O Dia de São Patrício não é um festival muito popular entre brasileiros. Se você for um fã da cultura irlandesa, porém, já deve ter ouvido desta desculpa para vestir-se de verde e virar alguns pints de Guinness.
Realizada no dia 17 de março, a festa homenageia o missionário que converteu a Irlanda ao cristianismo. Com o passar dos séculos, ela perdeu as conotações religiosas, tornando-se uma celebração da cultura irlandesa com um todo.
E uma desculpa para beber cerveja.
Para quem está acostumado com esse carnaval fora de época (ou com o santo sisudo que lhe serve de inspiração), a imagem que abre esse artigo deve parecer estranha.
Não devia. São Patrício, afinal, é muito mais que uma figura histórica ou (pior) um simples ícone da Igreja. Para o bem e para o mal, o missionário de roupas verdes é um símbolo da Irlanda que já inspirou livros, músicas e até batalhões de soldados.
Não era de se espantar, portanto, que ele (ou suas façanhas) ganhassem um pé na cultura pop. A imagem da capa, da autoria de Jim FitzPatrick (autor da famosa arte do Che Guevara) é apenas uma das muitas homenagens modernas à era lendária de Patrício e seus sucessores.
Com o último St Patrick’s Day fresco na memória, essa é uma oportunidade perfeita para relembrar algumas delas.
O algoz de Crom Cruach
A Patrício é atribuído o milagre de ter expulsado as cobras da Irlanda. Incluindo Crom Cruach, um Deus ou demônio ou aparição em forma de serpente que (supostamente) era adorado pelos antigos pagãos.
Se você é um fã de animação esse nome talvez lhe soe familiar. De fato, o arqui-inimigo de Patrício é o vilão principal de O Segredo de Kells, animação do estúdio irlandês Cartoon Saloon indicada ao Oscar em 2009.
O longa é uma fantasia sobre a criação do Livro de Kells, uma cópia dos evangelhos tida por muitos como o livro mais belo da Idade Média.
Seu protagonista é Brendan, um jovem noviço que se vê, ao lado de um grupo de monges, na tarefa de escrever o tomo. E protegê-lo de saqueadores vikings que ameaçam passar a Irlanda inteira ao ferro e ao fogo.
Tudo isso às sombras de Crom Cruach, um demônio ancestral de quem deve obter um artefato vital para o término do livro.
Brendan não é Patrício, mas sua luta contra seu velho algoz (uma alegoria clara à serpente da Bíblia) bebe da mesma fonte que transformou o padroeiro num ícone nacional.
Sua missão maior, terminar “o livro que transforma a escuridão em luz”, não poderia contribuir mais à imagem do missionário como um pioneiro destemido, desbravando perigos indizíveis para trazer a salvação aos homens.
O Escravo, O Mensageiro
Se O Segredo de Kells toca apenas de leve na figura de Patrício, não é o caso de outras obras de Tomm Moore, co-fundador do Cartoon Saloon.
Anos antes de ganhar as telas, o ilustrador trabalhou com o escritor Colmán Ó Raghallaigh para trazer a lenda do santo aos dias de hoje.
O resultado foram duas graphic novels, que juntas esmiúçam a lenda fascinante do padroeiro da Irlanda. An Sclábhaí (“O Escravo”) como como Patrício, um pagão da Britânia romana, é capturado e vendido por piratas irlandesas. Seis anos de cativeiro o aproximam da fé cristã – e da coragem para fugir de volta à casa.
Em An Teachtaire (“O Mensageiro”) ele retorna aos braços de seus captores, armado com a convicção de um pioneiro e o peso de todo o reino dos céus. Nas páginas de Moore e Ó Raghallaigh, a conversão da Irlanda se torna quase um conto de vingança, em que druidas e reis gaélicos se defrontarão com um escravo e sua missão divina.
Infelizmente, as HQs só foram publicadas em irlandês (embora sua editora, a Cló Mhaigh Eo, tenha disponibilizado uma tradução de seu roteiro).
