Muitos animes são baseados em mangás. Outros tantos em games ou visual novels.
Mas existem também aqueles baseados em livros. E não digo apenas as light novels tão populares na Terra do Sol Nascente. Mas romances “inteiros”, para o público infanto-juvenil ou adulto, que já possuem um espaço cimentado na literatura. E, em alguns casos, uma fama que remonta a séculos.
Quão fiéis são essas adaptações? O que acontece com suas personagens, conflitos e ideias depois de transpostos à era contemporânea, ou ao mundo oriental? É verdade que “o livro é sempre melhor”?
Se você já se perguntou essas coisas, é com prazer que lhe dedico essa nova série temática do Finisgeekis. O projeto mais ambicioso, longo, trabalhoso e (por que não?) baddass que esse site já viu.
Anime x Livro tem como objetivo comparar romances da literatura com suas adaptações na telinha japonesa. Baseado no excelente Book vs. Film do A.V. Club, a proposta é sair do fla-flu e esmiuçar essas séries (e livros) em detalhe.
E para dar a largada, nada melhor que uma das mais ousadas adaptações da mídia: Gankutsuou: O Conde de Monde Cristo. A adaptação mais longa, complexa e diferente do clássico de Alexandre Dumas já feita em qualquer formato.
Uma aviso aos marinheiros de primeira viagem: esse artigo é longo. O Conde de Monte Cristo tem mais de 1000 páginas e o anime deixa muito pouco de fora. Para facilitar a navegação, ele está dividido em seções que podem ser acessadas individualmente abaixo.
AVISO (DESNECESSÁRIO): Contém SPOILERS para O Conde de Monte Cristo e Gankutsuou.
O Conde de Monte Cristo é um dos maiores clássicos da literatura mundial. Lançado em capítulos entre 1844 e 1846, a obra se tornou um fenômeno imediato de público.
Sua trama acompanha Edmond Dantès, um jovem marinheiro de Marselha que parece ter vencido a loteria da vida. Noivo, promovido a capitão do navio em que trabalhava, nada poderia lhe dar errado.
Infelizmente para Dantès, seus queridos amigos não são assim tão queridos. Motivados pela inveja, três de seus companheiros montam um complô para colocá-lo atrás das grades. Acusado de bonapartismo logo após a derrota de Napoleão, Edmond é enviado à prisão para nunca mais sair.
Para a sorte de Dantès, ele não é a única alma traída pela justiça. No cárcere, o jovem conhece um polímata chamado Padre Faria, que lhe confia um grande segredo: um tesouro inestimável escondido na ilha de Monte Cristo, esperando ser descoberto. Com o passar do anos, os dois montam um plano para resgatá-lo.
Faria não sobrevive à fuga, mas Dantès sim. E munido de uma riqueza infindável, com todo o conhecimento que recebeu do padre, decide criar para si uma outra identidade: O Conde de Monte Cristo, um nobre sem pátria, sem passado e sem vínculos.
Na pele desse estranho misterioso, Dantès começa a arquitetar um plano de vingança. A vingança mais completa, maquiavélica, cruel e imprevisível que qualquer um poderia conceber.
Uma vingança tão complexa que daria ao Batman uma lição de humildade. E faria leitores se descabelarem tentando acompanhar cada um de seus passos.
Exibido entre 2004 e 2005, Gankutsuou não foi para os animes o arrasa-quarteirão que o livro de Dumas foi para a literatura. Mesmo assim, suas credenciais não podiam ser melhores.
A obra é assinada por ninguém menos que Mahiro Maeda, que conta no currículo com Animatrix: Segunda Renascença, Blue Submarine No 6 e o segmento animado de Kill Bill.
O anime adapta a história a um futuro distante e anacrônico, em que aliens e naves espaciais dividem espaço com dirigíveis, carruagens e roupas do século XIX. O cenário é uma referência a Estrelas O Meu Destino de Alfred Bester, clássico do sci fi que também homenageia a obra de Dumas.
Curiosamente, a maior diferença entre as obras não está no cenário espacial, mas em seu ponto de vista. Enquanto que Dumas nos conta sua história pelos olhos de Dantès, Maeda nos coloca nos pés de Albert de Morcerf, filho de Fernand Mondego, um dos alvos da vingança do Conde.
Embora os eventos narrados sejam praticamente os mesmos, essa decisão traz uma mudança drástica ao tom da série. Se no livro Dantès é um anti-herói se vingando daqueles que merecem, no anime ele se torna uma figura sinistra, manipulando pessoas e destruindo vidas para satisfazer o próprio ódio.
Até que ponto essas mudanças são fieis ao espírito do romance? Vamos por partes.
Os inimigos de Dantès
Fernand Mondego, conde de Morcerf
Não é você o soldado Fernand que desertou na véspera da batalha de Waterloo? Não é você o tenente Fernand que serviu de guia e espião ao exército francês na Espanha? Não é você o coronel Fernand que traiu, vendeu e assassinou seu benfeitor Ali? E todos esses Fernands aqui reunidos não formam o general de divisão conde de Morcerf, par de França? (capítulo XCII)
Fernand Mondego é o mais famoso dos inimigos de Dantès – em algumas interpretações, o único. Rival amoroso de Edmond durante sua juventude, ele se une ao complô para conquistar o coração de Mercèdes, garota que disputa com o jovem.
Mondego (ou Morcerf, como veio depois a se chamar) é descrito como um covarde crônico, um militar pérfido que sobe na vida surfando a maré da oportunidade – às custas, muitas vezes, de seus aliados.
Espanhol de berço, não teve problema em marchar contra a Espanha a serviço da França, nem em trair a França a favor dos ingleses em 1815, quando o regime de Napoleão começava a desmoronar.
Sua pior traição, no entanto, aconteceu em 1822, quando se voluntariou como consultor de Ali Tebelin, o pasha (governador) de Janina, na Grécia, em sua rebelião contra o Império Otomano. Seduzido pelos turcos, Mondego vendeu seu aliado às forças de sultão, capturou sua mulher e filha e as leiloou como escravas.
Por ser uma personagem tão calcada em eventos históricos, é óbvio que Fernand sofreria as maiores mudanças em Gankutsuou. No anime futurista de Maeda, o século XIX é uma lembrança remota, e seu cenário geopolítico passa longe da complexidade do mundo de Dumas.
Em Gankutsuou, o Império Otomano não existe, mas há de fato um “Império” que rege um “Quadrante Oriental”, com uma inimizade em relação a Paris que reflete a desconfiança para com os turcos durante boa parte da história europeia.
Surpreendentemente, o episódio de Janina é reproduzido nos mínimos detalhes, com direito a um planeta chamado “Janina” (na vida real, uma cidade na Grécia).
Mondego preservou seu caráter como militar corrupto, embora sua personalidade tenha sofrido algumas mudanças. Enquanto que no livro ele é um traidor compulsivo, o general do anime é um aspirante a ditador sedendo pela violência.
No curso dos episódios, chega a conduzir campanhas militares para firmar sua candidatura a presidente. Humilhado publicamente por Haydée (veja abaixo), decide dar um golpe de Estado que coloca Paris em rebuliço.
Nada disso existe no romance de Dumas, em que Fernand há muito já aposentou a espada, e a França, monárquica, não tinha presidentes.
Villefort
Para seus amigos, M. de Villefort era um protetor poderoso; para seus inimigos, um adversário surdo, porém ardoroso; para os indiferentes, era a estátua da lei feita homem: atitude arrogante, fisionomia impassível, olhar insosso e gélido ou insolentemente afiado e perscrutador, tal era o homem que quatro revoluções habilmente empilhadas uma sobre a outra haviam construído, depois cimentado o pedestal. (capítulo XLVIII)
Se Mondego é um mau-caráter desde o começo – um “pecador”, como Dumas nunca cansa de chamá-lo – Villefort é, à primeira vista, uma alma atormentada.
Ao contrário das outras personagens dessa lista, ele não é um dos membros do complô contra Dantès, mas o delegado que o recebe quando é injustamente preso.
Jovem, prestes a se casar com o amor de sua vida, ele simpatiza com o marinheiro de imediato. Infelizmente, o complô contra Dantès acaba colocando sua própria carreira em risco.
Na carta bonapartista carregada por Edmond, Villefort encontra o nome de seu pai, M. Nortier. Como oficial da Coroa, ele sabe que aquele escândalo pode trazer abaixo tudo o que construiu. Para garantir que a história não venha à tona, ele prende Dantès ilegalmente e o priva de qualquer recurso.
O tempo passa, e Villefort se torna o mais severo procurador da França. Como se para compensar seu passado criminoso, ele se torna a personificação da justiceiro hipócrita, usando a lei para esconder os esqueletos em seu armário.
Gankutsuou capturou bem os traços gerais de Villefort, embora sua personagem seja menos explorada que as outras. De todos os inimigos de Dantès, Villefort é o mais complexo. Para destrui-lo, o Conde se ampara em uma série de detalhes da sua vida pessoal que o anime não aborda tão bem quanto deveria.
