O que faz a história de um game inesquecível?

Essa é uma pergunta quase tão antiga quanto os games em si, que ganhou força na última década, depois de Roger Ebert, o grande crítico de cinema, declarar que “jogos nunca poderão ser arte”.

Não foram poucos os designers que responderam ao desafio. Cada um, porém, chegou a uma conclusão diferente.

Para alguns, games deveriam imitar a arte cinematográfica por excelência: o cinema. Esta visão ganhou o mundo AAA sob a pena de Quantic Dream, mas está igualmente presente em vários walking simulators e revivals de adventure games. Games pouco ou nada interativos, que oferecem uma experiência audiovisual mais do que um desafio lúdico.

Para outro, o caminho era imitar os livros. Esta sempre foi a escolha de RPGistas, que de Planescape: Torment a Shadowrun: Hong Kong ofereceram jogos densos de quests elaboradas, mas também mecânica e visualmente conservadores.

Outros, ainda, decidiram explorar ao máximo o que a mídia interativa tinha a oferecer. A “Renascença indie” ofereceu – e ainda oferece – muitos exemplos desses experimentos, alguns bens sucedidos, outros nem tanto; todos igualmente provocativos.

“Her Story”, um dos games narrativos mais experimentais do mercado.

Eu sempre defendi que games são uma mídia híbrida e não deveriam se limitar a nenhuma fonte. Como o ballet, que combina coreografia, música, figurino e cenografia, eles deveriam passar sua mensagem com sons, imagens e gameplay, sem esquecer nenhum dos três.

Quão excitante é encontrar um jogo que faz exatamente isso, da melhor forma possível.

GRIS

GRIS é um game que poria um sorriso nos lábios de Roger Scruton. Se existe em algum lugar uma “beleza universal”, o jogo de estreia da espanhola Nomada Studio chega o mais perto possível de representá-la.

Sua história acompanha a jornada de uma garota buscando tirar sentido de um mundo dilapidado.

Ela se chama Gris (“cinza” em espanhol), e cinzento também é o cenário que percorre. Uma cena inicial a mostra agarrada à garganta, incapaz de falar. Na medida em que recobra sua voz, a cor paulatinamente volta ao seu mundo – e a verdade sobre seu trauma começa a vir à tona.

Se o enredo lembra o conteúdo programático (e, muitas vezes, panfletário) de games americanos, a verdade não poderia ser mais diferente. GRIS é um jogo abstrato por natureza, que nos convence inteiramente por sensações.

Seu interesse está mais na dor que em seus gatilhos. Por meio de um platformer com quebra-cabeças, entramos na mente de uma garota assolada por uma dor psíquica. As imagens que conjura – seu corpo despedaçado, um líquido negro invadindo seus pulmões, monstros à espreita – soarão familiar a todos que tenham sofrido um grande trauma, independente de sua origem.

Torment: Tides of Numenera precisou de 1 milhão e 200 mil palavras para contar sua história. GRIS não usa praticamente nenhuma além de seu título e das instruções do menu principal. E transmite seu ponto com uma eloquência com que os escritores da inXile poderiam apenas sonhar.

Os criadores da Nomada Studio nos lembram que há mais na narrativa que pontos, vírgulas e blocos de texto. E fazem o melhor uso de cada um desses recursos, em três horas que passam rápido, mas de que dificilmente esqueceremos.

O gameplay como argumento

O designer e professor de games Ian Bogost diz que a característica fundamental dos jogos são os seus processos.

Enquanto que textos dependem de frases, metáforas e descrições, e filmes, de argumentos visuais, games passam uma mensagem por meio das regras de seus mundos virtuais.

Ao bloquear certos caminhos do jogador, ele o guia às fases certas. Ao punir certas escolhas e recompensar outras, força o gamer a aceitar suas normas (ou a sofrer tentando desafiá-las).

Essa propriedade, que ele chama de retórica procedimental, é o que separa games de filmes, livros ou outras mídias.

Sem contar com uma única linha de diálogo, GRIS conta com essa retórica desde o primeiro momento.

Tudo, da descoberta de suas mecânicas aos seus objetivos, deve ser inferido por tentativa e erro. Sem nada que se pareça com um tutorial, cabe ao jogador testar suas opções, aventurando-se –como a protagonista – por uma terra fustigada pela solidão.

Tal escolha poderia se tornar um fardo, não fosse a ausência de fail states. Estruturado como uma série de quebra-cabeças, GRIS nunca pune o jogador com a morte, mesmo quando o antagoniza com boss fights ou limites de tempo.

Pelo contrário, uma “derrota” implica apenas na queda a uma área anterior.

A Nomada justifica sua decisão vendendo GRIS como um jogo propositalmente fácil. É notável, porém, como isto contribui a sua mensagem.

Quando tomamos o controle de Gris, tudo o que podemos fazer é movê-la, debilmente, de um canto a outro. Pressionar a tecla espaço faz com que ela sucumba de exaustão. A tecla L, por sua vez, produz apenas um ganido abafado – tudo o que restou de sua voz.