Por sorte (e como era de se esperar), também em inglês escrevem os quadrinistas da Ilha Esmeralda.
A Estrada do Pântano
The Bog Road (“A Estrada do Pântano”) escrita ano passado por Barry Keegan, é a HQ sobre uma Irlanda desencantada que nunca soubemos precisar.
Como O Segredo de Kells, a HQ não foca diretamente em Patrício. Ele é, porém, o estopim do conflito que se desenrola nas páginas da trama:
A derrota dos Antigos Deuses.
Moradores de uma cidade no interior da Irlanda descobrem que uma antiga criatura vive em seus poços de turfa. Quando uma estrada é construída sobre o pântano – e motoristas começam a tombar mortos – o medo se transforma em guerra aberta.
Para nossa (nem tão grande) surpresa, a criatura não é o herói de uma fábula ecológica, e sim Na Sliogán, uma das antigas deusas da Irlanda pré-cristã.
De seu conflito com os moradores se desenrola um pequeno panteão de divindades esquecidas, batalhando para sobreviver em um mundo que não mais as venera.
A HQ, que já foi comparada aos trabalhos de Neil Gaiman, é ao mesmo tempo familiar e inusitado. Keegan evita rostos conhecidos, trazendo à vida criaturas do folclore local em vez de deuses celebrados da mitologia celta.
Nada mais justo para retratar a Irlanda que o próprio Patrício deve ter conhecido. Não uma ilha regida por uma religião homogênea e unificada, e sim por uma variedade de deuses locais, associados a rios, montanhas e, é claro, pântanos.
De São Patrício ao St. Patrick’s Day.
Tudo diz respeito a São Patrício, ou à Irlanda meio histórica, meio fictícia em que ele fez sua fama.
Mas e sobre o St. Patrick’s Day? O carnaval da Ilha Esmeralda, que enlouquece turistas na mesma medida em que faz irlandeses barricarem suas casas?
Curiosamente, quem melhor o trouxe à ficção foi ninguém menos que um escritor brasileiro.
Diga a Satã que o Recado foi Entendido de Daniel Pellizzari retrata o caos de uma Dublin boêmia de maneira a dar inveja até a seus pubs.
Seu protagonista é Magnus Factor, golpista que lucra sobre turistas na capital irlandesa. Sócio de uma empresa que oferece passeios guiados, Magnus se especializa em criar roteiros inventados. Nenhuma das pessoas, edifícios ou eventos mencionados em seus tours existem de verdade.
Ao longo de uma narrativa rápida e endiabrada (com o perdão do trocadilho), Factor trombará com o crime organizado, uma cabala de estudantes iconoclastas e até mesmo uma seita que pretende ressuscitar Crom Cruach, o velho algoz de São Patrício.
O romance faz parte do projeto Amores Expressos, iniciativa que enviou escritores brasileiros a cidades ao redor do mundo para escreverem um livro quando retornassem.
Isto fica evidente no texto, que em momento algum esconde seu sotaque estrangeiro. Pellizzari, de fato, escreve como um perfeito estrangeiro, gabaritando paradas turísticas como o Trinity College, Glendalough e a Península de Howth.
Justamente por isso, ele é um retrato cirúrgico, cruel e irreverente de uma Dublin assediada por viajantes. Seu livro é uma descrição perfeita da capital irlandesa na alta temporada, dividida entre uma cultura gaélica reduzida a souvenirs e turbas de beberrões que falam todas as línguas – menos, às vezes, o inglês.
Pellizzari diz ter se surpreendido com o número estrangeiros em Dublin, impressão que o bairro do Temple Bar, coração do St. Patrick’s dublinense, não falha em passar.
Navegando por suas ruelas numa noite de euforia, é impossível não se lembrar dos personagens de Pellizzari, reféns, como diz um crítico, de uma “desorientação geral”.
Mentira. Desorientados eles podem estar, mas saber muito bem para onde ir: o balcão do pub mais próximo.
Faça uma homenagem você também e dedique uma cerveja à memória do santo. Patrício agradece.
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