Villefort é filho de Noirtier, um velho bonapartista que sofreu um derrame e só consegue mover uma das pálpebras. Ele tem uma filha do primeiro casamento, Valentine, e um filho chamado Édouard, da sua segunda esposa, Héloïse.
Noirtier e Villefort se detestam por questões pessoais e políticas. Héloïse detesta Valentine, pois a garota receberá uma herança que, na sua opinião, deveria ir para seu filho. Valentine, por sua vez, ama seu avô Noirtier, que a protege de tudo e de todos – apesar de só ter uma pálpebra para se comunicar!
Complicado? E isso porque não falamos da Valentine, que vive um amor proibido com Maximilien Morrel, que é filho de M. Morrel, dono do Pharaon, navio onde trabalharam Dantès e Danglars, com cuja esposa…
Enfim, é coisa demais para 24 episódios, e os cortes foram inevitáveis. O clã Villefort aparece quase todo em cena, mas como resultado seu tempo de tela é dramaticamente reduzido.
Danglars
Danglars é um daqueles homens de cálculo que nascem com uma pluma atrás da orelha e um pote de tinta no lugar do coração. Tudo nesse mundo é para ele subtração ou multiplicação, e um número lhe parece mais valioso que um homem, quando esse número pode aumentar o total que este homem pode diminuir. (capítulo IX)
Contador do Pharaon, navio em que Dantès trabalhava, Danglars é o mais vil, mundano e asqueroso dos vilões do romance.
Movido por inveja a Edmond, que estava prestes a se tornar capitão, o contador arquiteta o complô para tirá-lo de cena – e lucra horrores com a sua desgraça.
Com o passar dos anos, ele se torna um banqueiro influente, com tentáculos nos principais investimentos, cartéis e máfias do mundo financeiro. A obsessão pelo dinheiro se dá às custas de sua empatia com as outras pessoas – incluindo sua própria família.
Sua filha, Eugénie, é tratada como uma moeda de troca, prometida e “desprometida” em casamento sem que sua opinião sequer seja consultada. Já sua esposa usa sua fortuna para seus próprios fins, dormindo com uma legião de amantes que incluem o próprio Villefort.
Dos três antagonistas de Gankutsuou, Danglars é sem dúvida o mais fiel à sua caracterização original.
O costume design de Anna Sui, utilizando texturas estáticas em vez de cores tradicionais, traz sua caricatura à vida. Danglars se veste com texturas de barras de ouro, em uma casa estampada por cifrões e notas de dólar.
No romance, ele é contatado pelo Conde de Monte Cristo como um potencial cliente. Seduzido pela aparente riqueza do desconhecido, ele aceita dar ao conde um contrato de crédito ilimitado.
Tudo parte do plano de Dantès, que passa a exigir empréstimos pesados enquanto manipula o mercado de ações para que ele perca investimentos. Pouco a pouco, toda a sua fortuna vai para o espaço.
O anime é surpreendentemente fiel a esse plano, reproduzindo-o até nos mínimos detalhes. Danglars aceita o Conde como cliente após receber uma carta de recomendação do banco MM Thomson & French.
A carta – e o banco – existem no livro original e constituem uma das muitas fachadas de Dantès. Não satisfeito em roubar dinheiro Danglars, o conde funda seu próprio banco (e cria uma identidade secreta como seu representante) para derrubar todo o sistema que o enriqueceu.
É preciso dar crédito ao Conde. Não satisfeito em se vingar, ele também se tornou um empreendedor!
Caderousse
Uma segunda fortuna caiu para você do céu, você reencontrou o dinheiro e a tranquilidade, você pôde recomeçar a viver a vida de todos os homens, você, que havia sido condenado a viver entre os presidiários. Mas então miserável, então você quis tentar a Deus uma terceira vez. Eu não tenho o suficiente, você disse, quando você tinha mais do que jamais havia possuído. Você cometeu um terceiro crime, sem motivo, sem desculpas. Deus está cansado. Deus vai te punir. (capítulo LXXXIII)
O Caderousse de Maeda é tão diferente de sua versão literária que pode ser considerado uma outra personagem.
Menos importante de todos os inimigos de Dantès, Caderousse é o único que não se dá bem com a sua ruína. Pelo contrário, ele é tido como um eterno azarado, recebendo o carma pelas suas más ações assim que as comete.
É Caderousse quem Dantès procura assim que escapa do Castelo d’If. Disfarçado como um de seus alter-egos, o padre Busoni, Edmond lhe oferece um anel de diamante em troca do paradeiro de Villefort, Mondego e Danglars.
Por ganância, ele mata o joalheiro que contrata para avaliar a joia. O crime o leva à prisão, onde vira companheiro de cela de Benedetto, um criminoso inveterado que mais tarde seria recrutado pelo Conde, cumprindo um papel fundamental na sua vingança.
Caderousse tenta extorquir Benedetto e até planeja roubar a mansão de Dantès quando descobre que ele está ajudando o ex-comparsa. O crime termina mal, e somos presenteados com uma das mais satisfatórias cenas de morte do romance.
Nada disso aparece no anime, em que Caderousse é reduzido a uma exposição ambulante, pincelando detalhes do enredo que escapam às outras personagens.
Triste fim para uma personagem que, desde a origem, não teve sorte na vida…
O círculo de Albert
Albert de Morcerf
Albert não era apenas um cavalheiro muito elegante, mas também um homem de muito espírito. Mais ainda, ele era visconde: de nobreza jovem é verdade, mas hoje em dia não se pede mais esse tipo de prova. Que importa se um título data de 1399 ou de 1815? (capítulo XXXIV)
Personagem secundário elevado a protagonista, Albert é obviamente a personagem que mais sofreu modificações na visão de Maeda.
No livro, Albert é o filho de Fernand Mondego e Mercédès, noiva de Edmond antes de seu aprisionamento. O jovem tem um imenso orgulho do pai, que considera um grande herói militar.
Ele é a porta de entrada ao Conde à Paris, tendo-o conhecido meses antes em Roma, durante o Carnaval.
No anime, Albert se torna praticamente uma figura filial para o Conde. Mais jovem que sua contraparte literária, o garoto é a âncora de humanidade que impede que o Conde se perca no labirinto da vingança.
Em algumas cenas, como no climático episódio 23, sua devoção chega a um nível quase romântico.
O subtexto homoerótico não existe no romance (pelo menos, não entre os dois). Nem a devoção de Albert ao Conde, que ofusca o carinho de Dantès com outra personagem jogada no escanteio:
Maximilien Morrel
Em seu regimento, Maximilien Morrel era citado como um rígido observador, não apenas de todas as obrigações impostas ao soldado, mas também de todos os deveres exigidos do homem, e ninguém o chamava de outra coisa senão de “o estoico”. Não é preciso dizer que muitos dos que lhe davam esse epíteto o repetiam por tê-lo escutado e não sabiam eles próprios o que queria dizer. (capítulo XXX)
Filho de M. Morrel, dono do navio em que Dantès trabalhava, Maximilien é o único entre seus conhecidos de Paris que o Conde não apenas não odeia, mas abertamente ama.
Edmond conheceu Maximilien quando era criança. Embora o jovem não mais o reconheça, o Conde esteve disposto a tudo para ajudá-lo. Retribuição ao seu pai, M. Morrel, que fez o possível e o impossível para tentar (inutilmente) tirá-lo da prisão.
O design de Maximilien é um dos mais inusitados (e apropriados) de Gankutsuou. No livro, o jovem é um capitão de sipahis, regimento inspirado na cavalaria otomana. No anime, ele é reimaginado como um militar moderno, com uma farda austera que contrasta com a pompa nababesca de seus colegas.
É Maximilien, não Albert, que o Conde toma como filho adotivo. É Maximilien a quem ele diz as famosas palavras attendre et éspérer (“espere e tenha esperança”), o lema mais famoso do livro. E, finalmente, é a ele – e à sua namorada, Valentine de Villefort – que o Conde lega toda a sua fortuna quando sua vingança é concluída.
(Sim, o Dantès não morre ao final do romance. Mais sobre isso em “O destino do Conde”, lá embaixo).
Franz d’Épinay
“Eu sou excêntrico, é verdade, mas minha excentricidade não inclui retirar minha palavra depois que eu a tenha dado.” (capítulo LXVIII)
Se Maximilien foi relegado ao banco de reservas, Franz d’Épinay, melhor amigo de Albert, sofreu o processo inverso.
No romance, o jovem é um personagem secundário, cuja principal função é servir de wingman a Albert durante suas folias no carnaval de Roma. Franz é noivo de Valentine, filha de Villefort e cumpre um papel importante na subtrama entre ela e Maximilien, seu amor verdadeiro.
Assim que esse conflito se resolve, ele simplesmente sai de cena por quase todo o restante da história!
Maeda deve ter achado que Dumas cometeu uma injustiça. Pois Franz, de figurante, se tornou a personagem mais importante depois de Albert.
Franz é a voz da razão que se interpõe entre o amigo e o Conde. É a partir dos olhos dele que vemos Monte-Cristo como algo mais sinistro do que aparenta à primeira vista, ameaçando um Albert deslumbrado demais para enxergar onde pisa.
