Obsidian e Bethesda têm uma relação tempestuosa.
Em 2010, a equipe da primeira, chefiada por Chris Avellone, lançou Fallout: New Vegas, um dos mais celebrados jogos da franquia. Seu publisher, a Bethesda, prometeu um bônus aos criadores se o jogo ultrapassasse a nota 85 no Metacritic.
New Vegas obteve 84. O bônus foi negado. Pelo contrato com a Bethesda, a Obsidian também foi excluída dos royalties. Dos cerca de US$ 300 milhões que o game arrecadou, nenhum centavo parou nos bolsos da companhia.
Oito anos depois, a produtora parece ter sido atingida por um karma guiado à laser.
Fallout 4, lançado em 2015 sem qualquer participação da Obsidian, vendeu bem, mas foi atacado por fãs por desrespeitar a lore da franquia. E Fallout 76, o MMO que glamoriza o genocídio nuclear, foi chamado de “maior mico dos games nos últimos tempos”.
Foi a Obsidian, porém, que disparou o tiro de misericórdia. Anunciado no começo no mês, The Outer Worlds é um Fallout em tudo menos no nome, cujo trailer faturou aplausos na mesma medida em que 76 atraiu vaias.
Parceria entre a equipe de New Vegas e os criadores originais da franquia Fallout, o lançamento parece a vingança de autores que perderam, por um motivo ou outro, o controle sobre sua própria obra.
O próprio tom jocoso do trailer, com sua caricatura de corporações gananciosas e insensíveis, soa como um comentário do atual estado da indústria AAA.
“Bem vindo à fronteira da Galáxia” diz uma personagem. “Bem, pelo menos era até as corporações a comprarem, darem-lhe uma marca e começarem a vendê-la a preços estapafurdiamente inchados”.
“Enfrentar a corporação nos deixou com duas escolhas” diz outra “Ruim e pior”.
“Mas tudo bem, eu acho. O importante é que você continue a ser você”.
Chris Avellone e os criadores da Obsidian não foram os primeiros a sentirem o lado áspero do carinho corporativo. Pelo contrário, essa guerra fria – às vezes, não tão fria – entre artistas e os donos do jogo é tão característica dos games quanto seus pixels e leaderboards.
Uma mídia sem autores
Warren Robinett, designer do game Adventure, foi quem disparou um dos primeiros salvos. Em 1978, era política da Atari dissociar os nomes dos criadores dos jogos que faziam. Autoria, para a empresa, deveria ficar com a marca, não com as pessoas que a compunham.
Impedido de chamar o game de seu, Robinett escondeu seu nome em uma fase secreta. A brincadeira, homenageada em Jogador No 1, se tornou um dos primeiros easter eggs da história dos games.
O protesto de Robinett inspirou um grupo de programadores a abandonar a Atari e criar sua própria publisher– a Activision. Embora sua empresa tenha vingado (e como!), a filosofia contra que se rebelou estava longe de morrer.
Ao contrário de filmes (vistos como a obra de um diretor) ou seriados (a obra de um showrunner ou roteirista), games, sobretudo os AAA, são encarados como obras de corporações.
É verdade que certos criadores, como Sid Meier e Hideo Kojima, cresceram o suficiente para estamparem seus nomes em franquias. Mesmo assim, é nos estúdios (quando não nas produtoras) que a maioria dos gamers pensa quando têm de enumerar seus favoritos.
Pillars of Eternity, assim, seria um “game Obsidian”; Assassin’s Creed, um “game Ubisoft”; Mass Effect, um “game Bioware”. Mesmo que cada título na franquia tenha, às vezes, uma equipe diferente – ou, no caso de Mass Effect: Andromeda, um estúdio completamente distinto.
A demissão de Hideo Kojima anos atrás mostra que nenhuma estrela é grande demais para ter o tapete puxado sob os pés. E – o que é pior – que essas companhias estão dispostas a percorrer longas distâncias para apagá-los de suas obras.
No divórcio com o criador de Metal Gear, a Konami fechou a subsidiária com seu nome – Kojima Productions LA – cancelou um de seus projetos pessoais e removeu seu nome das artes da capa.
A Konami não foi a única empresa japonesa a colocar criadores em seu lugar. John Szczepaniak, autor de The Untold History of Japanese Developers (“A História Não Contada dos Desenvolvedores Japoneses”), contou que estúdios adotam a linha dura contra qualquer arroubo de individualismo.
Segundo ele, algumas produtoras proíbem que nomes de staff sejam divulgados no Japão. Isto fez com que o Castlevania original permanecesse um jogo anônimo até 2013, quando Szczepaniak identificou seu possível criador como um certo Hitoshi Akamatsu, do qual quase nada se sabe.
Caso ainda mais intrigante é o da TOSE. Com escritórios em vários países e mais de 1000 lançamentos em 40 anos de carreira, a empresa é uma das mais prolíficas do mundo dos games. Mas ninguém sabe quem trabalha para ela, ou que jogos, exatamente, fizeram.
