Alguns filmes nos dizem tudo o precisamos só de olhar suas fichas.

P.A. Works é um estúdio conhecido pelos seus visuais deslumbrantes. Kenji Kawai, por suas trilhas sonoras comoventes. Mari Okada, pelos roteiros mais chorosos do mundo dos animes. Ao combinar os três em um mesmo projeto, sabemos exatamente o que nos aguarda: um filme grande, farto, capaz de fazer o marmanjão mais sisudo se afogar em lágrimas.

A parceria tem nome e sobrenome: Sayonara no Asa ni Yokusoku no Hana wo Sazarou, ou Maquia: When the Promised Flower Blooms. Estreia de Okada como diretora, o longa oferece isso e muito mais.

O enredo

A história acompanha as desventuras de Maquia, membro de um povo conhecido como Iorph.  Sua raça tem a aparência de adolescentes loiros e vive de tecer mantas cujas tramas podem ser “lidas” como um escrito. Eles também são imortais.

Iorph vivem isolados, pois sua longevidade proíbe relações normais. “Você não deve amar ninguém” uma anciã diz a Maquia. “A partir do momento em que amar alguém você estará de fato sozinha”.

A solidão de Maquia, porém, está apenas começando. Interessado em gerar uma linhagem que, como os Iorph, viva para sempre, o líder do reino de Mezarte decide sequestrar uma noiva da tribo e forçá-la a se casar com seu herdeiro.

Maquia sobrevive ao ataque, mas se vê jogada de cabeça em um país dilacerado pela guerra. Suas andanças a levam ao encontro de um bebê cuja mãe foi assassinada por soldados. Contra seu melhor julgamento, a garota decide adotá-lo.

A história de uma mãe arrastando sua criança por um campo de batalha é uma das imagens clássicas da literatura de guerra. Bônus se a criança for adotiva: uma metáfora poderosa (e esperançosa) de que um povo dilacerado é capaz de se reatar. Não é à toa que Kono Sekai no Katasumi Ni , conto sobre a tragédia de Hiroshima, escolheu esta mesmíssima imagem para encerrar sua narrativa.

Maquia poderia se tornar outra versão desse mote, não fosse pela imortalidade de sua protagonista. Como Iorph, Maquia está condenada a viver para sempre nas peles de uma adolescente. Já seu filho, Ariel, está fadado a crescer, envelhecer – e, inevitavelmente, morrer nos seus braços.

Mommy issues

Mari Okada ganhou fama como a rainha indisputável do melodrama. Pela força bruta de seus temas,Maquia é o trabalho mais ambicioso, sensível e visceral que já veio de sua pena.

Que o abismo entre Maquia e Ariel seja uma tragédia não anunciada não reduz em nada o poder de sua execução. O desenvolvimento nos chega aos poucos, uma morte por mil pequenos cortes.

A imortalidade força Maquia a uma vida itinerante. Para não atrair suspeitas, mãe e filho circulam de cidade a cidade, tendo apenas a companhia um do outro.

Ariel, porém, deseja separar-se. É possível culpá-lo? Um adolescente não deveria ter de dividir a cama com uma garota da sua idade. Talvez ele deseje criar raízes, fazer amigos. Viver uma vida que tenha sentido. Senão isso, uma vida que ao menos que pertença a ele, defeitos e tudo.

Em uma cena, Ariel é forçado a beber além da conta por seus colegas de trabalho. Ele retorna a casa embriagado, vacilante de enjoo, medo e culpa. O reencontro com a mãe não termina bem. Ariel precisa de uma figura de autoridade. Um porto seguro. Eternamente em fuga, fisicamente presa na juventude, Maquia é incapaz de oferecer qualquer um dos dois.

Okada teve uma relação tempestuosa com sua própria mãe, e é tentador ver na protagonista um desabafo pessoal. Uma mãe infantilizada, despreparada para os desafios do mundo adulto, cujo filho, a despeito de seus esforços, a trata apenas como uma igual.

Quantos jovens pais mundo afora enfrentaram barras parecidas? São momentos de honestidade como esse que fazem Maquia brilhar.

Uma guerra vista de baixo

É difícil apontar o que corta mais fundo: seus conflitos familiares ou o terror sempre presente da guerra. Para Maquia, Okada pincela um mundo fantástico gigantesco, mas não parece interessada em colorir os detalhes. Seu cenário fantástico é um pano de fundo mais que um catalisador de seu enredo.

