.

Essas pessoas não estão interessadas em “males menores”, “fatalidades” ou “reações legítimas”. E ao se depararem com ideólogos arrogantes, protegidos por um sistema cúmplice, elas buscarão os ouvidos de quem estiver disposto a escutá-las. Mesmo que estes sejam os piores fanáticos que a humanidade produziu.

We, the Revolution é a parábola perfeita para quem acredita que “socar nazistas” (ou qualquer outro indesejável) é o caminho para construir uma sociedade melhor. Levando esta estratégia a cabo, Fidèle transforma uma Paris recém-libertada  em uma zona de guerra à mercê da barbárie.

A salvação, quando chega, vem pelo fuzil de um certo militar. Um homem, o próprio jogo nos lembra, que estaria fadado a se tornar um ditador.

“Quem será o próximo?” pergunta o narrador.  Ele não está falando de Napoleão Bonaparte. A pergunta, afinal, não é para Fidèle. É para nós.

We. The Revolution é uma fábula para nossos tempos. Uma crítica incisiva – e emocional – sobre os danos da polarização política no espírito humano.

Não é uma coincidência que o game tenha vindo justamente da Polônia, país que conhece, melhor que poucos, o que é viver sob o jugo da tirania – venha ela da esquerda ou da direita. E que sofre, nos dias de hoje, com sua própria dose de populismo.

Passeata do Ruch Narodowy, partido de extrema-direita polonês. Fonte

De This War of Mine a Frostpunk, passando pelo monumental The Witcher, a indústria polonesa tem mostrado ao mundo que tem uma voz própria. Calcada na moderação, no perdão, no apelo – quase desesperado – aos melhores anjos da nossa natureza.

Resta saber se estamos dispostos a escutá-la.