Jovem honrado (e até cabeça-dura), ele leva sua amizade aos últimos limites. Quando Albert desafia o Conde a um duelo (que, no livro, sequer acontece) ele dopa o amigo e vai disfarçado em seu lugar.
O resto, como dizem, é história.
Eugénie Danglars
Mlle. Danglars era a mesma de sempre, quer dizer bela, fria, e debochada. Nenhum de seus olhares, nenhum dos suspiros de Andrea lhe fugiam. Pode-se dizer que eles eram defletidos pela couraça de Minerva, couraça que alguns filósofos dizem às vezes remontar ao busto de Safo. (capítulo LXXVI)
A referência a Safo de Lesbos, por si só, diz tudo o que precisa ser tido sobre Eugénie. Se Albert e o Conde viraram amantes na imaginação de Maeda, a filha de Danglars do livro gosta de outro tipo de fruta.
Em Gankutsuou, Eugénie é a amiga de infância de Albert a quem ele foi prometido em casamento. Embora nenhum dos dois deseje a união, eles acabam desenvolvendo sentimentos um pelo outro. Que culminam em um dos beijos mais emocionantes que já tive o prazer de ver num anime:
Longe de mero objeto de conquista, Eugénie é uma das principais aliadas de Albert e também seu termômetro, ao lado de Franz, que o avisam das maquinações do Conde.
Nada disso poderia ser mais diferente da Eugénie de Dumas, uma lésbica apaixonada por sua professora de música, hostil a quase todas as personagens e que parece odiar homens como um todo.
Eugénie cumpre um papel central nos planos do Conde, mas nunca se envolve profundamente com nenhuma das personagens principais. Tal como sua contraparte em Gankutsuou, tudo o que ela deseja é abandonar a vida aristocrática e viver como artista ao lado de sua namorada.
Coisa que de fato fez, com certa ajudinha do Conde. Em uma das passagens mais divertidas do romance, Eugénie foge ao lado de sua amada, vestida de homem de maneira a evitar suspeitas.
Maeda chegou a considerar incluir sua sexualidade original. Em um dos trailers do anime, vemos uma cena da garota com um character design alternativo, beijando outra mulher:
É, no entanto, compreensível porque Maeda não tenha insistido na ideia.
Em uma adaptação relativamente curta (para os padrões gigantescos do livro), não haveria muito espaço para uma personagem secundária como a Eugénie de Dumas. No pior dos casos, ela sofreria o mesmo problema da família de Villefort: jogados ao escanteio por falta de tempo de TV.
Maeda também quis traçar um paralelo entre o círculo de Albert e o círculo do próprio Dantès antes de se tornar o vingador de Monte Cristo. No último episódio, nos é mostrado um flashback de sua vida em Marselha, em que Dantès, Mercèdes e Fernand (na época, ainda amigos) brincam juntos na praia.
A cena é funcionalmente idêntica ao opening, que mostra os amigos Albert, Franz e Eugénie em um momento de descontração:
Os asseclas do Conde
Ali
Ali não é uma personagem central nem para o livro nem para o anime. O próprio fato de ter sido incluído, no entanto, mostra o esmero de Gankutsuou com seu material de origem.
Na série de Maeda, Ali é um alienígena a serviço do Conde. Em nenhum momento ele ergue a voz para questionar seu mestre – ou, na realidade, para qualquer outra coisa. O próprio Dantès o descreve como “marionete”.
Seu momento de glória aparece quando salva Héloïse e Edóuard de Villefort de um acidente de carruagem. Tudo é parte de um plano do próprio Conde para seduzir a esposa de seu rival: colocando sua vida em risco para depois salvá-la e bancar o herói.
O episódio é idêntico à sua contraparte no romance, com um detalhe peculiar. No livro, Ali é um escravo mudo de um sultão da Tunísia, cuja vida Dantès salvou.
A cena em que Édouard “agradece” ao seu salvador xingando sua aparência? Trata-se de um ataque racista do moleque ao escravo do Conde. Coisa que se repete em outros momentos da história – e que Dantès não está disposto a perdoar:
– Na verdade – disse Monte-Cristo – sua Paris é uma cidade estranha, e vocês parisienses um povo singular. Parece que é a primeira vez que vêem um núbio. Veja como se comprimem ao redor do pobre Ali, que nem sabe o que isto quer dizer. Eu lhes respondo uma coisa: se um parisiense for, por exemplo, a Túnis, a Constantinopla, a Bagdá ou ao Cairo não se fará um círculo em torno dele. (capítulo LIII)
O assunto tinha uma importância pessoal ao próprio Alexandre Dumas. Pardo, o escritor foi filho de Thomas-Alexandre Dumas, haitiano que se tornou general do exército napoleônico e militar negro mais condecorado da história da Europa:
Os comentários de Édouard a Ali decerto não eram estranhos a ele – nem ao seu pai. E a invectiva de Monte-Cristo é, sem dúvida, algo que esperou muitas vezes escutar.
Bertuccio
– O bom servidor para mim é aquele sobre o qual eu tenho direito de vida ou de more.
– E você tem direito de vida ou de morte sobre Bertuccio? – perguntou Albert
– Sim – respondeu friamente o conde.
Há palavras que encerram a conversa como uma porta de ferro. O “sim” do conde foi uma destas palavras. (capítulo LXXXV)
O capanga mais leal do Conde é uma personagem curiosa. Levando em conta seu papel na obra original, Bertuccio consegue ser, a um só tempo, explorado de menos e demais na adaptação.
Em Gankutsuou, o brutamontes de voz forte é um símbolo da metamorfose de Dantès. De início um servo leal, Bertuccio se torna cada vez mais transtornado com a conduta sádica de seu mestre.
É curioso, no entanto, que sua backstory tenha sido completamente ignorada. Muito embora os eventos que protagonizou – e que o levaram a conhecer o Conde – estejam todos presentes no anime.
No romance de Dumas, Bertuccio é irmão de um soldado de Napoleão, assassinado por um monarquista ao voltar para casa depois de Waterloo. Desesperado, ele procura o procurador local, que não é ninguém menos que Villefort.
Sem vontade de se associar ao bonapartismo, Villefort se recusa a ajudá-lo. Indignado, Bertuccio decide fazer a justiça com as próprias mãos. Ele segue o procurador até o quintal de sua casa e lhe fere com uma punhalada.
Infelizmente, o plano não segue o esperado. Villefort sobrevive ao ferimento. Pior: Na sanha para fugir, Bertuccio descobre que o procurador estava enterrando um bebê, filho ilegítimo de Villefort com Mme. Danglars, com quem estava tendo um caso. Incapaz de deixar uma criança para morrer, ele a toma consigo.
O affair de Villefort e seu filho se tornarão duas das peças-chaves no no plano de vingança do Conde, tanto no livre quanto no anime. Curiosamente, toda a atuação de Bertuccio é omitida na versão de Maeda. Em Gankutsuou, o bebê é encontrado por um servo qualquer, e o capanga não demonstra o menor conhecimento de Villefort.
Haydée
Sua cabeça estava coberta por uma pequena touca de ouro bordada com pérolas, tombada para um lado, e debaixo da touca, do lado em que se inclinava, uma bela rosa de cor púrpura se misturava a cabelos tão negros que pareciam azuis.
Quanto à beleza daquele rosto, era a beleza grega em toda a perfeição de seu tipo, com seus grandes olhos negros aveludados, seu nariz retilíneo, seus lábios de coral e seus dentes de pérola. (Capítulo XLIX)
Escrava alienígena a serviço do Conde, Haydée é, a princípio, a personagem mais distante das intrigas mediterrâneas da obra de Dumas. É impressionante, assim, que consiga ser também a personagem mais fiel de todas ao livro.
E não falo apenas de seu character design, que reproduziu perfeitamente a beleza exótica que o autor lhe atribui – incluindo até seus cabelos azulados, como se pode ler acima.
Haydée é singular por ser quase uma personagem histórica. Na trama, ela é filha de Ali Tebelin, o pasha otomano que tentou se rebelar contra o sultão – e foi traído por Fernand Mondego. Foram Haydée e sua mãe que Fernand vendeu como escravas depois do episódio de Janina.
Tebelin de fato existiu. E, a despeito de ser um alien do “Quadrante Oriental”, sua versão de Gankutsuou é incrivelmente fiel ao líder histórico:
Haydée possui uma relação ambígua para com o Conde. Dantès a trata como escrava em público, mas parece tê-la como filha em particular. Em dado momento, até tenta uni-la com Maximilien, até descobrir sua paixão secreta por Valentine.
Ao mesmo tempo, a garota parece ter um afeto por ele que vai além do familiar. Até que ponto se amor é correspondido é algo que Dumas deixa a cargo da nossa imaginação. O livro termina com ambos partindo juntos à Janina para nunca mais serem vistos.
Esse amor complicado (para dizer o mínimo) não aparece em Gankutsuou. Mesmo assim, a estranhice de sua relação chega a ser comentada por Albert.