A empresa “ninja” – nas palavras de Koichi Sawada, seu representante nos EUA – é focada quase que exclusivamente em outsourcing e evita tomar crédito pelo que faz. “Nossa política é não ter uma visão” disse ele em uma entrevista à Gamasutra.
Embora seus desenvolvedores sejam listados nos créditos de seus games, muitos deles usam pseudônimos, continuando uma prática comum na indústria desde a era dos fliperamas.
Encontrar um criador no palheiro do anonimato, como o exemplo do Castlevania mostra, é mais difícil do que parece.
É difícil não ver nessas decisões a ética corporativista de muitas empresas japonesas, que punem estrelismos e premiam a conformidade.
“A relação entre criadores e jogos” diz Yusaku Yamamoto, jornalista japonês, no prefácio do livro Untold Story, “é como a relação entre os átomos e as moléculas que compreendem toda a matéria na Terra”.
Um átomo – não um indivíduo, um artista, muito menos um gênio – é, de fato, como foi tratado Toru Iwatani, criador do lendário Pac Man. Em uma entrevista de 2007, ele diz que não recebeu nenhum prêmio ou honraria pela sua contribuição aos games. “Eu era apenas um funcionário”.
Crunch, créditos e lágrimas
Mas não é só corporativismo que leva criadores a cair das graças de seus publishers. E seria ingênuo achar que esse é um problema apenas do Japão.
No Ocidente, o caso mais revoltante talvez seja o da Rockstar e Team Bondi, desenvolvedora australiana responsável por L.A. Noire. Cerca de 100 criadores foram sumariamente cortados dos créditos, ou listados apenas na sessão “Agradecimentos Especiais”.
Segundo ex-membros da Team Bondi, integrantes da equipe que foram desligados do estúdio durante o desenvolvimento não tiveram seu trabalho reconhecido.
A acusação é preocupante quando levamos em conta a terrível cultura de crunch promovida pela Rockstar sobre seus funcionários e estúdios parceiros. Criadores indispostos a aceitar condições insanas de trabalho – que, em Red Dead Redemption 2 contou com jornadas de até 100 horas semanais – poderiam se ver podados dos créditos.
Como tantas outras coisas nos games, a prática não tem nada de novo. Já em 1984 Arthur Abraham, criador de King’s Quest e da engine AGI, foi omitido dos créditos após ter sido demitido da Sierra, responsável pelo game. Richard Moss encontrou casos parecidos entre desenvolvedores de Assassin’s Creed e Starcraft.
Bem vindos ao futuro… tentem não quebrá-lo
Estariam as coisas prestes a mudar? Em alguns sentidos, elas já mudaram.
Bastante – e para o bem.
A própria trajetória da Obsidian nos seus anos pós-New Vegas é uma prova dos novos tempos. Com Pillars of Eternity – e seu 77 mil backers no Kickstarter- o estúdio provou o mérito do crowdfunding para colher os frutos de seu prestígio.
O mercado indie, de fato, deu a muitos criadores o poder de lidar com suas obras – e interagir com seus fãs – nos seus próprios termos. E ferramentas intuitivas, como Construct 2, RPG Maker ou a engine Unity permitiram que qualquer um se tornasse um desenvolvedor, com relativamente pouco custo e conhecimento prévio.
Porém, como que mora sozinho bem sabe, a faca da independência tem dois gumes. Com a democratização dos games, o mercado nunca foi tão concorrido – e a chance de ser notado, tão pequena.
Em 2016, o número de jogos lançados no Steam foi tão grande que representou 40% de todos os games já lançados na plataforma. Mesmo esses números empalidecem em comparação com os de 2017, que contou com quase o dobro de lançamentos.
Tal como aconteceu com a literatura e a música, o mercado independente de games virou um mar vermelho de shovelware. A utopia, como bem disse Eric Kain, virou um Velho Oeste.
E a equipe da Obsidian, de novo, parece ter levado uma bala perdida. Após Pillars, o desempenho de seus games não foi lá o esperado.
Tyranny, lançado em 2016, teve uma recepção morna e gerou faíscas entre os desenvolvedores e a publisher Paradox, universalmente amada como a defensora dos underdogs. O motivo teria sido “diferenças culturais” sobre processos de trabalho entre a californiana Obsidian e seus produtores suecos.
Num golpe de ironia, considerando a maneira como nós, ocidentais, criticamos a hierarquia nipônica, a empresa sueca pareceu horizontal demais aos desenvolvedores americanos.
Agora, a Obsidian está prestes a ser comprada por ninguém menos que a Microsoft, o maior sinônimo de impessoalidade corporativa que não veste orelhas de rato. A gigante anunciou que comprará também a inXile, fundada pelo lendário Brian Fargo, que trouxe Wasteland e Planescape: Torment atualizados ao século XXI.
A fantasia de uma Terra do Nunca independente, em que Avellone, Fargo e seus pares poderiam compensar com juros o que sofreram na grande indústria, parece ter acabado.
Torçamos, para o bem deles – e tantos outros na sua situação – que a “corporação” de que se tornarão uma engrenagem não se mostre tão patética como a que satirizam em The Outer Worlds.
Ou, pelo menos, para que dessa vez recebam seu bônus.
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