De fato, sua trama chega a ser confusa e inconstante, narrada em arcos fechados que parecem existir à revelia um do outro. Fãs de aventura fantástica talvez percam a paciência com esse descaso. Mas esse não é um filme para eles.

Muito da fantasia se perde em nomes próprios. Atenção demais é gasta identificando facções em guerra, enumerando baixas e descrevendo estratégias, quando os próprios conflitos do nosso tempo mostram que essas coisas pouco importam.

Maquia destila esses conflitos ao seu valor humano, em um retrato visto de baixo. Contado com uma sensibilidade honesta, dolorosamente feminina.

Considere Leilia, amiga de Maquia forçada a gerar um herdeiro para o príncipe. Leilia dá à luz uma garota. O palácio não está impressionado. Meninas não têm valor; apenas um filho homem pode levar o reino à frente.

O parto, contudo, leva a beleza do seu corpo. Em dada cena, nós a vemos atormentada, coberta de penduricalhos. Seu marido perdeu o interesse sexual por ela, e o palácio tenta várias simpatias para que consiga procriar. “Façam alguma coisa” grita o rei. “Pelo menos deem a ele outra mulher!”

Leilia foi sequestrada, estuprada e confinada em uma torre como chocadeira. Mas seu desespero vai além: ao ser rejeitada, ela perde até a capacidade de se resignar. Não basta privá-la da sua liberdade ou dignidade. A guerra precisou tirar qualquer sentido da sua vida.

Ou então considere Dita, que também dá à luz uma criança no curso do longa. As dores de seu parto são intercaladas a uma cena de batalha, de que seu marido participa. Os dois combatem pela própria vida, e não sabemos dizer qual das lutas é mais acirrada.

Na verdade, sabemos sim. É evidente que o choque de espadas e o trovejar de canhões é apenas um pano de fundo para o verdadeiro duelo.

Homens gostam de pensar que a história é escrita com o cano de uma arma. Okada nos lembra, como fizeram outras escritoras, que para cada guerreiro em marcha há uma mulher reunindo os cacos que a violência dispersou.

A tomada funciona graças à produção da P.A. Works, um trabalho prodigioso mesmo para os padrões do estúdio. De fato, Maquia é um filme grande, que está em seu elemento em tomadas ambiciosas, cenários detalhados e uma das melhores trilhas da carreira de Kenji Kawai.

Embora o filme nunca supere a beleza das tomadas de abertura, sua fotografia e ambientação nunca deixam a desejar. No país de Mezarte, vielas mediterrâneas dividem espaço com catedrais góticas, fornaças industriais e tavernas abarrotadas. Poucos são os animes que oferecem um retrato tão vibrante de uma cidade em movimento.

“100% Okada”

É uma pena, porém, que Maquia se deixe levar pela própria grandiloquência.

Como roteirista, Okada carrega nas tintas nos momentos mais inoportunos, cometendo exageros que beiram a manipulação. A cena de Maquia libertando Ariel de um cadáver em rigor mortis é a mais apelativa que já vi em qualquer um de seus animes. O funeral choroso de um cachorro chega a ser ridículo.

Melodramas são uma corda bamba, e Okada sempre deixou o excesso de lágrimas derrubá-la para um dos lados. Foi assim no final histérico de Ano Hana ou no último terço de Hisone to Masotan, incomparavelmente mais fraco que seu início.

Mesmo comparado a ele, no entanto, Maquia parece um retrocesso. Apesar de sua sensibilidade transbordante, Okada escreve (e dirige) como se nos guiasse pela mão, dizendo exatamente o que devemos sentir.

A coisa passa dos limites nas cenas finais, quando o clímax é intercalado com flashbacks de cenas chorosas de outros momentos do longa.  É um recurso batido, desnecessário e condescendente, que me leva a pensar se esse filme “100% Okada” não teria a ganhar com um diretor mais experiente.

Sem colegas para barrar seus excessos, Okada entrega um filme que parece uma obra de estreia: ambicioso e apaixonado, mas também patético, repetitivo e desconjuntado.

Dizem que escritores param de ser editados quando ficam famosos. Maquia é a prova de que isso nem sempre é bom. Artistas adoram reclamar de que sofrem interferência. A verdade, porém, é que boas obras devem tanto à tesoura quanto à caneta.