Ao ser questionado do vínculo entre os dois, ele comenta que é uma “relação comum entre dois adultos”. O jovem se encabula, percebendo que nem ele sabe o que quer dizer com isso.
O carnaval de Roma
Ao contrário do livro de Dumas, Gankutsuou começa sua história in media res. Somos apresentados ao Conde no carnaval de Roma, quando Albert conhece Dantès pela primeira vez.
Todos os detalhes sobre seu passado, de sua romance com Mercédès ao seu período na prisão, são revelados apenas muito depois, por meio de flashbacks e infodumps.
A despeito da mudança de foco, o episódio em si é uma das partes mais fiéis à história original.
“Roma” é trocada por Luna, uma colônia humana na Lua. Todos os seus detalhes, no entanto (inclusive a presença da Santa Sé!) são mantidos exatamente como no livro.
Albert e seu amigo Franz estão buscando um lugar para curtir a folia quando se encontram com o Conde, que se oferece para ciceroneá-los.
Tudo vai bem, até que Albert decide se aventurar pelos inferninhos da noite. Ele é sequestrado por Luigi Vampa, um dos bandidos mais perigosos da Itália. Para sua surpresa, o Conde aparece para salvá-lo. A mera presença de Monte-Cristo é suficiente para intimidar o bandido, que liberta seu refém de imediato.
Do episódio nasce uma amizade entre Albert e o Conde, e um convite para que Dantès venha visitá-lo em Paris. Tudo parte do plano de Edmond: Albert é o filho de seu inimigo Fernand, e ele pretende usá-lo de ferramenta para se aproximar do rival.
Gankutsuou traz, no entanto, uma pequena diferença em relação ao livro.
No anime, o Conde convida Albert e Franz para assistir a uma execução em praça pública. Porém, antes que o carrasco faça seu serviço, revela que possui uma carta de anistia escrita por um cardeal.
Em vez de salvar a vida do criminoso que considera menos culpado, o Conde decide apostar o destino em um jogo de cartas, com Albert como executor. A despeito dos protestos de Franz, o jovem participa e acaba, inadvertidamente, salvando a pele do pior dos condenados.
A cena é um soco no estômago não apenas de Albert, mas também do espectador. Seduzidos pela ideia de que o Conde seria um herói (ele é, afinal, a personagem titular!) somos apresentados a um homem calculista, arbitrário e sádico.
Sua contraparte no romance é menos dramática que no anime, porém mais significativa. O relevante nela não é sequer a execução em si, mas o que acontece imediatamente depois.
Ao descobrir que o homem ao seu lado foi anistiado, um dos criminosos tem um ataque de raiva. “Eu não vou morrer sozinho!” ele grita “É injusto! Ele tem que morrer também!”.
O protesto provoca gargalhadas no Conde, que emenda com um dos seus melhores discursos do livro:
– Coloque dois carneiros no açougue, dois bois no abatedouro e faça compreender a um que seu companheiro não morrerá. O carneiro balirá de alegria, o boi mugirá de prazer, mas o homem, o homem que Deus fez à sua imagem, o homem a quem Deus impôs por primeira, por única, por suprema lei o amor de seu próximo, o homem a quem Deus deu uma voz para exprimir seu pensamento, qual será seu primeiro grito quando descobrir que seu camarada está a salvo? Uma blasfêmia. Honra ao homem, este mestre de obras da natureza, este rei da criação!
E o conde irrompeu em riso, mas um riso terrível que indicava que ele havia tido de sofrer terrivelmente para chegar a rir de tal maneira. (cap. XXXV)
É um foreshadow brutal do que está por vir, e uma prova definitiva de que o Dantès que vimos no começo não é mais o mesmo homem.
Tal como o condenado na praça pública, o Conde de Monte-Cristo é um espírito distorcido pelo ódio, que só quer ver seus rivais sofrerem. Custe o que custar.
A noite na ópera
Depois de se despedirem em Roma, o conde aceita o convite de Albert e compra um palacete nos Champs-Elysées, disposto a integrar a sociedade parisiense.
Aqueles que já visitaram Paris sabem que a avenida é um espetáculo à parte. Nada, contudo, se compara à sua mansão no anime, um underground nababesco que parece desafiar as leis da física.
Mas nem só de palácios vive um nobre. Para se introduzir aos círculos dos aristocratas, o Conde decide atender a uma noite na ópera.
Sua date é ninguém menos que Haydée, que faz queixos caírem, bochechas corarem e olhos revirarem com sua beleza fora da série e seu vestido impossivelmente luxuoso.
Ao fim de um instante, a jovem mulher se tornou o objeto de atenção não só da plateia, mas de toda a sala; as mulheres se debruçavam para fora dos camarotes para ver jorrar sob o fogo dos lustres aquela catarata de diamantes. (capítulo LIII)
A tomada é um dos pontos fortes do anime. O corpo da garota, coberto com mais pedras do que caberia em uma joalheria, foi animado completamente em CG. O resultado salta aos olhos mesmo em uma série como Gankutsuou, cuja direção de arte é tudo menos discreta.
Infelizmente, Haydée estaria fadada a roubar a cena de outra forma. Do alto de seu camarote, a garota enxerga Fernand Mondego. Reconhecendo o rosto do homem que a vendeu à escravidão, ela fica transfigurada:
Naquele momento, Haydée, que buscava os olhos do conde, reconheceu sua cabeça pálida ao lado daquela de M. de Morcerf, que o envolvia em um abraço.
Aquela visão produziu na jovem garota o efeito da cabeça da Medusa. Ela fez um movimento como se quisesse devorar a ambos com o olhar, depois, quase ao mesmo tempo, jogou-se para trás soltando um grito débil, que foi no entanto ouvido pelas pessoas mais próximas dela e de Ali, que então abria a porta.
[…]– Ah! O miserável! – exclamou Haydée – É ele que me vendeu aos turcos!
A cena da ópera é um daqueles momentos em que a adaptação supera seu material de origem. O misto de ostentação visual, direção competente e trilha sonora arrepiante passa uma tensão maior que a prosa seca de Dumas – e estupidamente melhor que qualquer outra adaptação da obra que conheço.
Infelizmente, o que é bom dura pouco. A despeito de seus acertos, o anime de Maeda logo derrapa em uns pontos chaves.
O jantar em Auteuil
Logo depois de causar um furor na sociedade parisiense, o Conde de Monte Cristo decide convidar seus inimigos a um jantar. O local? Uma casa de campo em Auteuil, perto de Paris.
Embora pague de anfitrião cordial, as intenções de Dantès estão longe de ser puras. O local era uma antiga casa de Villefort, que o procurador vendeu depois de cometer um grave crime.
Anos antes, foi lá que ele e Mme. Danglars, vivendo um affair às custas do marido, enterraram um bebê nascido de sua relação. Ao ser trazido de volta àquele lugar, Villefort se sente imediatamente intimidado.
Dantès não pára por aí. Ele aproveita a situação para apresentar ao círculo um certo Andrea Cavalcanti, nobre italiano de muito boa família. O “príncipe” é na verdade um criminoso de carreira chamado Benedetto – o mesmo que dividiu cela com Caderousse.
É no jantar em Auteuil que seu plano de vingança começa a tomar forma. Infelizmente, é também aí que a história de Gankutsuou começa a desviar bruscamente do romance.
Em vez de confiar no espectador para formar suas próprias conclusões, o Conde do anime decide forçar a barra, convidando todos a participar de uma “caça ao tesouro” para descobrir as pistas de um antigo crime.
O crime em questão, é o enterro do bebê de Villefort e Mme. Danglars. Recado que os dois entendem imediatamente.
É uma apelação digna de um filme de terror B, que faz todos os presentes suspeitarem imediatamente do Conde. O fato da mansão de Auteuil parecer o castelo do Drácula só torna a cena mais tacanha.
Acreditar que um mestre calculista como Dantès faria uma provocação tão amadora é uma incoerência de coçar a cabeça.
A situação só piora com a próxima “artimanha” que apronta. Dois episódios depois, Edmond envia uma carta (assinada com seu próprio nome!) a todos os membros de seu complô.
O twist é um recurso para introduzir os espectadores ao passado de Dantès, que até esse ponto não tinha sido abordado. Na prática, parece uma paródia de Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado.
O resultado é que todos todos os inimigos de Dantès começam a trocar suspeitas sobre o Conde, coisa que o Edmond do livro jamais deixou acontecer. Tão cuidadoso ele é, na verdade, que até mesmo evita reuni-los no mesmo lugar! No romance, Dantès convida os Villeforts e Danglars ao jantar, mas não os Morcerf.
A tramoia força Gankutsuou a apelar a uma série de contorções narrativas para que a história volte aos trilhos. Comparado ao início e ao fim, fiéis à prosa de Dumas, isto faz a porção central do anime parecer muito mais fraca que o resto.
Franz e Noirtier
Paralelo à vingança de Dantès, O Conde de Monte Cristo nos conta a história de Maximilien e Valentine, dois pombinhos vivendo um amor impossível.