Na medida em que solucionamos os quebra-cabeças também a garota recobra suas funções. Ela aprende a saltar, então a nadar e voar. Quando finalmente reaprende a cantar, vemos o cenário desabrochar em uma explosão de cores e movimento.

É a pista que faltava para entender que seu conflito não é externo, e sim interno. Embora naveguemos por prédios surreais e paisagens desoladas, a verdadeira jornada é pela mente da própria Gris.

De onde a ausência de fail states subitamente ganha sentido. Os perigos da mente não destroem nosso corpo: eles abalam nossa perseverança. Presa em seus quebra-cabeças, Gris já foi derrotada. Cabe a nós ajudá-la a reencontrar sua força. E ensiná-la a construir, para si própria, um mundo melhor.

A música como leifmotiv

Roger Ebert pode não ser o único a duvidar que games sejam arte. Poucos, contudo, ousariam criticar a “arte” de um de seus elementos principais: a trilha sonora.

De Yoko Shimomura a Clint Mansell e Joe Hisaishi, jogos sempre atraíram o melhor que a música tem a oferecer.

Berlinist, trio catalão que assina a trilha de GRIS, não fica para trás. Suas faixas, uma fusão de música de câmera, temperos eletrônicos e o focal etéreo de Gemma Gamarra, comandam atenção de uma maneira que poucos compositores seriam capazes de igualar.

Mais do que isso, sua música se mostra fundamental para dar sentido àquilo que jogamos.

Após restaurar o vermelho ao seu mundo monocromático, Gris precisa atravessar um deserto. No caminho, é fustigada por uma tempestade de areia. Caso o jogador não encontre abrigo (ou faça uso de uma habilidade especial), os sopros podem desfazer seu processo, lançando-o de volta ao início.

Cada lufada é acompanhada por uma escala no órgão (a faixa “Persistence”), em contraste com o piano que forma a base instrumental. É o suficiente para que um nível simples ganhe uma medida inimaginável de tensão.

https://www.youtube.com/watch?v=H7cYdO0zHEc

Cada fase vencida leva Gris de volta a uma mão de pedra fraturada. Seria ela a mesma estátua ou esculturas diferentes, espalhadas pelo seu cenário surreal?

Quem nos responde, é a música, repetindo um leitmotiv a cada nova visita (“Gris, Pt.1”, “Opaque”, “Symmetry”). Em sua versão mais apoteótica (“Gris, Pt.2”) ouvimos a reprise do órgão de “Persistence”, relembrando os esforços da protagonista para chegar àquele ponto.

https://www.youtube.com/watch?v=y3YP-j-76i4

Que “Gris, Pt.2” possua um componente vocal – cantado pela própria Gris assim que recupera sua voz – enfatiza a finitude do clímax e reforça o sentido de nossa jornada: restaurar aquela estátua, que nada mais é que ela própria: despedaçada, mas finalmente remontada.

Cores como mensagem

Com um visual tão presente – e inesperadamente bonito – dizer que GRIS usa sua arte para contar sua história chega a ser um pleonasmo. Mesmo assim, há uma peculiaridade na sua direção de arte que vale a pena comentar.

O game inicia com um predomínio do branco, em um cenário que lembra, em certos frames, uma pintura com carvão.

Cada fase completada restaura uma cor à paisagem. Porém, também a torna mais escura. Embora o efeito venha e volte ao sabor dos níveis, é notável que seu estágio final seja uma paisagem noturna, com predomínio do roxo e azul.

Restaurar a si mesma, de fato, implica em viajar pela escuridão. Isso fica claro quando Gris é confrontada pelo seu algoz, uma massa amorfa de negrume que assume diversas formas, até se revelar como seu próprio lado negro.

Os puzzles das fases finais incorporam essa escuridão como mecânica, com plataformas que desaparecem na falta de luz e corredores escuros, perdidos nas sombras.

Nada por acaso. As escolhas são parte de uma mensagem específica sobre o que significa crescer.

Mesmo nos seus momentos mais coloridos, o mundo de Gris é sempre solitário. Embora a protagonista receba ajuda de outros personagens, a maior parte de seus desafios precisa ser vencida apenas por ela.

E tais desafios a levam de encontro à escuridão. Que chegam, no clímax, a envolvê-la quase por completo.

Gris não é uma heroína de battle shounen, capaz de triunfar sobre o impossível com a força da amizade. Seus demônios pessoais exigem soluções igualmente pessoais. É dever dela – e dela apenas – tornar-se forte o suficiente para libertar-se das amarras.

Não se vence a escuridão escondendo-se na luz. Precisamos encará-la de frente e derrotá-la em seus próprios termos.

Pois o mundo, em toda sua beleza, é feito de luz tal como de sombra. E a vida não é branca nem negra, mas alguma coisa entre os dois. Cinza, como nossa protagonista.