Maximilien, como dito acima, é um pobre soldado, filho de M. Morrel, ex-patrão de Edmond quando ele era marinheiro. Valentine é a filha do procurador Villefort, uma aristocrata prometida a Franz d’Épinay em um casamento arranjado.
Na sua luta para fugir do destino armado pelo pai, a jovem tem apenas um aliado: seu avô Noirtier, que vive paralisado devido a um derrame.
A situação é complicada por fatos que estão além de seu controle. Valentine é filha do primeiro casamento de Villefort, que agora vive com outra mulher, Héloïse.
Temendo que a garota roube a herança de seu filho, a madrasta arma para que Valentine seja assassinada. Tudo com o apoio de Monte-Cristo, que lhe ensina um ou dois truques sobre envenenamento.
Esse sub-plot dá as caras em Gankutsuou. Infelizmente, é levado para destinos siderais.
Em dado momento, Valentine tomba comatosa, vítima do veneno de Héloïse. Franz e Maximilien (que, no livro, são rivais amorosos) se unem para sequestrá-la junto com seu avô.
Noirtier (que não consegue mais falar) aproveita a ocasião para plugar sua consciência à de Franz. E lhe passa o infodump dos infodumps, narrando a verdade sobre o Castelo d’If, a vingança de Edmond e outras coisas que nem Franz, nem eu (nem, imagino, ele) entenderam direito.
Não há nada no romance minimamente parecido com essa cena.
A amizade entre Franz e Maximilien não existe. Franz, como bom noivo oitocentista, não dá a mínima para sua futura esposa. O sequestro não acontece. Noirtier não faz nenhuma revelação sobre o passado de Dantès – pelo contrário, sequer sabe das coisas que Maeda coloca em sua boca.
Mesmo assim, por mais fantasiosa que seja, a cena é uma jogada de mestre como adaptação.
Ao atribuir uma grande exposição a duas personagens secundárias, Maeda encontrou um jeito de nos passar parte da backstory que Dumas leva mais de 1000 páginas para construir. E ainda acrescentar detalhes importantes de sua própria lore que a transição para o sci fi acabou exigindo.
Não fosse o bastante, ainda tivemos um velhinho badass desparafusando sua mão robótica para revelar uma caneta mágica. Quão legal é isso? Dumas que me perdoe. Maeda ganhou essa.
O Duelo
Se o jantar em Auteuil é quando a trilha de dominó de Dantès termina de ser montada, seu duelo com Albert é quando a primeira peça leva o peteleco.
Tudo começa quando rumores sobre o passado de Mondego começam a circular em Paris. Enfurecido pelas notícias, Albert acusa Beauchamp, seu amigo jornalista, de espalhar mentiras sobre a sua família.
Não demora para que ele perceba que a fonte do escândalo é outra: Haydée, a protegida do Conde, que denuncia Mondego em foro público.
Procurado pelo jovem, Edmond o insulta de propósito para que o desafie a um duelo. Novamente, tudo parte de seu plano: sujar o nome de seu rival e matar seu filho em uma única tacada.
O episódio é importante nem tanto pelo duelo em si, mas pelo que acontece imediatamente antes dele. Na véspera do combate, o Conde recebe a visita de Mercédès, que lhe diz palavras que nem ele, nem o leitor, esperavam ouvir:
– Edmond – disse ela – você não matará meu filho!
O Conde deu um passo atrás, soltou um grito débil e deixou cair a arma que segurava.
– Que nome é esse que você pronunciou, madame de Morcerf? – disse ele.
– O seu! – ela exclamou, removendo seu véu – o seu que talvez apenas eu, de todos, nunca esqueci. Não é a Mme. de Morcerf que vem até você, Edmond, é Mercédès.
– Mercédès está morta, madame – disse Monte-Cristo – e eu não conheço ninguém com esse nome.
– Mercédès vive, monsieur, e Mercèdés se lembra, pois apenas ela o reconheceu assim que ela o viu, e mesmo antes de vê-lo, assim que ouviu sua voz, Edmond, o sotaque da sua voz. E desde aquele momento ela o segue passo a passo, ela o espiona, ela o teme e ela não tem necessidade de procurar a mão de onde partirá o golpe que matará M. de Morcerf. (capítulo LXXXIV)
O encontro é um baque na confiança do Conde, que finalmente se dá conta de duas coisas. Primeiro que seu disfarce não é tão bom quanto imaginava.
Segundo que, na sanha para se vingar de quem o injustiçou, ele pode acabar fazendo inocentes sofrer. Incluindo, entre eles, o antigo amor de sua vida.
O duelo é um momento crucial tanto no anime quanto no filme por motivos radicalmente opostos.
No livro, é a acusação de perfídia, mais do que qualquer outra coisa, que motiva Albert a procurar as armas.
Desde a sua primeira aparição, ele é descrito como um jovem orgulhoso e valente. É essa bravura que o leva a explorar as ruas de Roma e cair nos braços de Luigi Vampa.
Seu role model para tudo isso não é outro que seu pai. Daí o baque que sente ao saber que seu herói é um covarde que fraudou seu título de nobreza.
No anime, pelo contrário, Albert é descrito como um menino carente de uma figura paterna. Ele não dá a mínima para o que o Conde lhe diz. É o fato de tê-lo enganado, de não reciprocar o afeto que sente, que o machuca.
Isso torna Albert uma personagem mais humana e próxima da época atual. Infelizmente (e talvez justamente por isso), também o faz parecer um chorão.
O julgamento é enfatizado pela intervenção de Mercédès, que chora aos braços de Bertuccio dizendo que “seu bebê não sabe o que faz”. De aristocrata do Segundo Império, a nobre virou uma mãe helicóptero.
Não era exatamente o que Dumas tinha em mente com suas personagens.
O destino de Héloïse e Édouard de Villefort
Depois de aprender sobre venenos com o Conde de Monte-Cristo, Héloïse de Villefort pegou gosto pela coisa.
A primeira a morrer foi a avó de Valentine. Depois um criado e a própria garota. A bomba-relógio finalmente explode na cara de Villefort, que descobre que está na capa do maior escândalo da história de Paris.
Afinal, como confiar na justiça quando o procurador do rei acoberta um serial killer na sua própria casa?
Villefort eventualmente descobre a verdade e se volta contra a esposa. A novela não poderia ser mais agradável ao Dantès, que vê os Villeforts se destruírem sem que precise mover um dedo.
O “sequestro” da Valentine aprontado por Maeda o força a mudar um pouco a ordem dos acontecimentos. Seu final, no entanto, é quase o mesmo ao escrito por Dumas.
Infelizmente, esse “quase” é um problema. Pois o destino de Héloïse e Édouard, ao lado do duelo, é um dos eventos mais cruciais do romance.
No anime, Héloïse se envenena acidentalmente. A substância a deixa num estado abobalhado, “como se tivesse regredido à infância”, nas palavras de uma das personagens. Ela e seu filho passam a viver na mansão do Conde, onde permanecem até o penúltimo episódio.
No livro, a vingança custa a vida de ambos.
Descoberta pelo marido, Héloïse decide se suicidar. E tomada pelo desespero (ou, mais provavelmente, pela loucura) decide levar o filho consigo.
A morte da criança é o Ponto Sem Retorno que faz todos entenderem que aquele jogo de vingança foi longe demais.
Villefort simplesmente pira. Já Dantès toma o chacoalhão que sua versão de Gankutsuou não recebe até ser tarde demais. Ao ver uma criança inocente morta por sua causa, ele entende que a vingança não é uma forma de justiça, mas um ciclo vicioso que o levará para o abismo:
E, como se tivesse medo de que os muros da mansão maldita tombassem sobre ele, lançou-se pela rua, duvidando pela primeira vez que tivesse o direito de fazer aquilo que havia feito.
– Oh, é o bastante! Isso tudo já foi o bastante! – disse ele – poupemos o último.
Retornando à sua casa, Monte-Cristo reencontrou Morrel, que perambulava pela mansão nos Champs-Élysées, silencioso como um espectro que aguarda o momento fixado por Deus para retornar à sua tumba.
– Prepare-se, Maximilien – ele lhe disse com um sorriso – nós deixaremos Paris amanhã.
– Você não tem mais nada a fazer?
– Não – respondeu Monte-Cristo – e queira Deus que eu não tenha feito demais! (capítulo CXI)
O episódio muda radicalmente sua postura desse ponto em diante, com consequências importantes para o mais odioso de seus inimigos:
O destino de Danglars
Mandante do complô contra Dantès, é para Danglars que fora preparada a vingança mais cruel.
Encantado com o “príncipe” Andrea Cavalcanti, Danglars decide romper o noivado entre Eugénie e Albert e casá-la à força com o charmoso nobre. Graças às ações do Conde, porém, ele descobre que o “príncipe” Andrea é na verdade o “criminoso” Benedetto.
Pior: que o “criminoso” Benedetto é o bebê de sua esposa com o procurador Villefort, deixado para morrer na mansão de Auteuil!
Pior ainda: que isso faz dele o meio-irmão de Eugénie. E que ele, ao casá-la com ele, estava forçando-a a cometer incesto!
O episódio é brilhantemente representado em Gankutsuou, que adiciona a ele requintes de crueldade. Se o Benedetto de Dumas é um criminoso comum, o de Maeda é um psicopata endiabrado, que tenta estuprar sua irmã e faz sexo com a própria mãe.
O fato de ele parecer, de fato, um príncipe encantado só faz da caracterização mais genial.
Com seu nome jogado na lama, Danglars pega o dinheiro que lhe resta e foge para Roma. Infelizmente, Edmond está um passo na sua frente. Ele faz com que os capangas de Luigi Vampa o sequestrem, coloquem em uma cela e o deixem para morrer.
Em Gankutsuou, a “cela” em questão é uma nave à deriva, com estofados, paredes e bagageiros repletos de ouro. Enlouquecido pela riqueza (que nunca poderá gastar), Danglars termina sua vida abraçado às barras douradas, sem comida ou oxigênio para sustentá-lo por muito tempo.
Seu destino é um exemplo daquelas mudanças super sutis, mas que fazem toda a diferença. No livro, Danglars é forçado a torrar sua fortuna pagando preços exorbitantes pelo menor naco de comida.
A intenção é fazê-lo morrer de fome, implorando por sua vida. O que de fato aconteceu com o pai de Edmond, Louis Dantès, enquanto ele e seus comparsas enriqueciam às suas custas.
A diferença crucial é que o Conde nunca chega a cumprir seu plano. Chocado com a tragédia dos Villeforts, Monte-Cristo decide que o crime que sofreu não justifica cometer novos pecados.
Em uma prova de nobreza, ele decide por aquilo que nunca cogitou fazer: responder ao ódio com compaixão:
– Então eu o perdoo – disse o homem tirando seu manto e avançando uma passo para se pôr sob a luz.
– O Conde de Monte-Cristo! – disse Danglars, mais pálido de terror que estivera, um instante atrás, de fome e miséria.
– Você está enganado. Eu não sou o Conde de Monte-Cristo.
– E quem é você então?
– Eu sou aquele que você vendeu, entregou à justiça, desonrou. Eu sou aquele cuja noiva você prostituiu. Eu sou aquele em quem você pisou para subir até sua fortuna. Eu sou aquele cujo pai você fez morrer de fome, que você condenou a morrer de fome e que mesmo assim o perdoa, pois necessita ele mesmo ser perdoado. Eu sou Edmond Dantès!
Danglars não exprime senão um grito e tomba prosternado.
– Levante-se – disse o conde – Você tem a vida poupada. Sorte parecida não tiveram seus dois cúmplices: um está louco, o outro morto! Guarde os cinquenta mil francos que lhe restam, eu lhes dou a você. Quanto aos cinco milhões que roubou dos asilos, eles já foram restituídos por uma mão desconhecida.
“E agora come e beba; essa noite, eu sou seu anfitrião. Vampa, quando esse homem estiver satisfeito, ele estará livre.” (capítulo CXVI)
O destino de M. de Villefort
Pobre Villefort. Depois de ver metade de sua família morrer envenenada, pensou que já tinha as contas quitadas com o Criador. Infelizmente para ele, Dantès tinha outra bala com seu nome escrito.
A meleca aprontada por Maeda no episódio de Auteuil mudou algumas coisas no destino do procurador. Revoltado com o Conde após o jantar, ele decide investigá-lo, denunciá-lo e, finalmente, tentar assassiná-lo.
A decisão é quase tão estúpida quanto a “carta” de Edmond que avisou seus rivais da sua existência. E completamente incoerente com sua caracterização. Esperar que um alto chefe de justiça com todo o aparato judiciário aos seus dedos precise apelar para uma violência tão amadora é descabido ao extremo.
Felizmente, Maeda logo coloca sua história nos trilhos de onde nunca devia ter saído. E o procurador sofre o mesmo destino que Dumas lhe preparou nas páginas do romance.
Ao descobrir que seu amigo Danglars foi enrolado por um criminoso, ele prontamente o leva ao tribunal. O evento é o último prego em seu caixão: empoderado por um palanque, Benedetto revela ao mundo ser seu filho, ilegítimo, deixado para morrer.
Entre essa humilhação e a morte de sua mulher e filho, a cabeça de Villefort não aguenta. O procurador fica louco.
Em Gankutsuou, Villefort também acaba seus dias num hospício. Em vez de chegar lá por conta própria, no entanto, ele recebe uma ajudinha do Conde.
Ainda no tribunal, ele é envenenado por Benedetto com uma substância preparada por Edmond. É essa toxina, e não o choque, que o deixa maluco.
É uma mudança pequena, mas acertada, que reforça vários temas que o anime trabalhara até então. O veneno (fundamental na derrocada do procurador), o papel de Benedetto como um “anti-Conde de Monte-Cristo”, exercendo uma vingança paralela contra a alta sociedade.
E, é claro, o retrato de psicopata que Maeda tão bem lhe deu.
O Destino de Mondego
Se os destinos de Villefort e Danglars são relativamente fiéis, a vingança de Mondego, infelizmente, é aquela derrapada que faria Dumas se contorcer na tumba.
Tudo começa com a denúncia de Haydée, a mesma que leva Albert a desafiar o Conde a um duelo. A filha de Ali Tebelin embosca o militar na Assembleia Nacional, contando a todos de seus crimes:
– Você reconhece positivamente M. de Morcerf como sendo o mesmo homem que o oficial Fernand Mondego?
– Sim, eu o reconheço! – exclamou Haydée – Oh, minha mãe! Você me disse: “Você está livre, você possui um pai que a ama, você está destinada a ser quase uma rainha! Observe bem esse homem, este que a fez escrava, este que carrega no topo de uma estaca a cabeça de seu pai, este que nos vendeu, este que nos entregou! Observe bem sua mão direita, esta que tem uma grande cicatriz; se você esquecer seu rosto, reconheça-o pela mão que recebe, uma a uma, as moedas de ouro de El-Kobbir, o mercador de escravos!”. Sim, eu o reconheço! Oh, que ele diga ele próprio, agora mesmo, se não me reconhece também!
Cada palavra caiu como um cutelo sobre Morcerf e arrancou uma parcela da sua energia. Às últimas palavras, ele escondeu bruscamente sua mão, mutilada por um ferimento, contra seu peito e tombou sobre uma poltrona, assolado por um pavoroso desespero.
Essa cena fez os humores da assembleia efervescerem, como se fossem folhas soltas sopradas pelo vento poderoso do norte.
– Monsieur conde de Morcerf – disse o presidente – Não se sinta abatido, responda. A justiça da corte é suprema e igual para todos como aquela de Deus. Ela não o deixará ser esmagado por seus inimigos sem lhes dar os meios para combatê-los. Gostaria que novas investigações fossem feitas? Quer que eu ordene que dois membros da Câmara vão até Janina? Diga!
Morcerf nada respondeu.
Com aquilo, todos os membros da comissão se olharam com uma espécie de terror. Eles conheciam o caráter enérgico e violento do conde. Era necessário uma terrível prostração para aniquilar a defesa daquele homem. Era necessário, enfim, pensar que àquele silêncio, que parecia um sono, seguir-se-ia um sonho que lembraria um tempestade. (Capítulo LXXXVI)
A cena do anime não carrega o mesmo peso do livro. Ela é, mesmo assim, relativamente fiel à história original.
O problema é o que acontece depois.
Ao ter sua reputação destruída, Mondego decide dar um golpe militar (!) que transforma Paris em uma zona de guerra. Quando sua esposa e filho decidem abandoná-lo, ele os baleia em sangue frio (!!) e então monta cerco à mansão do Conde. Tudo, é claro, termina em um cinemático duelo de mechas (!!!).
O destino de Mondego não poderia ser mais diferente do escrito no livro. E não falo apenas da rule of cool. Ao fechar sua obra como um filme de ação, Maeda subverteu uma das características centrais da personagem.
No livro, Mondego não chega sequer a ousar lutar. Ao escutar a verdade sobre Dantès e ver sua família abandoná-lo, decide puxar o gatilho da sua arma – não contra o Conde, mas contra si mesmo:
Assim que escutou bater a porta de ferro do fiacre, depois a voz do motorista, depois o barulho da pesada máquina chacoalhar as vidraças ele se lançou ao seu quarto para observar uma última vez tudo aquilo que ele amava nesse mundo. Mas o fiacre partiu sem que a cabeça de Mercèdes ou a de Albert aparecesse na porta, para dar à mansão solitária, para dar ao pai e esposo abandonado um último olhar, o adeus e o remorso – quer dizer, o perdão.
Ao mesmo tempo, no exato instante em que as rodas do fiacre sacudiram as pedras da estrada, um tiro ressoou, e uma fumaça sombria saiu por uma das vidraças daquela janela daquele quarto, soprada pela força da explosão. (capítulo XCII)
A cena é crucial porque cimenta que tipo de canalha Mondego de fato é. Ao longo de todo o livro, o general mostra ser um covarde convicto, incapaz de encarar qualquer um que o desafie.
Ele foi covarde demais para se declarar à Mercédès, então conspirou contra Dantès para tirá-lo do caminho. Foi covarde demais para lutar uma guerra perdida, então vendeu Ali Tebelin aos homens do sultão. Foi covarde demais para peitar Haydée durante seu discurso na assembleia e nem ousou se defender.
Foi, enfim, covarde demais até para aceitar a derrota. E preferiu a saída “fácil” do suicídio a uma vida de desonra e ostracismo.
Paradoxalmente, ao transformá-lo num aspirante sanguinário a ditador, Maeda lhe dá uma personalidade mais positiva que o retrato de Dumas.
Não importa que ele eventualmente aperte aquele gatilho. Ao mostrá-lo esperando a morte na frente do por do sol, Maeda nos dá não a morte de um vilão, mas o adeus de um herói incompreendido.
O destino de Mercédès e Albert
Felizmente, a família de Mondego teve um destino mais próximo ao que Dumas lhes previu. Bom para eles, pois a alternativa seria morrerem baleados por Fernand, como Maeda (quase) fez acontecer.
No livro, Mercédès e Albert renegam à sua fortuna e passam a usar o nome de sua família materna, Herrera. A mãe retorna à Marselha, onde vivia na época em que ela e Dantès eram noivos. Já Albert entra para o exército, dedicado a se tornar o exemplo de nobreza e valentia que o pai nunca foi.
No episódio final de Gankutsuou, vemos que nenhum dos dois se afastou muito desse destino. Mercédès de fato retorna à Marselha, onde é vista visitando os túmulos de Edmond e Fernand. Já Albert segue seu próprio caminho, não como soldado, mas como um diplomata.
A carreira tem mais a ver com a personalidade bondosa que Maeda lhe deu. E também lhe permite fechar as pontas com outra personagem importantíssima: Eugénie.
Na cena final da série, a garota, agora uma pianista de sucesso, retorna à França para uma apresentação. Ao seu lado, ela toca a música que compôs para ele – o tema de abertura do próprio anime.
É uma conclusão doce que pouco tem de O Conde de Monte Cristo, mas que não falha em colocar aquele sorriso bobo em nossos rostos.
O destino de Maximilien e Valentine
Que Maximilien e Valentine terminariam juntos já estava mais do que óbvio. Não precisa ser um expert em tropes de anime (ou em histórias de amor) para saber que esses dois tinham sido beijados pelo destino.
Como eles chegam a esse ponto, em uma versão e outra, é bastante diferente.
Em Gankutsuou, depois do sequestro de Valentine, Maximilien passa a maior parte dos episódios longe da tela. A culpa é do Mondego ditatorial de Maeda, com suas campanhas eleitorais e golpes de Estado. Como militar, Maximilien é obrigado a participar de tudo.
O roteiro lhe dá uma folga no último episódio, quando ele volta a Marselha para viver com sua família e com Valentine. Juntos, eles retomam a profissão de seu pai, comprando o velho navio em que Dantès havia trabalhado.
Muito embora Dumas não o tenha feito lutar, o destino que preparou a Maximilien consegue ser ainda mais dramático. No livro, Valentine também é envenenada, mas quem a salva do pior não é seu namorado.
Culpado por ter quase matado a amada de seu protegido, o Conde lhe dá uma droga que simula o efeito da morte.A garota é dada por defunta, e sua família até realiza um funeral. Sem que ninguém saiba, porém, ela está em segurança na presença do Conde.
Dantes então faz uma coisa que parece excessiva mesmo ao seu gênio vingador. Em vez de contar a Maximilien imediatamente, ele espera que o jovem tente se suicidar, para depois lhe mostrar Valentine viva!
O motivo é explicado em sua carta de despedida: o último que ele (e nós) ouvimos do Conde:
Quanto à você, Morrel, eis o segredo de toda a minha conduta a seu respeito: não há felicidade ou tristeza nesse mundo, apenas a comparação de um estado ao outro. Apenas aquele que experimentou o extremo infortúnio está apto a desfrutar da extrema felicidade. É preciso ter desejado morrer, Morrel, para saber quão bom é viver. (capítulo CXVII)
O destino do Conde
Rebaixado de protagonista a vilão principal, é natural que o Conde de Monte-Cristo tenha sofrido o destino mais diferente do original.
Na verdade, não apenas o seu fim, mas também sua backstory apresenta divergências importantes.
No livro, Dantès passa 14 anos preso no Castelo d’If, uma prisão no sul da França. O castelo existe de verdade e aparece até no opening do anime:
No anime, o castelo é um pesadelo cibernético digno de Não Tenho Boca e Preciso Gritar, onde presos ficam acoplados a uma espécie de maquinário que consome sua consciência.
Em fez de Padre Faria, Dantès encontra um demônio espacial chamado Gankutsuou, que se oferece para habitar seu coração. A criatura transforma Edmond em uma máquina indestrutível de vingança em troca de seu corpo e alma.
Franz aprendeu tudo isso durante sua viagem de ácido virtual induzida por Noirtier. Assim, antes de duelar com o Conde, decide lhe preparar uma surpresa.
Após ser derrotado em combate, ele guarda sua energia para um último golpe e o atinge direto no coração. Gankutsuou, dizem, consome seu hospedeiro pelas beiradas, chegando só no fim ao peito. Sua esperança é matar o que ainda resta de humano no corpo de Dantès.
Infelizmente, Gankutsuou já havia dominado Edmond por completo. O golpe de Franz não tem efeito, e o jovem morre em vão.
Ou, pelo menos, é isso que ele pensa. No episódio 23, Albert decide restaurar a humanidade do Conde de outra maneira. Em uma cena que levou fujoshis à loucura, ele lhe lasca um beijo de tirar o chapéu.
Como um príncipe transformado em sapo, Edmond volta a ser humano. E o ferimento causado por Franz finalmente tem efeito, matando-o.
A cena obviamente não tem paralelo com o livro. Ela mostra, no entanto, que Maeda entendeu bem sua mensagem original. O resultado é um final que a reforça, embora a expresse com outras palavras.
Tendo poupado Danglars e entendido o erro de suas ações, o Edmond de Dumas abandona a França para sempre. Ele foi longe demais para integrar a sociedade, mas (felizmente) não o bastante para perder sua humanidade.
O Edmond de Maeda não teve a mesma sorte. Levando seu ódio às últimas consequências, não lhe resta alternativa senão morrer. Como o Kurtz de Coração das Trevas, o que quer que seu corpo sustente não é mais uma pessoa, e sim uma história cautelar do que o ódio humano é capaz de fazer.
A perda da humanidade
– Quem é você? Quem então é você, meu Deus?!
– Eu sou o espectro de um infeliz que você enterrou nas celas do Castelo d’If. A este espectro enfim saído de sua tumba Deus entregou a máscara do conde de Monte-Cristo e a cobriu de ouro e diamantes para que vocês nunca a reconhecessem até o dia de hoje. (capítulo CXI)
A subtrama do Gankutsuou que transforma o Conde em um demônio é, de fato, o ponto em que a adaptação de Maeda toma vida própria.
De fato, não existem espectros intergaláticos nem doenças alienígenas no romance original de Dumas. Mas os dois recursos sublinham uma interpretação que não podia ser mais fiel a sua fonte: o julgamento de que Dantès, ao vestir o manto de Monte-Cristo, deixou de ser o homem que era.
O Conde de Dumas não é azul, nem possui tatuagens fosforescentes. Mas ele é continuamente descrito como um homem sobrenaturalmente pálido, gélido ao toque. Muitas personagens ponderam se ele não pode ser um vampiro – um rumor repetido várias vezes no anime.
A interpretação é reforçada pelo próprio Dumas. Na primeira parte do livro, seu protagonista é chamado de “Edmond” ou “Dantès”. A partir do momento que assume seu alter-ego, porém, ele é referido quase sempre como “Conde” ou “Monte-Cristo”.
“Edmond”, como o próprio bem diz, não existe mais.
Isso porque ele cede à uma vontade mais terrível que demônios espaciais: a voz do Criador.
Depois de 14 anos preso no Castelo d’If, Dantès começa a ver a si mesmo como executor da vingança divina. O que foi feito a ele, aos seus olhos, foi um crime contra a justiça de Deus. E ele punirá os culpados em Seu nome – mesmo que isso custe sua própria vida, o sangue de inocentes, um segundo dilúvio.
É um imperativo que repete a todas as suas vítimas antes do golpe de misericórdia. E que aparece em seu diálogo com Mercédès antes do duelo com Albert:
– Vingue-se Edmond! – gritou a pobre mãe – mas vingue-se contra os culpados; vingue-se contra ele, vingue-se contra mim, mas não se vingue contra meu filho!
– Está escrito no Livro Santo – respondeu Monte-Cristo – “os erros dos pais recaem sobre seus filhos até a terceira e quarta gerações”. Se Deus ditou estas mesmas palavras a seu profeta, por que seria eu melhor que Deus?
– Porque Deus tem o tempo e a eternidade, duas coisas que escapam aos homens! (capítulo LXXXIX)
Maeda tentou ao máximo evitar temas religiosos em seu anime. Mesmo assim, eles aparecem na figura de seu “Gankutsuou”. É por isso que o demônio aparece crucificado, com um crucifixo no peito. E o próprio Castelo d’If é representado como uma segunda, imensa cruz:
O Conde de Monte Cristo é muito mais que uma historinha de vingança. A obra é uma parábola sobre uma das questões mais espinhosas que nós, humanos, já enfrentamos: o conflito entre Homem e Deus.
A disputa entre os desmandos de uma Autoridade superior e a vontade de fazer o que bem entendermos. Entre o desejo de que a Criação tenha uma ordem e o medo de que estejamos sozinhos no mundo – e sejamos responsáveis pelo nosso céu e nosso inferno.
É um conflito que inspirou o Romantismo – e, em especial, o mais famoso dos escritores românticos. Um autor que Dumas diretamente cita em seu livro, e que Maeda, fiel à sua obra, fez questão de trazer ao anime:
O Herói byroniano
“Herói” byroniano é o nome que se dá a um tipo de personagem popularizada pelo grande escritor Lord Byron (1788-1824). Ele é um rebelde apaixonado, imediatista, em guerra contra a autoridade e convenções sociais, que age de maneira impulsiva, imprevisível e, muitas vezes, auto-destrutiva.
Esse tipo de herói ganhou os holofotes junto com a moda “gótica” do século XIX. Seu pano de fundo eram becos escuros e cidades decadentes; seus companheiros, vampiros, fantasmas e outras assombrações.
Com sua pompa vampiresca e passado sombrio, O Conde de Monte Cristo é um exemplo claro do herói. Coisa que o próprio Dumas deixa escancarado em sua prosa.
No livro, muitas personagens comparam Dantès com Lord Ruthven, personagem do escritor John William Polidori inspirado em Lord Byron. Ou com Manfred, criação do próprio Byron que se tornou uma sensação na época.
Uma delas é a misteriosa Condessa G., aristocrata que apresenta Albert e Franz à folia romana no início do romance.
Tal como Ali Tebelin, a condessa é uma personagem histórica. Trata-se de Teresa Guiccioli, uma das amantes de Byron na época em que escrevia sua obra Don Juan.
Gankutsuou é fidelíssimo à vibe byroniana do livro original. Não só pela pompa gótica de seu Conde, nem por ter incluído – com ainda mais destaque que no livro – a personagem de Teresa Guiccioli.
Maeda foi além. O tema do Conde no anime é nada menos que a Sinfonia Manfred, obra de Tchaikovsky, homenagem a uma das obras mais famosas do escritor.
A referência mais importante, porém, talvez esteja no próprio enredo. O herói byronista é um eterno “do contra”, em guerra contra sua sociedade. O próprio Byron levou isso ao extremo, terminando seus dias na Grécia, lutando (tal como Ali Tebelin) contra a opressão dos otomanos.
Isso nos leva a outro grande tema do livro, abordado com ainda mais ênfase no anime:
A revolta contra o sistema
Não é preciso pensar fora da caixa para perceber que vingança de Edmond é justamente esse tipo de revolta.
Villefort, o procurador do rei, é o homem do Estado. Danglars, o banqueiro, o porta-voz do mercado. Mondego, o general, o cabeça do exército. E Caderousse, o pobretão criminoso, a voz anônima do povo.
Não são homens que traem Edmond, mas toda a sociedade francesa. É por isso que o Conde ataca seus inimigos com os dois pés no peito, agindo, a princípio, sem medo de efeitos colaterais.
É por isso que adota como título de “nobreza” a Ilha de Monte-Cristo, uma montanha deserta no mediterrâneo que abriga apenas criminosos e fugitivos.
E é por isso que desaparece ao final do livro, fugindo para o Oriente com Haydée em vez de se reintegrar ao mundo que o decepcionou.
“Não é culpa deles serem bandidos”, diz um homem a Franz no começo do romance “É culpa da autoridade”. Edmond Dantès não diria melhor.
A revolta contra a sociedade é também o fio condutor das partes mais livres da adaptação de Maeda.
No anime, Paris é representada como um cidadela murada cercada por um mundo devastado. A elite parisiense, ofuscada pelos seus luxos, trata tudo o que se passa fora como desdém.
As autoridades, nos poucos momentos em que dão as caras, são tratadas como corruptas. Os soldados de Mondego armam um golpe de Estado. Quando tem seu nome desgraçado, mesmo Albert, um aristocrata, sofre abuso nas mãos de policiais.
Recontar a história pelos olhos de jovens não foi a escolha mais óbvia. Mas ela permitiu a Maeda enfatizar ainda mais esse fundo temático. Afinal, quem entende mais de “revoltas” e “sistema” do que os jovens?
Muitas páginas internet a fora descrevem Gankutsuou como um anime “levemente baseado” em O Conde de Monte-Cristo. A colocação não escapou sequer à sinopse oficial do My Anime List.
Essas pessoas não devem ter assistido ao mesmo anime que eu. Ou, então, têm noções bem diferentes do que significa uma “adaptação.”
Gankutsuou é um gold standard para adaptações. O respeito de Maeda pelo seu material de origem só não é maior que a criatividade com que desenvolveu livremente seus temas.
O anime não supera seu material de origem, mas é uma experiência obrigatória para fãs do romance – e de literatura como um todo.
- Gankutsuou significa “O Rei da Caverna” e foi o título da primeira tradução de O Conde de Monte Cristo ao japonês, em 1901. Embora pareça uma mudança estranha aos ouvidos ocidentais, no Japão o título de Maeda traz de imediato a obra de Dumas à mente.
- Apesar de parecer fanservice, Peppo (no livro Beppo) é uma personagem do romance! O garoto é um crossdresser a serviço de Luigi Vampa, que seduz e embosca Albert durante o carnaval de Roma.
- No episódio 2, O Conde sobrevive a uma facada de Luigi Vampa, para o terror dos bandidos. O Conde de Dumas também é a prova de facadas, mas por outro motivo: ele usa uma cota-de-malha por baixo da roupa.
- No anime, o Conde toma pílulas especiais para conter a corrupção de Gankutsuou. Elas ficam guardadas em uma caixa feita de uma grande esmeralda oca. A caixa e a pílula existem no livro, mas carregam um “remédio” de outra espécie: haxixe. Fiel ao seu “exotismo” oriental, tanto o Conde quando Haydée são usuários frequentes de vários tipos de drogas.
- No episódio 22, Caderousse aparece roubando uma loja chamada Les Bijoux Carconte. A tomada é um easter egg sobre sua história no livro: na trama, ele foi preso por matar um joalheiro, incitado por sua esposa, que se chamava Carconte.
- Caderousse ainda aparece no último episódio ao lado de Benedetto em uma placa de procurados pela justiça. Trata-se de uma referência à relação dos dois no romance, em que foram parceiros de cela.
- As óperas tocadas no anime são Lúcia de Lammermoor e Robert le Diable, as mesmas citadas no livro.
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Comentários
Ambíguo a relação do conde e Haydeeno livr?
Está mais que [obvio que se tornaram um casal no fim do livro.
Acreditando que Haydée só tem para ele “o amor e a ternura de uma filha”, a Monte Cristo entende pela primeira vez que pode amá-lo de verdade quando vê sua preocupação por ele na noite anterior ao duelo e carrega-a nos braços para seu apartamento (“a idéia lhe ocorreu pela primeira vez, que talvez ela o amasse diferente do que uma filha ama um pai”, cap. 90). Ele lamentavelmente conclui que ele poderia ter tido a chance de ser amado e, portanto, de ser feliz (“Oh ‘, murmurou ele, com intenso sofrimento,’ eu poderia, então, ter sido feliz ainda ‘”, cap. 90). Sua felicidade em vê-la, quando volta do duelo, não é menos intensa que a dela, embora não seja tão evidente. Beijar sua testa faz com que ambos os corações batam com força (“um beijo que fez dois corações pulsarem uma vez, um violentamente, o outro [silenciosamente]”, cap. 92) e ele ousa acreditar que pode amar novamente. Essa crença é confirmada após sua jornada ao passado de seu aprisionamento. Já tendo superado as dúvidas levantadas com a morte de Edouard, ele supera outra dúvida sobre a mulher que ama: ao passar pela aldeia dos catalães, ele desvia o olhar e murmura o nome de Haydée “em uma voz de ternura, quase chegando ao amor”. (cap. 113)
No último capítulo (cap.117), embora ele saiba que a ama, o Conde ainda não tem certeza se ela o ama de volta (em suas próprias palavras, “quando sofremos muito tempo, temos grande dificuldade em acreditando em [felicidade] ”, cap.3). Portanto, com sua missão cumprida, Monte Cristo está determinado a se punir pela dor que causou aos inocentes e sair do lado dela, não querendo permitir que seu destino ofusque os dela. Ele a liberta, restaurando sua posição, fortuna e nome, e pede que ela “esqueça até meu nome e seja feliz”. Quando ela claramente confessa que o ama, ele aceita o seu amor redentor (“Que seja, então, como você deseja […] Me ame então, Haidee!”).
Não se pode negar uma realidade.